De ‘OS CONTINENTES DE DENTRO’, de María Elena Morán
1.
De aquele episódio maldito eu lembrava retalhos, fragmentos soltos que minha família soube completar com medo. Eles disseram que Ela tentou me matar e não aceitaram atenuantes. Ela foi extirpada de nossa vida e foi decidido que eu devia odiá-la. Entre o silêncio e os anos, conseguiram esse esquecimento cruel e conveniente, mais confortável que o ódio.
– Ela tinha tua idade quando começou a ficar louca – disse minha mãe quando contei que ia procurar minha avó Aída.
E como Ela não devia ser mencionada nem lembrada nem invocada, Ela soou como um bofetão. Pois Ela era escombro e de escombros ninguém falava porque falar deles fazia com que um certo cheiro de naftalina, barata ou cânfora impregnasse em tudo que ainda sobrevivia e com esses cheiros ninguém aguentava existir. Por isso Ela devia continuar silenciada no cadafalso aonde a enviamos, apesar da descoberta desses papéis pretéritos, subitamente futuros, que agora eu tinha nas mãos.
Meu dia tinha começado na casa do meu avô Ignacio, que estava se mudando para um apartamento mais moderno e mais fácil de cuidar. Fui lá com uma mala, disposta a levar apenas o que coubesse nela, e saí com o peso de um aniquilamento. O vô queria se desfazer da quantidade insana de móveis e cacarecos acumulados. Por cacarecos, leia-se: livros. Aqueles que numa era anterior à tragédia tinham sido o tesouro da casa tornaram-se inúteis durante todos estes anos e agora a verdade era que estorvavam. Finalmente, o vô assumia o caráter decorativo das centenas de títulos que cobriam as paredes da sala desde que Ela não estava ali para lê-los.
Para a minha mãe dava na mesma o que ele fizer com os livros. Tinha se oferecido para doá-los a alguma biblioteca local, mas antes teve a inusitada delicadeza de me deixar escolher os que eu queria para mim. Ela e eu sabíamos, ainda que nenhuma dissesse, que esses livros eram o último rastro da presença que Ela tivera em nossas vidas.
Como eu estava morando em um apartamento compartilhado desde que me separara de Franco, não queria pegar muitas coisas, pois acabariam por abarrotar o quartinho que havia alugado. Os doze tomos da Enciclopedia Salvat ficaram automaticamente excluídos da minha seleção. Puxei-os da estante em grupos, mal tirei o pó e os enfiei em uma das caixas para doações. O peso do último trio de tomos me surpreendeu; meus músculos estavam preparados para levantar o mesmo peso que já tinham levantado outras três vezes, mas ficaram na vontade. A leveza inesperada, somada ao impulso desnecessário que meus braços prepararam, me desequilibrou. Livros, cadeira e eu acabamos no chão.
Livros caídos, abertos, despidos. Livros prenhes de folhas alheias. Cuidadosamente mutilados, cada um dos volumes conservava a borda de todas as folhas intacta, mas o quadrado central havia sido removido, fazendo de cada obra um cofre e, de cada cofre, um lamento textual da inominável que, dezesseis anos depois, se atrevia a convocar-me.
Diccionario Enciclopédico Salvat. Vários autores, 1972.
Folhas em livro-cofre:
17/9/1981
Tudo o que você sabe do mundo é mentira e vou provar para você. Meu segredo é segredo de Estado. O doutor Urbino quer que eu conte por escrito o que não digo nas consultas. Mas meu segredo é segredo de Continentes. Os habitantes dos Continentes de Fora não saberiam lidar com o que sei. O doutor Urbino não é burro. Se ele quer saber é porque quer evitar que minha missão tenha êxito. Mas, caso isso aconteça, o que é muito provável, o melhor será deixar orientações à minha Sereia. Doutor Urbino, contarei por escrito o que eu não conto nas consultas, mas você nunca saberá me ler. Hoje lhe pareço uma pessoa incompetente para a vida. Se o senhor soubesse, se todos soubessem, que minhas capacidades são gigantes e não param de crescer. Doutor Urbino, o senhor faz bem o seu trabalho. Por isso, o senhor nunca conhecerá a minha caligrafia.
Sofía, estas páginas que ele quer para si, são apenas tuas. Falam de você e de mim, mas são tuas. Para que, se eu fracassar, você saiba como chegar em casa. Eu sou tua Sentinela de Mar. Tem sido uma tarefa ingrata e tenho medo do que possam fazer comigo, mas, sobretudo, temo o que podem fazer com você. Como sei que é difícil de entender, vou começar pelo início. Por aquele dia em que deixei de ser Aída, a senhora de Paz, e voltei a ser Aída Rojo, incumbida de alcançar grandes feitos e mulher com direito à sua alegria completa. A.
17/9/1981
Era uma noite quente apesar de ser inverno. Uma viagem a Argentina e Brasil que deveria ser linda. Mas não era. Estávamos lá apenas para que me esquecesse do assunto dos quadros. A fogueira que teu avô fez com meus quadros quando Anselmo disse que havia uma galeria interessada neles. Íamos de mãos dadas, mas eu ia sozinha. Meu marido, o navegador. Sua mulher, pintora da porta para dentro. Passamos dias caminhando pelas praias, conhecendo Florianópolis. E eu às vezes me esquecia da fogueira. Ignacio é Ignacio, para o bem e para o mal. Ignacio é um covarde. Passeamos de barco no entardecer. Ignacio não me pediu perdão. Mas eu o olhava e ali estava meu Ignacio. Ele acredita que tem razão, mas se arrepende da fogueira. Tudo em silêncio. Calada, eu disse que a vida seguia e que ele era meu Ignacio. Voltamos ao hotel e então começou tudo. Perguntei se em Florianópolis tinha metrô e Ignacio disse que não. Então que será esse murmúrio. A.
17/9/1981
Conhecemos Buenos Aires, revisitamos Montevidéu, amamos Porto Alegre. Fazia dois dias que estávamos em Floripa, como os brasileiros chamam Florianópolis. Era temporada baixa. Melhor, porque não gostamos de multidões. Mas a multidão já sabia que fazia calor nesse sábado de inverno em Santa Catarina. Já se escutava. Ignacio dizia que não se escutava nada, que a praia era só nossa. Mas não, já estão perto, estão vindo daqueles lados. Não vem ninguém de lá nem de lugar nenhum e no horizonte não há nem um barquinho de pescador. Então que será esse murmúrio que vem de baixo. A.
17/9/1981
Fomos embora para Curitiba antes do planejado porque não gostei dos sons de Floripa. Ignacio disse que o que estava acontecendo era que eu nunca tinha estado numa ilha e não estava acostumada a estar rodeada do barulho do mar vindo de todos os pontos cardeais. Se Ignacio assim dizia, então devia ser verdade. Concordar e sorrir. Concordar, sorrir e não incomodar. Três conselhos da minha mãe. Curitiba, que cidade bonita, Aída, olha que moderna, olha que bom gosto. E eu, que só queria dizer escuta a multidão, escuta como falam as pessoas lá de baixo, concordei, sorri e não incomodei. Mas se em Curitiba não tem metrô nem há água em todos os pontos cardeais, então o que será esse murmúrio que vem de baixo, como se do próprio centro da Terra. Exijo silêncio. Eu sou Aída Rojo. Mulher de Ignacio, o navegante. Mãe de uma filha que deixou de precisar de mim rápido demais. Dona de casa impecável. Pintora incendiada. Eu sou Aída Rojo e exijo silêncio. Eu sou Aída Rojo e sob hipótese alguma posso ficar louca. A.
18/9/1981
Quando acordei, Ignacio já não estava na cama. Não estava, tampouco, no café da manhã. Lembrei que ele tinha falado alguma coisa sobre ir pescar. Fiquei sentada num dos bancos do jardim do hotel. Um espetáculo de verdes. A meu redor, uma extensão enorme de grama cortada, tão uniforme que parecia artificial. Uma variedade impressionante de plantas que já começavam a florescer, confusas com esse inverno cálido. Esqueci Ignacio, queria só ficar ali e que o sol terminasse de me acordar. Eu sou Aída Rojo e não devo escutar o que estou escutando. Que bobagem, são hóspedes e funcionários no café da manhã. Não, não são. São meus ouvidos. Não são teus ouvidos. Alguma coisa acontece com meus ouvidos, que estão me pregando uma peça. Não são teus ouvidos, Aída. Não precisa ter medo, só me escute. Eu sou Aída Rojo e não tenho direito de ficar louca. Logo você vai entender tudo e vai sentir a tua alegria completa. Eu sou Aída Rojo. Você é Aída Rojo e, ainda que o mundo diga o contrário, tem direito a tua alegria completa. Tenho direito a minha alegra completa. Até que enfim nos entendemos, Aída.
Ino é o nome dela, a voz que fala comigo desde aquele momento. Ela diz que isso que eu tenho experimentado se chama “escuta ativa”. É um talento que escassas pessoas têm e que todo mundo inveja. A mediocridade funciona assim. Eles estão cientes de que tua percepção é muito mais fértil do que as piscinas de bolinhas em que eles arrastam seus pensamentos. Teu marido, por exemplo, diz que te ama, mas te anestesia a inteligência faz anos. Ignacio me ama, me entende e quase sempre me estimulou. Teu marido te ama, é um bom Vigia de Terra e faz seu trabalho tão bem que nem você nem ele o percebem. A.
18/9/1981
Duas semanas atrás, eu era uma artesã, uma dona de casa com passatempo, uma pintora amadora apesar de toda minha determinação. Apesar dos cursos. Apesar da prática cada vez mais intensa. Depois da queima dos meus quadros, fui virando artista, importante. Fui proibida de tão perigosa. Fui insuportavelmente boa. Tão boa, que teu marido teme te perder numa das tuas turnês pela Europa. Pela Europa ou pelas calças dos grandes pintores do mundo, que baixarão seus pincéis ante tua genialidade. Ino concorda comigo e agora juntas sentimos pena de Ignacio. Mas Ino não se conforma com que eu deixe Ignacio ser o que ele é. Ino tem pressa de me fazer revelações e para isso exigiu que a gente voltasse para casa, então insisti até que Ignacio antecipasse a passagem. Depois sigo, acho que tem gente vindo. A.
18/9/1981
No voo desde São Paulo até Caracas, pedi para Ignacio não falar comigo, disse que queria dormir. Ele achou que ainda era por conta da fogueira e, de certa forma, tinha razão. Mas era, mais que tudo, para escutar o que Ino me dizia. Minha escuta ativa não dava trégua. Eu estava apavorada, porém encantada; como se minha vida estivesse sob uma lupa, já não para exame, mas para reparação. Eu sou Aída Rojo, mulher bem-aventurada e talentosa, escolhida pelas autoridades do Mundo Inicial. Eu sou Aída Rojo e, apenas agora, sou capaz de Ver.
Chegamos em casa e aí estava você com Taís, tua mãe, esperando ansiosa. Esperava-me inclusive com um presente, um pequeno quadro que você pintou para mim na escolinha. Tua mãe me explicou as mudanças que ela tinha feito na minha casa, sem minha autorização, como se fossem uma gentileza. Enquanto isso, tudo o que Ino fala faz sentido, ela tem acesso a coisas de mim que eu não sabia e que ainda não sei encontrar. Ainda estou um pouco anestesiada. Para você também será difícil no começo. O primeiro passo é aprender a entender não só com a cabeça, mas também com a pele, que está cheia de milhões de receptores espírito-conceituais.
A notícia que eu não esperava é que Ignacio é o nosso inimigo. Taís também. E também teu pai. Mas quero confiar nos trinta e cinco anos de matrimônio com Ignacio, que subiu minhas malas e, se eu deixasse, era capaz até de arrumar minhas roupas. Ainda a fogueira e suas infinitas consequências. Quero continuar casada com ele. Quero ser alegre, completamente ou não, mas com ele. Ino não concorda, diz que meu destino é outro. A.
23/9/1981
Aí está você, correndo ao redor da minha saia, usando meu xale como vestido, e Ino me explica que você é uma criatura de outros mundos, não há quem te veja e seja capaz de negá-lo. Ino disse que você, Sofía, é uma Sereia. Que eu tenho a missão de te levar de volta para Dentro e que ninguém mais é capaz de entender isto que nos une.
Você e eu sabemos, desde sempre, que isto é verdade, que você é outra coisa, que você é maior do que estas ninharias, que você é feita para outros rumos. Então o que Ino tem feito é, apenas, dar um nome à tua majestade. A.
María Elena Morán nasceu em Maracaibo, Venezuela, em 1985. Escritora e roteirista, é formada em Comunicação Social na Universidad del Zulia e em Roteiro na EICTV, Cuba. Fez mestrado em Escrita Criativa na PUCRS, onde atualmente desenvolve seu doutorado. Tem poemas e contos publicados em revistas e antologias. Os Continentes de Dentro é sua estreia como romancista.
