LITERATURA GAÚCHA: CENA CONTEMPORÂNEA
Houve um momento em que a noção de sistema literário permitia que a literatura sul-rio-grandense fosse observada, em determinadas perspectivas, com certa autonomia, como se consistisse em certa forma de independência, pela produção de uma literatura específica de autores “daqui”, para uma recepção específica, “daqui”, na constituição de um triângulo “autor-obra-público” gaúcho. Tal independência quase orgulhava um estado “evoluído”, de situação educacional privilegiada, de economia pujante, civilizado pelas riquezas da terra e pelas influências da Europa.
“Pero…”
Das bandas de eventuais do dito “triângulo” “daqui”, cavalgam coisas além da vã sabedoria… É certo que, em se tratando de autonomia, o relativismo de qualquer independência é marca inequívoca do contemporâneo, palavra que entra aqui ao tratar da cena atual da literatura sul-rio-grandense. Pois nada é menos contemporâneo do que qualquer sistema alijado em si de marcas e pertencimentos de outrem. A contemporaneidade fere qualquer afastamento deliberado ou acidental, embora, paradoxalmente não raro, exclua e rejeite. O que está em jogo, na realidade, é a impotência de se querer autossuficiente. Ser sem outros, em si, é impossível.
De outro modo, a condição do gaúcho parece que nunca se afastou de um desejo: ser “outro”, mesmo que nunca lá tenha sido – nossa independência cultural, meio separatista, meio gauderia, talvez seja mais um histórico esforço de vontade do que coisa de fato. Aliás, na organização do que seria mais tarde a Jornada Nacional de Literatura, Jornada Sul-Rio-grandense de Passo Fundo, no início dos anos 1980, a partir da ideia de Tania Rösing e dos esforços de Josué Guimarães, escritor gaúcho de declaradas influências literárias latino-americanas, reza a lenda que não faltou quem visse no encontro que nascia um feito para pilcha e pagos. Não era, jamais foi, mas a literatura sul-rio-grandense, essa havia e sempre houve nas Jornadas Literárias de Passo Fundo. E, no mais, sempre na condição de questionamentos, os quais aqui de certa forma e fazem quando, por exemplo, se coloca um gringo a falar entre os nativos como se nativo fosse, em um encontro ocorrido na 16ª Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo, no Seminário “Literatura Gaúcha: cena contemporânea”. Este livro tem quatro partes e se abre tratando sobre literatura e mídias digitais, com o texto de Christopher Kastensmidt, escritor que vive no sul, mas nasceu em Houston, nos Estados Unidos. No texto “Reflexões sobre a ficção interativa na sala de aula”, Kastensmidt discute as relações entre leitura, literatura e mídias interativas, entre elas, games e livros. Profissional de games e da “cultura geek”, o autor orienta suas considerações no sentido de que a ficção interativa seja nova oportunidade: “Penso na possibilidade de usar a leitura interativa como forma de ‘reconquistar’ os adolescentes que já perderam o hábito de ler. O crescimento dramático de ficção interativa no mercado internacional nos últimos anos me dá bastante esperança. A literatura, ‘fantasiada’ de game, parece cair mais facilmente no gosto adolescente”.
Na mesma seção, Marcelo Spalding trata da escrita criativa em sala de aula, na convicção de que escrever e ler, muito mais do que deveres impostos pelas tarefas escolares, são direitos dos estudantes: “O termo escrita criativa, embora hoje muito popular, ainda se confunde muito com criação literária. Mas se entendermos escrita criativa como a tradução de creative writing, é qualquer tipo de texto que não seja profissional, jornalístico, acadêmico ou técnico, normalmente textos em que há trabalho estético com a linguagem, como o uso de rimas ou metáforas, narratividade, construção de personagens, etc. Nesse sentido, a criação literária é parte da escrita criativa, mas também fazem parte deste amplo guarda-chuva roteiros de televisão, cinema e séries, letras de música, quadrinhos, games, textos de não ficção, como crônicas, biografias, cartas”.
Na linha de que nos sistemas já não há região limitada, Vitor Diel discute o local na rede social sem pretensões isolacionistas. Tratando da fanpage Literatura RS (facebook.com/literaturars), um espaço na rede social dedicado exclusivamente ao mercado editorial gaúcho e à literatura produzida a partir do Rio Grande do Sul, o escritor salien ta: “Desde a concepção, houve a intenção de manter a marca Literatura RS distante do bairrismo: não há necessidade por reforçar os ideais da cultura local em função de já haver a sigla RS na própria marca e os profissionais gaúchos constituírem a natureza de sua pauta edito- rial. O logotipo não reproduz as cores da bandeira do Rio Grande do Sul; a fanpage não se comunica através de gírias, ditos ou expressões gauchescas; não há qualquer incentivo ao ‘regionalismo’. O que existe é um direcionamento editorial que coloca o conteúdo da fanpage em órbita de assuntos relacionados ao mercado editorial e livreiro do Rio Grande do Sul, e faz isso ao assumir o perfil de um serviço que conhece o público ao qual se destina”.
A segunda seção desta coletânea trata de poesia. O assunto trilha a contemporaneidade, o tempo, as vozes das minorias e a crítica da poesia. Guto Leite trata da poesia gaúcha da década de 1990 até a atualidade, em um texto que pretende ser “mais sobre uma relação entre um leitor contemporâneo, talvez um ‘leitor profissional’, e um conjunto de poéticas do que sobre um conjunto de poéticas”. Leite, como poeta, além de contemporâneo e compatrício dos autores que cita, aventura-se em transitar por um terreno, no caso dele, mapeado de afetos, amizades e conivências. De suas idas, o artigo chega lendo a poesia sul-rio-grandense a partir das especificidades históricas, políticas e culturais do Estado, vendo em tudo aspectos que fazem a sociedade gaúcha um sistema de complexidades e de crises, muito mais do que de identidade. Por isso, talvez, o poeta e professor procure, em sua leitura, linhas de perímetros que tanto separam quanto unem, entre si, os poetas com suas produções em seis grupos, ou três pares de grupos opostos complementares.
José Eduardo Degrazia, por sua vez, inicia o seu artigo com duas perguntas, das mais ossudas: para o poeta, o que é o tempo? O que é ser contemporâneo? Suas afirmações, após tamanha provocação, discutem o ser, o tempo, o espaço, a topada nas coisas que são poemas no meio do caminho: “Nesse sentido, a poesia pode ser assemelhada ao tempo, no espírito. Não nos deixemos cair, no entanto, no total idealismo. No mundo real, de todos os dias, o tempo existe conforme o movimento, assim como uma pedra existe conforme sua massa, seu volume e sua densidade: já deram uma topada numa pedra? Aconse- lho, também, a não tropeçarem na poesia: a queda pode deixar seque- las ao fraturar ossos e deixar nervos expostos”.
Como outras pedras, muitas vezes invisíveis, a literatura feminina e a literatura negra são tópicos de Lilian Rose Marques da Rocha. Vinculadas, ainda, à oralidade e a todo um acervo de imaginários identitários, as vozes femininas, sendo silenciadas, sufocam-se com toda uma riqueza cultural essencial ao conhecimento de nossa forma- ção e de nossa atualidade. Para Rocha, então, é necessário “sair da invisibilidade, tanto a literatura feminina quanto a literatura negra, mas ainda a Academia questiona o que é a literatura feminina ou se existe uma literatura negra. É o rechaço toda vez que assumimos pa- péis que para nós não foram pensados”. Nesse sentido, o ativismo de iniciativas como o Sarau Sopapo Poético é de fundamental relevância. Fechando a seção sobre poesia nesta coletânea, o texto de Ronald Augusto avança nas reflexões sobre a poesia e a crítica contemporânea. No jogo de vazios e de movimentos vivos entre produção artística e produção crítica, o autor toma posição sobre o ser leitura da crítica: “a leitura, ou a crítica, condizente com a poesia contemporânea, deve ser, tal como ela, uma expressão em construção, ainda não canônica e não canonizada. Sequência de interpretações e uma constante confrontação entre elas. Uma crítica, por assim dizer, ‘câmera-na-mão’, ou, para usar outro lugar-comum, crítica mais como transpiração do que como inspiração. Leitura interessada, severa e experimental embrenhada na nervura do dissenso”.
A terceira parte desta coletânea ocupa-se da literatura infantil e juvenil. Aqui, escritores pensam essa coisa estranha de escrever para jovens, sabendo-se que, mesmo sendo sujeito em formação, são leitores atentos, interessados e sensíveis. Longe da circunstante de ser formada por quase-sujeitos que são quase-leitores, essa recepção exige literatura para gente “grande”, não em tamanho, nem em idade, mas em riqueza. Justamente em um impasse que parece ser criado pelos adultos, Schimeneck questiona o porquê de essa literatura tão cheia de complexidades ser apartada da literatura dos leitores “formados”, em eventos e livrarias. A resposta, dentre outros desafios, deve estar na reflexão sobre a qualidade do que se apresenta aos jovens, para quem “as feiras trazem uma quantidade enorme de livros popularizados por filmes, séries de TV e games. Obras com características literárias e recomendadas para esse público, muitas vezes, têm sido proteladas em favor da literatura da moda ditada pelo mercado do best-seller. Essa literatura de massa pode ser uma porta de entrada para captar leitores, mas, se não for bem dirigida e orientada, pode tornar-se uma leitura alienante e improfícua”.
Observando a literatura para os pequenos, Dilan Camargo, em seu artigo, salienta (ou quase nos adverte de) que: “Se nós, adultos, já desistimos de uma visão poética da existência, não temos o direito de negá-la às crianças. É um dever estético das famílias e da escola apresentar o mundo poético das palavras para as crianças. Só ‘a beleza salvará o mundo’, é uma frase célebre de Dostoiévski. Trata-se daquela beleza criada pelas mais variadas formas de arte. E a primeira delas é a beleza da palavra poética. Palavra: o som e o signo da imperfeição humana na sua expressão mais perfeita possível”.
Glaucia de Souza, remanescente da geração leitora da revista Recreio, quando narrativas, imagens, tesouras e lápis coloridos induziam a uma divertida forma de ler, reflete sobre os sentidos que se envolvem na complexidade de qualquer estética, principalmente aos pequenos, tanto que, ao longo dos anos, “os livros endereçados à infância vêm sendo cada vez mais fruto da pesquisa, do planejamento, do trabalho árduo, da criação de diferentes artistas. Constituem-se, desse modo, em objetos de arte em que palavras e imagens buscam dialogar entre si, oferecendo aos leitores amplas possibilidades de fazer relações, de criar interpretações, enfim, de buscar suas próprias leituras de letras e de imagens”.
Para fechar o trabalho com a literatura para jovens, na terceira seção deste livro, o texto “A literatura infantil e juvenil dentro e fora da escola”, de Jacira Fagundes, discute a importância da educação na formação literária, ponderando, contudo, que “não basta à instituição escolar receber uma legião de títulos de ótima qualidade e outros nem tanto, se o professor está limitado à questão educacional referente ao ensino-aprendizagem e desconhece o valor da literatura como tal”.
A seção final deste livro destina-se à discussão sobre o jornalismo literário. O vínculo entre imprensa e literatura, aliás, tem rendido já há tempos muita conversa, talvez por um atributo relativamente identitário do sistema literário brasileiro e sul-rio-grandense. Ora nossos jornalistas são atraídos à literatura, ora nossos escritores se deixam aproximar da imprensa, ora tudo é a mesma coisa, sendo diferente. Airton Ortiz escreve, assim, sobre jornalismo de aventura, mas, antes, arrisca uma separação entre os gêneros: “Os gêneros literários se distinguem mais pela linguagem e estrutura narrativa do que pelos temas abordados. Um triângulo amoroso pode ser contado em forma de poesia ou romance, ou mesmo em um conto, se os personagens não forem o principal da história; caso parta de algo verídico, cabe até em uma crônica; ou em uma novela, se apenas um dos protagonistas tiver relevância. A reportagem não. A reportagem só pode ser narrada em forma de reportagem, um texto no qual o jornalista se limita a contar uma história real. Nesse caso, então, ao contrário da literatura, o assunto, e não a linguagem, é o destaque. O fato de a reportagem estar bem escrita não lhe dá o direito de mudar o acontecido”. Gênero que seja, o leitor ainda é brindado por uma bela discussão do que seja esse tal (e fascinante) jornalismo de aventura.
Luis Dill, por sua vez, dá uma nova remexida nas distinções. No seu artigo, o jornalismo tem peso de “matéria” no criar literário: “Tenho mais de 50 livros publicados, e cada um possui sua própria gênese. A grande maioria obedeceu a esse processo de observação, e aí podemos incluir a leitura de textos jornalísticos, prática diária com- partilhada por milhões e milhões de pessoas. Como meu trabalho é criar histórias, a leitura é acompanhada do inevitável olhar do escritor. Um crime pode virar um romance policial, uma formatura pode originar uma novela juvenil”.
No que se refere aos desafios de ser jornalista e escritor, Marcel- lo Campos escreve sobre o novo contexto da comunicação, sob novas oportunidades e novas alternativas, as quais colocam mesmo o literário no factual e o factual no literário, mesmo que não exista lá muita diferença: “Da figura controversa do ghost-writer (o ‘escritor oculto’ de obras creditadas a terceiros, como autobiografias em que consta na capa apenas o nome do biografado) à atuação como assistente de pesquisa, organizador, produtor ou autor propriamente dito, não é necessário que o jornalista seja um gênio da escrita para incursionar pelo segmento editorial. Esse desafio, entretanto, não está entre os mais fáceis, afinal exige doses generosas de dedicação, prática, paciência, senso de oportunidade, desprendimento, gosto pela atividade e investimento pessoal. Ou seja: nada pelo que o jornalista já não seja cobrado em redações, estúdios e afins”.
Encerrando a seção sobre esse tal de jornalismo literário, Rafael Guimaraens afirma: “Não existem fronteiras bem definidas entre uma boa reportagem e o que seria jornalismo literário”. A questão que envolve o tratamento ficcional no que ocorre na realidade passa a ser uma nova forma de percepção de certa verdade. Guimaraens assim coloca quanto à sua produção: “o trabalho é fornecer uma ambienta- ção consistente, dar vida aos personagens, ritmo à narrativa, criar expectativa para o desenrolar da trama e construir elementos para que o leitor forme seu próprio juízo”.
Assim, nessas tantas fronteiras vazadas, nessas linhas porosas entre gêneros, linguagens, atributos e identidades, vai o contemporâneo do torrão nativo, sendo cancha onde sujeitos se envolvem, mesmo perante tantos obstáculos, na defesa da arte, da leitura, da literatura… e do livro.
A Jornada, o lEL e a contemporaneidade
A 16ª Jornada Nacional de Literatura, ocorrida em outubro de 2017, agregou à sua programação o Seminário Literatura Gaúcha: Cena Contemporânea, com a importante colaboração do Instituto Estadual do Livro (IEL), que se comprometeu com a coordenação do evento na figura de sua diretora, Patrícia Langlois. Os nomes dos palestrantes deram o tom da importância dos testemunhos aqui reunidos em quatro seções correspondentes aos quatro dias de evento, de 03 a 06 de outubro. Tendo a responsabilidade de ocupar um espaço tão importante na Jornada, a direção do IEL convocou uma reunião com a Setorial do Livro e Leitura e Literatura, que integra a estrutura de debate público das Políticas Culturais da Secretaria de Estado da Cultura, Turismo Esporte e Lazer, e a convidou para que, de forma conjunta e democrática, fossem elencados os temas a serem aborda- dos no seminário e quais palestrantes poderiam participar. O elenco de nomes garantiu um encontro no qual a multiplicidade de tópicos discutidos se exercesse no que poderíamos pontuar em muitas palavras-chave ou expressões-chave para o que agora se publica. Seriam elas, entre outras ainda: ficção interativa; literatura digital, literatura digitalizada, marketing do escritor; poesia gaúcha contemporânea; poesia feminina; protagonismo literário negro; crítica literária; mercado do livro infantil; arte em texto e imagem; literatura infantil e juvenil; jornalismo e literatura; etc.
Do que se registra aqui, há a atualidade de vários temas, mais o desenvolvimento de outras questões, antigas como nossa identidade, atuantes como todo nosso trabalho pela cultura, pela leitura e pelo livro. Essa é a cena contemporânea, ao menos no que se desenha por aqui, dessa tal literatura e desse Rio Grande, que fica no sul.
Os organizadores
Miguel Rettenmaier e Fabiane Verardi

NÃO-FICÇÃO Jornada Nacional de Literatura Literatura riograndense