O NÁUFRAGO, por Catia Schmaedecke
“Caro Josias,
espero que esta o encontre saudável e forte, tal como você sempre foi.
Por aqui uns dias modorrentos me confundem o juízo. Já nem sei mais se tento retê-los na memória ou se o melhor seria entregar-me ao embalar das horas. O silêncio é o parceiro de jornada, o que possibilita que ainda exista em mim um verdadeiro manancial de aventuras ruidosas. Aproveito para deitar a pena no papel e seguir viagem para bem longe. Você sabe tão bem quanto eu. A bagagem de meio século sempre nos proporciona as confortáveis cabines da primeira classe.
Da janela tudo o que avisto é a imensidão que, às vezes, me impede de reconhecer onde está localizado o horizonte. Sob o gingado das ondas as mais variadas sombras traçam o seu bailado quase sempre em entardeceres alternados. É quando o sol joga a palheta para o alto e espirra as suas luzes coloridas por todo o teto. Momentos de puro deleite, meu irmão. Se você pudesse ver o que eu vejo daqui, de imediato compreenderia esse meu entusiasmo.
Mas o que, de fato, leva-me a escrever a presente missiva, é a saudade que oprime o meu peito. A incerteza em não termos data de retorno angustia-me, sobretudo, por Maria Clara. Todas as noites imagino-a ainda mais bela do que jamais possa ter sido, com a cascata ruiva despejando-se sobre o colo macio. A sua pele de porcelana há de ansiar pelo toque de minhas mãos; tenho certeza de que sou correspondido. Preciso confidenciar algo a você. Sinto o meu corpo sucumbir um pouco mais a cada dia longe de minha amada, o tempo se arrasta em verdadeiro martírio nesse percurso interminável, Josias. Em todos os portos eu a vejo sorrindo à minha chegada. E como deve estar crescido o nosso primogênito. Por favor, diga-lhe que jamais deixei de amá-la.
Há mais ou menos vinte noites, um incidente provocou inundação em minha San Telmo. O casco se rompeu misteriosamente, até agora eu não consigo obter nenhum tipo de explicação plausível. Se é verdade que o inferno existe, eu o presenciei materializado naquela madrugada. Tirando três pares de braços fortes, nada mais resta de meus homens. Acredite, caro irmão, esses olhos viram o inimaginável. O velho lobo José Maria, que você conheceu, soltou as amarras da alma e fê-la subir ao infinito com um disparo no peito, quando a San Telmo começou a adernar. Todos se desesperaram e eu vi-me impotente pela primeira vez nessa longa vida de guerras e naufrágios. Passadas duas luas quando acordei à deriva, sobre um pedaço da embarcação e sem mais nenhum fio de esperança, o inimigo socorreu-me. Agora vivo com os tornozelos presos por correntes.
Não conte isso por aí. Um plano de fuga se encontra em andamento. Ore por mim.
Abraço-o com os mesmos sentimentos de nossa juventude, e a certeza de nos reencontrarmos em breve.
Do seu saudoso irmão,
Bartolomeu.”
No meio da plateia a jovem de longos cabelos ruivos percebeu a borboleta entrando pela janela. As delicadas asas, em tons brilhantes de preto e de laranja, fecharam-se e voltaram a abrir bem devagar, quando pousou em seu ombro.
Clara guardou na bolsa o aparelho celular para poder enxugar as lágrimas.
Sentado à mesa, no centro do pequeno tablado, o homem de roupa branca soltou a caneta e despertou do transe. Ao seu lado o auxiliar baixou um pouco o tom ao ler em voz alta as últimas palavras da carta.
Catia Garcia Schmaedecke, natural de Passo Fundo RS, é autora do romance A Casa da Grande Colina. Em 2018 concluiu o Curso Livre de Formação de Escritores da Metamorfose. Participou de coletâneas de contos. Em 2019 recebeu o 1º lugar na categoria Contos do Prêmio Nacional de Literatura dos Clubes. Há mais de trinta anos reside em Porto Alegre.
