PANDEMÔNIO EM QUARENTENA, por Jorge Rein

ORIENTADOR

Daí? Todos ligados? Tiveram alguma dificuldade com o Zoom?  Fomos obrigados a adaptar a disciplina de escrita criativa, evitando os encontros presenciais. A peste já levou alguns dos nossos melhores escritores, mas, em compensação, poupou todos vocês. Ao menos até agora. Talvez não seja justo. É um vírus insondável. Enfim, aproveitem a chance.

Vocês oito foram os escolhidos para esta experiência de trabalho à distância, que consiste em criar uma narrativa que seja, ao mesmo tempo, individual e coletiva. A ideia é elaborar um conto reproduzindo a estrutura de um cubo. Cada um de vocês deverá desenvolver, em uma única lauda, uma personagem que representará um dos vértices do cubo. Isso significa que cada personagem precisa estar diretamente ligada a outras três e, indiretamente, a todas as demais.

Ainda que a temática seja livre, a situação atual da pandemia deverá permear, ou então contaminar, a narrativa. Como ambiente ou contexto, pelo menos. Esse é o desafio geral.

Individualmente, vocês receberão um mail personalizado, com as características básicas da personagem que lhes coube. Também foi previamente determinada a posição de cada um dentro do esquema do cubo, especificando com quais colegas deverão se relacionar diretamente na construção do enredo. Tentei distribuir os papéis da pior forma possível, para obrigá-los a trabalhar com realidades e personalidades bem diversas daquelas a que que estão habituados.  É nisso que consiste o exercício pleno da ficcionalidade. É o ofício do ator no ato de incorporar uma persona alheia até torná-la própria sem contar com o auxílio de um dramaturgo na criação das falas.  Estão sozinhos nessa, assim como hoje estamos em nosso isolamento obrigatório. Não é exatamente o distanciamento brechtiano, porém, não fica tão longe.

Mas na verdade não, não estarão sozinhos, porque tentaremos estender pontes de uma relativa interatividade. O intercâmbio permanente de rascunhos, já nos primeiros passos do processo da escrita, permitirá que modifiquem ou adaptem suas próprias narrativas de acordo às dos colegas, à procura de eliminar contradições e obter certo grau de coerência da obra como um todo. Eu mesmo orientarei esta ginástica literária, ainda que interferindo o mínimo possível. Porém, devo ser implacável recomendando abortos, devolvendo à cozinha pratos mal preparados, amputando adjetivos. Retalhar, sangrar, extirpar. Piedade não tem nada a ver com o rigor artístico. A clemência é acrítica e hipócrita, porque empresta nobreza ao ato de humilhar quem foi rendido.

Caberá a mim, também, precisar o momento em que o corpo do texto deverá ser considerando acabado, restando apenas a finalização, etapa para a qual todos serão novamente convocados a participar de um encontro virtual. Nessa oportunidade, cada um de vocês apresentará uma opção de encerramento da obra. E que o consumidor escolha a que mais lhe agradar.  

Para finalizar, não esqueçam a premissa básica na qual venho insistindo desde a aula inicial: o conto não é um pássaro cativo na gaiola, é apenas o registro da visão instantânea do seu voo. Por isso a brevidade é condição do conto bem logrado e, quando ele não é bom, torna menos penoso o sofrimento impingido ao leitor.

Agora vão com Deus. Se cuidem. Fiquem em casa e lavem bem as mãos.

M.

Chove. Não é uma constatação. Nem mesmo uma metáfora do que me vai por dentro. Me domina a ficção. Me predomina. Lembranças distorcidas são a matéria prima de todos os meus delírios. Meu compromisso com a realidade é próximo de zero. É a verdade que mente.

Não consigo chamar de adivinhação, mas de pressentimento. A peste estava em mim um ano atrás, quando mandei construir este anexo da casa, uma ilha transparente de cristais e reflexos suspensa na bocarra do despenhadeiro, meio caminho andado entre os céus e os infernos. O lugar ideal para um confinamento do qual conheço apenas o começo. O vírus fica à espreita do outro lado da fronteira de gelo. Sou eu que estou no frasco de remédio ou veneno. Sendo assim, não me queixo.                                                      

Chove. Chove não. Se ainda tivesse ânimo de erguer o meu olhar e atravessar com ele o telhado de vidro, perceberia, no desanuviado firmamento, aves de arribação lá se esbaldando, um que outro brigadeiro e a versão alada de extintos dinossauros. Mas a hipnose do abismo é tão intensa que não consigo desgrudar o nariz da aderência gelada do assoalho. E me deixo pairar como se fosse impune desafiar o mau hálito da garganta do diabo.

Sendo assim, não me queixo. Meu pecado e estar velho, mas há outros que se arriscam para que eu sobreviva à angústia destes tempos. Médicos e enfermeiros, os garis, os coveiros, os rapazes da entrega, os carteiros… Se lhes dedico um poema, pareceria deboche. Por isso nem escrevo. Chove, mas eu estou seco.

Chove. É a única palavra que consegui digitar na madrugada toda de trabalho. Bons dias aqueles em que a representação da ansiedade ficava resumida à palidez inane de uma folha em branco. Já o palpitar do cursor é uma bomba-relógio tripudiando da fonte que esgotou, das musas que abandonam o navio-fantasma como ratos ao primeiro sinal de cheiro de naufrágio.

Sim, a doença tem cheiro de um álcool que eu não bebo. Outros talvez se embriaguem desse elixir nojento, por falta de genebra e de alimento. A rua é um perigo a céu aberto. O povo anda de máscaras, um carnaval sinistro que disfarça os trejeitos.

Chove. “Lhueve”, pronunciava a nossa professora de Idioma Espanhol no Ensino Médio, pregando com o exemplo de uma frase completa reduzida à solidão de um termo. Entre outros mistérios, ficáramos sabendo que fora demitida de um colégio de freiras por afirmar, em aula, que a existência de Deus dependia da Literatura, não o contrário. Esqueço rosto e nome. Minha memória guarda apenas o essencial: a boca, o beijo. Porque emitia as sagradas palavras movimentando os lábios amorosos, a língua divagando entre o céu da boca e seu inferno de um jeito, ao mesmo tempo, meigo e intenso. Talvez venha daí meu ateísmo e a determinação de um dia virar verbo, só para ser matéria desse beijo.

Mas hoje não é o meu dia e prego no deserto. Não defeco uma frase, muito menos um verso.

Chove. Não chove. São unhas de exaspero, ainda que bem tratadas, arranhando a superfície externa das paredes deste iglu transparente em que feneço. Só poderia ser Sandra, salamandra esquecida no quinto dos invernos. Ou talvez fosse o vírus, tiritando de frio, de febre, de sedução, de medo.

R.

Testo a fragilidade do cristal do casulo tamborilando os dedos. Ele demora um século. Marcel, sinto dizê-lo, é uma mosca branca aprisionada em um cubo de gelo. Faz frio em mim quando ainda me toca, o que acontece a cada noite menos. Não há crime sem bênção. O amor é cego, Aurélio. Aproximo a bandeja da abertura, assim como faria um carcereiro. Temo contaminar-me e logo me recolho à banal segurança do meu próprio universo.

As ruas estão desertas. Proibida de sair, fico penelopando mantas e pesadelos. A ausência de massagens, tua ausência, Aurélio, me dói no corpo inteiro. Pior ainda o convívio obrigatório com alguém que já amei e hoje em dia desprezo. Lavo as mãos toda hora até enrugar a pele, como trago enrugado o sentimento. Se tomo tais cuidados é porque a minha intenção, firme como uma rocha, é a de conseguir sobrevivê-lo. Ele, porém, nasceu tão egoísta que permanece alheio aos meus maus-tratos e atropelos. Duvido que desconheça o teor dos meus segredos. Se faz de indiferente porque acredita que sou incapaz de levar a mau termo os meus intentos.

Faz tempo que promete parir a obra definitiva, mas nem grávido está, que eu lhe conheço. O marfim da sua torre é da mesma matéria dos espelhos. Narciso cultivado num viveiro. Alma cega regada com a chuva que a almácega recolhe do declive do teto. O amor é cego, Aurélio.

Cego como a vontade de ignorar os degredos e ir ao teu encontro, me entregar aos teus dedos. E que a doença se esbalde entre os nossos desejos. Sei que o cão nos espreita, porque ele não é cego e fareja de longe tudo o que cheira a sexo, no atacado ou varejo. Depois vai na tua mãe, certamente no afã de delatar os nossos feitos. É da sua natureza, assim como a do vírus é a de levar à morte seus enfermos.

Todo mês ainda chega o cheque da editora e o malote das cartas que por enquanto rende seu único sucesso. Só o agente é que conhece o endereço. Só ele e o Isidoro, o arquiteto que contratei para fazer um laudo técnico sobre a sustentação do anexo de cristal debruçado no abismo. Ele me advertiu da provável fadiga do metal dos tirantes. Eu lhe fiz prometer guardar segredo. Tudo na vida é risco e é desejo.

Todo mês abro os envelopes com a adaga que imita o espadim dos acadêmicos. Resenhas elogiosas, convites para palestras e debates, e as eternas saudades de uma ruiva tão remota que, a estas alturas, só carregando as tintas nos cabelos.  O ciúme nunca foi meu território, mas a correspondência sempre ajuda a manter o fogo acesso. Por isso jogo o lixo na lareira e afundo na poltrona de felino aconchego. Marcel com suas novelas e eu com meus novelos. Ariadne por um fio. O amor é cego, Aurélio.

Mas nem tudo são flores. Também chegam missivas com críticas furiosas, acusações de plágios, ameaças, processos. Eu posso ser censora, mas não a tal extremo. Essas aí eu preservo. Então, coloco as cartas na bandeja, junto com as torradas, o álcool em gel e a xícara do chá que ele prefere. Eu mal suporto o cheiro. Me encaminho à redoma e tamborilo os dedos até ele acordar dos devaneios. A camomila quase sempre tempero com duas gotas. De adoçante, antes fosse veneno. O amor é cego, Aurélio.

A.

A mãe disse lelinho –assim que ela me chama quando não está de mal– aurelinho mijito a cretinice é um dom. Sempre finjo que entendo, de bom filho que sou. De pequeno, me trancava no armário se recebia alguém. É um dom que deus premia com a compensação. E lá eu adormecia, abraçado a um vestido de baile ou a um roupão, conforme me calhasse ser festiva ou doméstica a função.  Deus está nas tuas mãos. Pela fresta da porta se infiltrava a indecência dos sons de suas pequenas mortes celebradas esmurrando o colchão. Mais acima à direita não a outra direita aí mesmo con más ganas acho que tem um nó assim dios mío como é bom. Mas isso se acabou assim que o danado do bicho começou a nos rodear feito um lobo feroz. Na TV uma pastora até recomendou a masturbação. Eu sei do que se trata, que tão bobo não sou. Aí a mãe sossegou.  Mas antes, de criança, me levava a passeio e me esquecia nos balanços das praças, na estação do metrô. O caminho de volta é por tua conta deixa o instinto guiar avança e não me olha para evitar que eu vire uma estátua de sal. Nunca me dava a mão, como se a envergonhasse a devoção filial que eu lhe dedicava daquele jeito manso que só um parvo é capaz. O pudor feminino é um defeito visual às cegas ou a media luz é que a fêmea se entrega sem reservas morais. Cresci à sua revelia, demorei, mas hoje a tenho nua, de bruços sobre a maca, vulnerável, pobre criança indefesa, toda à minha mercê. Haja disposição. Vira e mexe repouso meu nariz no seu colo, com saudades do cheiro da casa em que nasci. Praticando essas artes foi que eu descobri um segredo que ofereço a quem se interessar: por um instante apenas, ao atingir o orgasmo, os dentes das mulheres diminuem de tamanho. Qualquer outro sinal pode ser fingimento. Minha mãe, nessas horas, é um espasmo e um jato que me umedece as mãos. Não me olha fica ciego que eu agora percebo que a cegueira é o segredo na tua profissão. Achei que ela troçava de mim mais uma vez, mas na manhã seguinte já tentou me agradar com óculos escuros, uma bengala branca e um pastor alemão. Por ser babão, por não caber-lhe a língua boca adentro, e até pelo budum, me fez lembrar de tito, um amigo de infância, colega de aula na escola especial. Mas dava dois daquele o danado do cão. Então, chamei titão. Me fantasiei de cego, cerrei os olhos e fui logo ensaiar na frente dos espelhos geminados do buduar.  Mas ficava difícil perceber se enganava o reflexo sem olhar. Não fosse a ordem de distanciamento, agora mesmo eu estaria na rua, ameaçando crianças com a vara, tirando os óculos e revirando os olhos para espantar os miúdos, que não oferecem lucro algum para o negócio. Às damas sim, entregaria o panfleto, acrescentando algum gracejo relativo à beleza de cada uma delas, só para provocar o espanto e mais o arroubo que precede a sedução. Àquelas relutantes pediria o favor de me ajudarem a atravessar a avenida, O contato direto é sempre um chamariz. Depois aguardaria com paciência que viessem cair nas minhas mãos. Mas, com a tal da peste, estamos recolhidos, a mãe e eu. E também o titão, que é feito sarna, mas é de estimação. Nem mesmo Romi, aquela moça do olhar amendoado e triste, que é cliente cativa, veio me procurar. 

T

Durante muitos anos –a Ciência recomenda que eu os deva contar de sete em sete– me dediquei a guardar Portões e Labirintos do Palácioepiscopal. Já vi de tudo nesse Mundodedeus. Se não saio alardeando não é por Fidelidade ao Antigopatrão– Qualidade que algum Zoólogomíope enxergou– mas por causa da minha Dificuldadeinata de Expressão.

Não vá pensar o Leitor que é Estiloliterário o abuso nas Maiúsculas e o Amontoadodepalavras. Posso parar agora, se isso o incomodar. É apenas o resíduo do sotaque da língua que comanda meu DNA. Me orgulho de ser descendente direto de Horand von Grafath, também conhecido como Hector von Nürburgring. Não é pouca coisa, não. Relevantes serviços minha estirpe prestou à humanidade, que nem sempre a entendeu.

Áureos tempos aqueles. Duas vezes ao dia passeava com o bispo nos jardins. O baixo clero decerto não aprovava tamanha intimidade entre padre e pastor. Latiam em latim nas minhas costas. Eu me fazia de surdo, apesar de acurado na audição. A caravana passa, meu senhor.

Passava, digo eu. Hoje em dia sou uma fraude. Ergo a patinha e vou soltando o mijo aos pés dessa árvore genealógica que nem sombra me dá. Virei cão-guia de um falso cego. Não existe, na escala darwiniana, mais baixa condição. Ao menos as clientes não se importam que eu fique de olho enquanto elas se despem. Nem suspeitam que, apesar de ter tido por alcunha Bischofhund, não aderi ao voto de castidade e farejo os aromas do cio quando elas ainda estão no corredor.

Meu novo amo, Aurélio, mesmo parvo de babar feito um cão, deve ter seu lugar assegurado no mais alto degrau da evolução, porque possui um balbuciar bastante parecido ao dom da fala e as pacientes afirmam que não há quem o supere nos milagres do uso do polegar opositor.

A ele fui cedido em absurda doação, coagido que foi o bispo por uma antiga amásia, mãe do cego em questão. E aqui estou eu, partilhando do mesmo cativeiro com essa dupla de espécimes de uma raça inferior. Haja visto que o vírus nem me atinge enquanto eles se pelam de medo da contaminação. Se me restasse, ao menos, o consolo de ser um bom agente transmissor…

Enfim, eu vou levando. Rareiam os passeios, mas a dona da casa se vira na cozinha. Nunca comi melhor. Como e durmo. É o mesmo programa do parvo do meu cego nestes dias de doméstica prisão. Mas ele pelo menos se interessa por essa sucessão de manchas coloridas vomitadas pelo televisor. Já eu…  

 E o bispo a todas essas? Deve estar rezando para a praga não pegar na sua igreja. É que andam dizendo que é castigo de Deus. São os mesmos que teimam que a terra é uma planície e que Darwin não passa de um macaco inventor. O bispo não. A gente debatia questões de teologia de igual para igual, que eu nunca contestei sua hermenêutica nem sua erudição.

Nos danamos os dois. O bispo agora deve caçar com gato. Talvez seja melhor, considerando os ratos que infestam seus porões. E eu aguento o babão. Mas, me chamar Titão já é um acinte. Tenha dó.   

E

Tempos bicudos. Nas ruas paira o medo. Para ir às compras, apenas do essencial, cruzo com os vizinhos. Percebo agora como é fundamental que me mostrem a boca para identificá-los. E não é só isso. Se os olhos são as janelas da alma, as bocas são as portas do humor e da intenção. Mascarados, somos como fantasmas e a ameaça do assalto ou do sequestro não é de descartar. Furtiva, escolho as batatas e os ovos. Óleo ainda tenho em casa e não preciso mais. E é melhor não gastar, que a freguesia de Aurélio mal dá as caras nesses últimos dias e a gente nem suspeita quando é que a pandemia aliviará.

Já em casa, cato o livro de receitas, herança de mamita, que Deus a tenha livre da falta de ar. Também ligo a tevê, por companhia. Se cortan las patatas en láminas pequeñas. O escritor do momento estrela o seu quarto de hora de fama no programa de entrevistas. Filmam ele na sala da sua casa, que ninguém ousa sair do seu lugar. Também passam as vistas pelo estúdio, que mais parece uma bolha de cristal. Se fríen muy despacio en la sartén. Eu nunca o vi mais magro. Se o gajo andasse nu… sussurram as más línguas ao pé do ouvido interno, lusitanas que são no linguajar, apêndices vibráteis de deboche e escárnio de uma consciência à toa que, nas piores noites, não deixa eu sossegar. Se sazonan y se pasan al bol en donde están los huevos ya batidos. Eu nunca o vi mais gordo. Mas a imagem já não era lá aquelas coisas e a palha de aço que grudamos na antena acho até que piorou. Se pone todo eso, con el resto de aceite, en la sartén.  Plantada no sofá, do lado do escritor, majestosa, imponente e inútil feito um vaso da dinastia Ming, uma vênus asiática. Quem ele pensa que é, o Borges ou o John Lennon? Fuego rápido y dele revolver. Que eu saiba, não privei, ao menos sóbria, com nenhum desgraçado com nome de Marcel, mas ele faz o resumo da ópera e conta a minha história como se fosse eu. Inventa que é ficção. Mesmo assim, a Igreja fez um escarcéu. É óbvio que a protagonista não atende pelo apelido de Fani. Talvez tenha mudado o próprio nome. É um direito de autor. Vasculho na memória, mas nunca fui boa fisionomista e foram tantos os que, no bom ou mau sentido, já passaram por mim.  Un movimiento de vaivén, un buen malabarismo y al otro lado. Ou eu que passei por eles, porque não me deixaram nem marca, nem saudade, nem rancor. Se me restassem dúvidas, não iriam resistir ao jogo de palavras com que encerra a entrevista, confundindo as meninas dos olhos e as pupilas ao referir-se ao padre confessor. Do jeito que eu fazia para açular o cio adolescente nas aulas de espanhol. La tortilla está pronta, jugosa y tostadita, como toda tortilla debe ser.

Aurélio acaba de atender sua única cliente do dia. Provavelmente alguém que não aguentou. A freguesia aumentou desde que ficou cego. O olho é o único órgão sexual cuja penetração muitas fêmeas dispensam na hora do vamos lá. O que as mulheres querem é um eunuco visual. Mas a peste espantou a maioria delas. Massagem, nunca mais.

”Lelinho, niño mío, vem que já está na mesa! Não vai deixar esfriar. E convida o Titão, que está de rechupete e ele vai apreciar. Mas antes vê se lava direitinho essas mãos. Deus sabe em que imundícies elas foram se enfiar”.

A entrevista acabou. A tela mostra os gráficos macabros da curva da doença. Ainda é o vírus que vence de goleada.

¡Puta que lo parió!

N

As notícias que recebo de Roma não são alvissareiras. O corona acabou com o turismo, o Papa reza para a praça deserta e os cadáveres tingem de luto a alegria do vinho que até ontem fazia os convivas cantar. Ex abundanctia enim cordis os loquitur.

Quanto tempo nos resta até o maldito vírus chegar aqui. Omnia fert aetas. E nós não temos suficientes sacadas nem tenores para afastar o mal. Só temos a mandinga e olha lá,

O pastor anuncia uma visita. Canes timidis mas entendo sua língua. Por isso é que começo a transpirar antes mesmo de chegar à catacumba onde ela me espera, porque o assunto é confidencial.

Rainha Branca ameaça Bispo Preto. Assim na vida como no xadrez. Epifania –ainda me recuso a reduzi-la ao vulgar apelido de Fani– não frequenta o palácio de pórticos e arcadas. Do outro, o da memória, ela não quer sair. Senectus est velut altera pueritia. Mas sua boca é a mesma nas duas dimensões. Percebo quando beija o meu anel. Assim beijava o báculo na solidão do claustro do convento em que a conheci.  Vão se os dedos na artrite, mas as vontades não. Dicitur ignis homo, sic femina stupa vocatur; insuflat deamons     

Não existe a vocação. Minha avó era devota de São Benedito. Acho que pela cor, embora ela afirmasse que era pelos milagres da multiplicação dos peixes e dos pães, prodígios para um Cristo e não um santo menor. Tanto fez que na crisma mudou meu nome de Lorenzo para Núncio, o que, ao longo da carreira religiosa, me criou mais de uma confusão. Aquilo não era alcunha, era uma imposição. Morreu dois dias antes da minha ordenação. Não foi a primeira vez que duvidei da existência de Deus. Fallacia alia aliam trudit.

Rainha Branca ameaça Bispo Preto. Fani me trouxe um livro de presente. Desde sua adolescência não dá ponto sem nó.  A obra é candidata ao Index Librorium Proibitorium, o que é uma honraria literária nestes tempos sem Deus.  O que ainda me salva é o anonimato, mas sei que ela é capaz de dar nomes aos bois. Hipócritas os dois. Eu chamo caridade o que ela denomina de pensão. E ainda tem o desplante de carregar consigo o meu pastor. Me deixa órfão. Não há dinheiro que pague o perfeito silêncio de um interlocutor.

Mas senectus est morbus. Se a doença me pega, não vou lhe resistir. Epifania é uma alcunha apropriada para o anjo da morte.  Ela disse que o filho é a minha cara. E até trouxe um retrato. Eu não quis conferir. Com vírus ou sem vírus, estou perto do fim.

Só me resta buscar algum refúgio amável nas lembranças do tempo em que eu era seu padre confessor. Jejunus stomachus raro vulgaria temnit. A Irmã Sandra que se prepare para a noite. Deverá repartir o cabelo em duas tranças, vestir saia xadrez, calcinha de algodão e blusa branca um número menor do que o normal, meias até os joelhos, sapatinhos discretos… O rosto sem pintura, mas com uma expressão que poderá adquirir na inspiração de uma atenta leitura da obra de Nabokov que envio em anexo. Deve entrar sem bater. Episcopus dixit.

S

Querido Marcial:

Me acho no direito de não ser obrigada a te chamar Marcel. Tanta coisa mudou, mas isso não. A fogueira que ardia em meus cabelos e queimava tuas mãos já se extinguiu. Manter o fogo acesso à força de corantes não chega a ser um dos ossos mais duros da minha profissão. Até no ateísmo militante eu tive que fazer algumas concessões. Hoje frequento a igreja –jamais a sinagoga– em rituais semanais de corpo presente, mas não de coração.

Porém, algum resquício permanece das madrugadas em que dávamos pressa às urgências da carne para, livres dos corpos castigados no desconforto de um colchão miserável, poder logo sentar ao pé da cama, jogar conversa fora, que era o nosso jeito de nos fazer o amor.  Lembro das nossas vãs filosofias entre as quais, recorrente, surgia a inconveniência do teu nome para um autor surgindo dos rescaldos de uma ditadura militar. Não acredito que Marcel, que me parece um tanto afeminado, possa ter sido minha sugestão. Mas a memória nunca foi o meu forte, o que não deixa de ser um benefício na minha atual condição.

Às vezes me pergunto como seria hoje a nossa relação. Divago, que a quarentena admite apostar no jogo da imaginação. Teria dado certo? Não nasci para ser a grande mulher por trás de um grande homem e me anular exercendo essa função. Talvez o desafio funcionasse como incentivo e eu também escrevesse o livro de memórias que ainda estou a me dever. Lembranças inventadas, creio eu, que a minha memória…  Acho que já falei.

Ainda prefiro as vitrinas das livrarias às de lojas de roupas ou de cosméticos, que visito por obrigação. Nem o curso de Letras conseguiu dar um fim na minha paixão pela literatura. Pelo visto, nem nas tuas veleidades de escritor. Reconheci teu rosto no retrato da contracapa de um livro e mais tarde, nas páginas, encontrei a obsessiva história da tua professora de espanhol. Tenho a vaga lembrança de ter colaborado com algumas opiniões na origem desse texto, mas já disse que a minha memória… Esqueci.

Quando nos afastamos, depois da formatura, casei com Isidoro, um arquiteto muito competente em qualquer construção que não fosse a de uma relação. A nossa desabou. Falha nos alicerces ou no cálculo da estrutura de sustentação. Eu queria um filho, que levaria teu nome, e ele me trouxe um cão. Por aí dá para tirar a temperatura do nosso casamento. E ainda a suspeita de que tivesse um caso com a terapeuta, que, em séculos de análise, pouco e nada adiantou.

Por não ter teu endereço encaminho esta carta ao editor.  Já escrevi várias outras sem resultado algum. Espero que esta te chegue e que te encontre com a saúde em dia, dadas as circunstâncias. Eu estou me cuidando. Saio de casa só quando acaba o vil metal. Tenho que me virar. O corpo a corpo é um risco que preciso assumir.

Queria te encontrar, jogar conversa fora, que era o nosso jeito de nos fazer o amor. Se os corpos o exigirem, meu colchão melhorou.

Sandra

I

Prescrição da analista: falar de mim na terceira pessoa. Óbvio que singular. No meu caso, uma única personalidade já é até demais. Um prato cheio para alimentar as fomes lacanianas da doutora, vício profissional. O que sei de Lacan é que foi um sogro generoso. Nem quero saber mais. Transferências à parte, costumo fantasiar com a Dra. Ana no divã. Não deve ser difícil me afastar de mim mesmo. É a reação que provoco ao natural.

Se estou ­– ou se Isidoro está- aqui e agora, é pela solidão. E também pela falta de conhaque, que a garrafa que ele tinha escondida no armário já secou. Alguém falou desse bar clandestino, num porão, furando as proibições da quarentena. Fez lembrar da lei seca, que inspirou tanto filme de ação. A verdade é que cai bem melhor um bom gole de conhaque do que uma colherada de álcool em gel. Então…

Posso lhe oferecer mais uma taça? É um clássico, não é? O freguês que só quer alugar um interlocutor, de preferência mudo, sem a mínima intenção de penetrar qualquer outro orifício que não seja o do ouvido. Sempre sai mais em conta que a sessão. E ajuda tanto quanto, pode crer. Por mim, preferia trepar com a Dra. Ana e me confessar com você.  Não leve a mal.

Aliás, vamos manter a distância regulamentar. Me incomoda uma tosse persistente e ando com falta de ar. Talvez seja só pânico. Me apavora a ideia de acabar os meus dias, por mais tristes que sejam, entubado num leito de hospital.

Chegando em casa, Isidoro encontrou o bilhete preso com alfinete na maçã de cera que arrematava a natureza morta exposta na fruteira. Fruto proibido de vergonhosa vermelhidão. Dependendo do dia, era o mamão ou a pera que mereciam destaque. Semáforo perfeito dos humores de Sandra. Mas ele era um idiota quando se tratava de interpretar sinais. “Take easy, Isi”. Apenas três palavras no bilhete. Se pelo menos fossem aquelas do bolero: “Cómo me gustas”. Mas é claro que não. Sandra o abandonou. Ela almejava um filho, que chamaria Amílcar. Mania de anagramas, que para isso servem os cursinhos de Letras. Para isso e pouco mais. Mas eu…, quer dizer, Isidoro… ele abominava a simples intenção de procriar. Não perdoava seus pais. Então arranjou um cachorrinho, um filhote de pastor alemão. Uma gracinha! Quais as chances reais dele ser descendente direto do cão lobo de Johanna Bormann ou da cadela Blondi? Mas Sandra os enxotou, como se fossem eles (Isidoro, o cachorro) que tivessem descarnado, em Auschwitz, os ossos insepultos dos seus bisavós. 

Larguei o filhote no portão de um convento. Um cartaz anunciava que aceitavam doações. Cheguei em casa e achei a maçã, o bilhete… Sandra não.

Procurei algum consolo numa viúva de marido insepulto que me devia um favor. Foi mais curiosidade que vingança. Era nissei a moça e eu tinha ouvido falar que a mulher oriental tem a vagina aberta na horizontal. Mas Romi era normal.

Então, nos encontramos na próxima semana? Imagino que sua agenda seja muito apertada. Mal casadas e viúvas, solteironas e pederastas disputando, a tapa ou beliscão, seus dotes e atenção. E agora mais eu. Mas talvez tenha menos tarado em tempos de pandemia e possa me encaixar. Ainda não acostumei com esse negócio de terceira pessoa. Vou ter que praticar.

OITO OPÇÕES PARA A ESCOLHA DE UM FINAL

R.

O medo de sair da quarentena é o que me retém. Sei que o vírus me espreita, mas preciso me arriscar a viver. Mais dia, menos dia, a casa vai ruir. Ainda escrevo um bilhete. Deixo no aparador, junto à carta da ruiva que, pela primeira vez, não destruí. Arrumo a mala e saio porta afora. O mundo ainda está aí. Jogo a máscara fora. Prefiro respirar. Custe o que custar. Cães e gatos tomam conta das ruas e na esquina me espera um pastor alemão. Eu me deixo guiar.

A.

Hoje a mãe tirou o dia para me azucrinar, como se não bastassem as notícias das mortes no jornal. Quem mandou não abortar? É muita cruz para eu carregar. Tento me fazer de surdo, além de cego, mas já é fingir demais. Tudo ela leva a mal. Síndrome de abstinência, deve ser. Com a história da peste, ninguém vem visitar. Cretino como el padre. Mentira, digo eu. Ela nem sabe de quem engravidou. Vai ver que estava de costas na ocasião. Se o vírus por acaso me levar, não vai nem conseguir se sustentar. Ela que pensa. Eu confio na força e na habilidade das minhas mãos, que vou logo fechando em volta do pescoço da megera e começo a apertar. Em dias de síndrome respiratória aguda, ninguém vai suspeitar. Batem à porta. É Romi carregando uma mala. Não resisto ao gracejo: vou de mala a pior. Titão é testemunha, mas nem sabe falar.

E.

Em sonhos muitas vezes se encontra a solução que a vigília nos nega. La vida es sueño, ya dijo Calderón. Depois de tanto escuro, veio a luz. Um lampejo no meio de um banal pesadelo e consegui lembrar do gajo aquele que escreveu sobre mim. Foi meu aluno séculos atrás. Já não tenho mais dúvidas de ser a fonte da sua inspiração. Um aluno medíocre que pousava seu olhar nos meus lábios, talvez para tentar captar os truques da pronúncia da língua espanhola. Seu nome era Marcial, se lembro bem. Nunca esteve no rol dos convidados a embarcar na minha cama. Vai ver que foi vingança o que escreveu. Não celebrei a descoberta. Más bien me aborreceu. Lelinho levou as culpas. É isso que costuma acontecer. Mas o coitado gosta de apanhar. Tanto assim que responde as agressões com a meiguice do seu olhar mais parvo que o habitual. E ainda ensaia um carinho segurando meu colo entre suas mãos. Batem na porta, mas eu já não ouço mais. 

T.

Prefiro a alcunha de Lobo da Alsácia, porque Pastor Alemão pode dar lugar a mal entendidos de cunho religioso dos quais tento me abster. O vírus não me afeta e consigo passear, quase sempre sozinho, pelas ruas e praças desta cidade em pânico. Há cadáveres empilhados nos becos. Os coveiros não dão conta da demanda. Abrem covas em série, como se fosse uma linha de produção. E os cães farejam o que restou dos donos com fidelidade e devoção. Eu não. Cumpro algumas pequenas tarefas para justificar minha ração. Agora, por exemplo, vou escoltar uma cliente do meu amo que me aguarda na esquina. Mas ela está de mala. Mau sinal.  

N.

Quando a praga era apenas uma ameaça geograficamente distante, “alta a longe cognoscit”, confessei ao meu pastor o receio de que a doença fosse um castigo divino, por estarmos vivendo em uma Sodoma global. Ele chutou um cascalho, gesto que eu traduzi como significando “qui est sine peccato, primum in illa lapidem mittat”. “Mea culpa”, conclui. Ele franziu o focinho, não sei se concordando ou se foi uma mosca que pousou.

Hoje não tenho mais meu interlocutor. Já não oficio missa e o vírus bate à porta da igreja, ateu, desafiador. Desse jeito, isolado, a fobia do claustro me pegou. Apenas a Irmã Sandra, com os seus falsos hábitos cobrindo as fantasias, convence o velho frade que assumiu a portaria. Ele faz vista grossa, apesar da miopia, e deixa ela adentrar.

Dos disfarces da Sandra prefiro o de enfermeira. Qui furtim accipit, palam exsolvit. Mas nem sempre estou a fim. A idade cobra em brios o excesso de desejos daquele que pecou. Unius peccata tota civitas luit. Então, só conversamos. Ela é uma moça lida e eu gosto de lidar. Outro dia enxergou o tal livro proibido na minha mesinha de cabeceira. Me disse que já leu, que quando era jovem conheceu o autor. Ao que tudo indica, não me identificou. “Grazie Dio”, digo eu, e lhe pedi um enema para acabar de vez com a constipação. 

S.

Marcial/Marcel:

As coincidências são a minha religião. Decidi botar fora o que ainda restava do Isidoro após a separação e, no meio de projetos amassados, achei teu endereço. Estava numa planta rabiscada com os códigos, para mim insondáveis, do que parecia ser um cálculo estrutural. Que chamem de destino ou do que for.

Esta é a última carta que te envio antes de partir na expedição de caça em que confio que sejas meu troféu. Ainda dá tempo de consertar o erro que cada um de nós cometeu ao casar. Vou só aguardar que afrouxem as regras do isolamento social e que seja novamente permitido andar na rua, abraçar, beijar e tudo mais. 

I.

Não vou tirar a máscara em respeito ao amigo. Posso estar transmitindo a infecção. Estou cansado e com febre. Cabeça, tronco e membros, tudo dói. Acho que me pegou. Se for culpa daquela japonesa, eu sou merecedor. Somos os dois. Não conheci o marido. Acho que é escritor. Trabalha num anexo que mandou construir como se fosse um dente transparente, avançado da casa, pairando sobre o cânion. Não sei quem projetou. A pedido da esposa eu vistoriei a estrutura um dia que ele não estava. Aquilo vai ruir qualquer dia desses. Eu prometi segredo para a futura viúva. Mas tudo tem um preço. Ela já me pagou.

M.

Na ociosa solidão da quarentena elaborei esta trama. Ficção sobre ficção. Criei cada uma das oito personagens e mais o Orientador. Afinal, todo autor é um pouco semideus. Há sempre uma pitada de autobiografia voluntária e alguma outra pitada que vazou. A bolha de cristal pendurada no abismo, por exemplo, esse ventre translúcido em que se debate o feto do escritor, é um desejo antigo, quase uma fixação. Nascer/morrer na escrita é vocação. Chego a ouvir o metálico queixume dos tirantes cedendo, cesariana do vidro se rasgando em estrias, os deslizes da escarpa em erosão, e não mais me seguro. Lá vou eu!   

Jorge Rein vive em Porto Alegre desde 1971. Contista, dramaturgo, tradutor e poeta. Diversas premiações em todas essas categorias. Livros individuais e participação em antologias de dramaturgia, prosa e poesia. Obras representadas no Brasil e no exterior.

FICÇÃO

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