OVNI NO LARANJAL, por Augusto Darde

As figueiras na Praia do Laranjal balançam as barbas na serventia urbana de fazer sombra aos carros estacionados. Nem todos que chegam saem para caminhar na calçada ou na areia, basta baixar o vidro e respirar a margem, assim como se faz no Cassino, onde enfileirar automóveis a dezenas de metros das ondas já é ir à praia.

O vento da água doce não faz grandes ondas, mas é ele que alimenta o ar de Pelotas e conduz a molhaceira das paredes, o afogamento sutil da garganta que tosse fácil pelo sul.

É um final de tarde bonito. O sol já bate fraco, embora sejam poucos os óculos escuros dispensados. A cor do céu a oeste combina com os pelos dos Golden Retriever farejando palitos de crepe suíço na areia grossa, a calçada está plena de crianças e famílias, os pais seguram no braço as térmicas rubro-negras e áureo-cerúleas, as mães trazem canecas plásticas no formato de personagens infantis.

Perto do trapiche, um pai de família pilota seu drone captando imagens HD. A tomada panorâmica lembra a foto clássica do Laranjal numa das paredes do Café Aquários. A facilidade com que o drone se desloca e o equilíbrio da iluminação parecem debochar do século XX, esse passado já distante, essas cores nostálgicas que insistem, no entanto, a dar gosto ao café da rua XV de Novembro. 

O drone se aproxima do futebol de areia, as crianças deixam o jogo para acompanhar o voo. A câmera registra olhares vidrados nas luzes verde e vermelho descendo, braços erguidos, pulos e risadas. Os ouvidos na praia ficam atentos ao som de enxame de abelha do pequeno helicóptero doméstico. Não se dão conta do pouso forçado em função da bateria descarregada.

O pai de família coça a cabeça e resmunga que o voo não chegou nem aos cinco minutos. Rodeado de crianças e não respondendo às perguntas afoitas, pega o drone e caminha em direção à caminhonete estacionada, faz sinal de negativo e dúvida à esposa, que conversa com a sogra na calçada. Fica ali por meia hora, tentando entender o problema.

Fechando o porta-malas da SUV, estranha os gritos repentinos e retorna os olhos à lagoa. As fotos nos jornais dos anos 60 não mentiram sobre o aspecto dos discos voadores. Ao sul, além do trapiche, uma brilhosa fatia de esfera se aproxima. Uns duzentos metros de altitude. Mais que disco ou prato, tem aparência de uma bolacha do mar porque, na parte de baixo, plana e voltada para a água, os feixes de luz são como inúmeras pernas locomovendo o objeto no ar. Apesar da tecnologia extraterrestre evidente, a impressão é de que se trata de algo que nasceu da água, que não vem de tão longe. Quanto mais se aproxima, mais se vê que o material é um misto de metal e plasma, dá a impressão de não ser um veículo bélico, mas um tipo de organismo. Lembra muito o disco voador do filme Fire in the Sky, de 1993.

Praticamente todos na praia empunharam os smartphones. O disco voador chega lento como deveria ser, em cautela estrangeira, parece desfilar para os registros em vídeo.

Surge um ruído, como um canal de televisão fora do ar. Ninguém desiste de olhar. O disco para ainda acima da água. O chiado é substituído por um tremor no chão. A Lagoa dos Patos recua da margem. É inacreditável: a água abaixo da nave levanta.

Algumas crianças, ignorando os gritos das mães, correm para a lama na margem abandonada pela água. A Praia do Laranjal nunca foi vista assim. Ninguém negaria a necessidade de registrar o fenômeno em foto. É uma pena que a iluminação já esteja baixa. Praticamente nenhum dos cliques serviria para decorar o Café Aquários. No entanto, um jovem empreendedor, que é fotógrafo e proprietário de restaurante & galeria de arte, está no local com a sua inseparável câmera full HD cujo sensor possibilita tirar fotos à noite sem ruído a um ISO de até 25000. De joelhos na areia, ele já imagina uma exposição permanente com o tema Laranjal Sci-Fi no mural do seu estabelecimento.

Sem aviso, um feixe se projeta da nave até a margem. Mesmo as crianças mais desobedientes voltam correndo. O chiado para, a luz se intensifica. Na mesma abertura por onde sai, algo se revela. É pequeno. Dois pés. Quatro. São seis pés. Seis pernas: um ser bípede e um ser quadrúpede que o segue. As pessoas não atinam para o vento com cheiro de metalurgia. Lembra sangue.

O ser bípede desce à frente. Puxa o quadrúpede por uma corda. Eles vêm devagar como um pôr do sol. Passos são ouvidos. Como pode isso de passos darem som em cima de feixe de luz? Acontece que deram. Os pés do bípede, descalços. Os do quadrúpede, ferradura. É isso: um cavalo sendo puxado por um menino. Veste uma bermuda larga e desbotada. Eles chegam perto da areia. Param.

Agora já se vê bem, um dos refletores do futebol de areia ajuda: quem saiu do disco voador é uma criança negra, cerca de dez anos, manchada de carvão no rosto, repleta de cicatrizes no corpo.

A Praia do Laranjal está em silêncio absoluto. O menino olha nos olhos de cada pessoa, do trapiche à rótula do norte. Ninguém tira o olho dele. O cavalo, atrás, dá uma relinchada mansa, tão familiar quanto o canto dos quero-queros no pampa.

O menino quebra o silêncio: 

– Só assim pra vocês olharem pra mim, né?

(Junho de 2019)

Augusto Darde (Lajeado – RS, 31 de janeiro de 1984) é professor de francês, mestre e doutorando em literatura francesa pela UFRGS. Em paralelo à produção acadêmica, é escritor, tendo publicado o volume de poemas “As bergamotas começaram” (Edição do Autor, 2014) e o livro de contos “Ali onde a nuvem começa” (Modelo de Nuvem, 2018). No momento, prepara a publicação do seu primeiro romance.

FICÇÃO

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