UM ÚLTIMO BONDE NA MADRUGADA, por Fernando Neubarth

Recém-formado, cursava o segundo ano de residência em clínica médica. Estava de plantão desde a véspera daquele dezenove de junho de 1985. Madrugada usual, intercorrências de sempre. Houve tempo para olhar a noite se esvaindo sobre a cidade através das janelas da área, então desocupada, que une as alas norte e sul do andar. Lá fora o vento assobia. Uma que outra coisa bate…

Através das rajadas do vento, começa a perceber um ruído uniforme, parelho, que cresce, cresce, progressivamente, se avoluma…

Mal acredita. Conhece o som, da infância, quando vinha com o pai à capital. Parece absurdo, anos se passaram, há muito foram retirados, mas…

É o bonde! Vai se aproximar, vai passar… Põe os ouvidos bem atentos. O barulho do bonde é um contraste: é cedo lá fora, há vida…

O bonde está perto. O seu ruído domina o ruído do vento…

Não há mais dúvida, resta sobressalto.

O barulho torna-se claro agora, francamente sonoro, metálico. Sente-se bem o rodar das rodas sobre os trilhos.

– Rodas? Trilhos? Bondes? No hospital?

O ruído está diminuindo… Cessou de inopino, com uma espécie de baque. Um silêncio… Alguém desceu. De novo, de novo o barulho, que se abranda, se ausenta, se acaba…

De todas as experiências que vivera, até então e desde lá, essa talvez, poderia chamar de fantástica. – De onde, o ruído de um bonde? Do cansaço, do sono, da luta constante contra a doença, a morte à espreita? O vento desfraldando lembranças, bulindo cinzas, revitalizando braseiros, confundindo tudo. O vento, outra vez o vento.

Teria ouvido? E por que não? Não fora através daquelas vidraças que, há menos de um ano, vira a neve espantar a tarde de agosto em Porto Alegre?

Busca o corredor. Defronte ao posto de enfermagem vê o tipo. Um pobre homem. Humilde, perguntava pelo estado do paciente quase se desculpando. – Está na mesma – a moça do balcão não chegou a levantar os olhos. – Eu poderia visitá-lo? – perguntou, em tom de súplica, quase um sussurro. A atendente examinou-o: – O senhor é o que dele… Parente?

Ele procurava se explicar. Não sabia se poderia se considerar um parente. Também não viera pedir dinheiro emprestado. Devia sim, não negava. Ora ao leiteiro, ao José da padaria, Dona Nenê do Secos e Molhados. Mas não a ele: – Coitado. Está muito mal, não é?

A enfermeira se aproximou: – O senhor quer ver quem?

Eu vim visitar o… – Não terminou a frase, cortado pela voz anasalada da atendente, floreada pelo sotaque alemão da colônia e um chiclete de hortelã: – O do fundão. E identificou o paciente pelo número do quarto, o último do longo corredor.

Agora quem o olhava de cima a baixo era a enfermeira. O homem brigava com as próprias mãos, indefinido em escondê-las nos bolsos do paletó surrado, esfregando-as uma na outra: – A senhora sabe… A ele devo minha existência. O Doutor hoje está velho e doente, mas já foi pessoa muito conhecedora das coisas da vida…

– Ele era médico? – interessou-se a fanha do balcão.

– Ele é médico. É doutor de almas. Conhece também outros males e foi até preso pelas idéias. Um homem bom, o Doutor. Vem muito à minha casa. Senta na nossa poltrona de molas estragadas como se fosse em sala de rico, a mão apoiada na bengala, o Panamá com a fita preta sobre a mesinha. Os óculos escuros não escondem o olhar carinhoso que percorre a nossa pobreza. Às vezes, até usa uma frase minha, quando agradece o cafezinho quente que minha patroa lhe serve: – Tive um dia brabo hoje, Adelaide.

– Tem alguém da família lá – interrompe-o a enfermeira. O senhor nos desculpe, a gente não conhece todo o mundo. Pode ir. Bata na porta, que vão lhe atender…

Ele agradece e na menção de encaminhar-se ao quarto é chamado por um “psiu” da atendente: – Por que é mesmo que ele foi preso, moço?

Impaciente, a enfermeira também se volta: – Deixa ele fazer a visita, Rosa. Cuida do teu trabalho.

– Não, Dona, é bom falar. Foi política. Numa época que as pessoas eram presas pelo que pensavam.

– Vai ver era comunista… Rosa usa o polegar e o indicador direitos, as unhas vermelhas, para tirar da boca o chiclete, suspendendo-o no ar. – Hoje eles não prendem mais ninguém, os políticos pintam e bordam, não tão nem aí… Meu avô gostava do Getúlio, o pai dos pobres, gente boa.

– É. Pai dos pobres… Pobre Doutor, não pode nem receber o prêmio pelo livro, acho que teria escrito mais.

– O quê? Ele escrevia?

– Vocês não sabiam? Nunca leram nada? – parecia surpreso, desapontado. – Está aqui, doente, e não o conhecem?

– É gente importante? – anima-se a atendente, desdenhando a censura da enfermeira.

– Para ele somos todos importantes. Adelaide, minha mulher, também tem essa opinião. Eu não entendia tudo o que o Doutor me falava, às vezes se mostrava um revoltado, noutras parecia um religioso. Mas é um homem bom. Preocupa-se até com os meus sonhos, com o que me apavora, as noites, o medo, os pesadelos, os ratos roendo, na escuridão, o dinheiro escasso e sacrificado.

– Olha o senhor se apresse, nem é horário de visitas e – olhando para Rosa – a menina aqui tem outros afazeres. Por favor, seu… Como é mesmo o seu nome?

– Barbosa. Naziazeno Barbosa – e desculpando-se, agradece e segue seu destino.

Se ouviu, fez que não, quando a atendente comenta para sua chefe: Ele era médico de que, de louco? Vai ver que esse daí é um paciente dele…

O bonde outra vez. Passa numa lufada. O rodar metálico vai diminuindo… diminuindo… Já está longe, imperceptível… Uma rajada de vento vem e cobre-o. Mas ele reaparece, mais apagado, mais distante… Apesar do murmúrio do vento, o distingue ainda… Ainda… Já deve ir tão longe, mas ainda o distingue… Será possível?… Parece que o ruído do bonde não cessa, continua, continua… Será mesmo o bonde isso que está ouvindo?

Foi notícia no dia seguinte: “Faleceu ontem, no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, aos noventa anos, o médico, político e escritor Dyonelio Machado. Profissional humanista, figura exponencial na sociedade sul-rio-grandense, nascido em Quarai. Autor respeitado, escreveu, entre outros, Um pobre homem, O louco do Cati, Deuses Econômicos e Ele vem do fundão. O romance Os ratos é considerado um clássico de nossa literatura. Ele narra um dia na vida de Naziazeno Barbosa, pequeno funcionário público, e sua luta para conseguir um empréstimo de 53 mil réis para o pagamento do leiteiro.”

Fernando Neubarth é médico, graduado pela FAMED/UFRGS (1983) e especialista em Clínica Médica e Reumatologia. Escritor de literatura de ficção, autor de livros de contos, crônicas e participação em antologias. Vencedor dos prêmios Açorianos e Henrique Bertaso, em 1994, e Prêmio Nacional para Médicos Escritores, em 2000. Autor de Olhos de guia (1993) e À sombra das tílias (1999).

FICÇÃO

6 comentários Deixe um comentário

  1. Emocionante. Fernando sabe usar as palavras certas para criar o cenário e os personagens. Fico triste, mas em um ambiente de paz e esperança pois ainda existem os bons.

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  2. Belo texto, Fernando. Fui paciente e aluno do Dr. Paulo Machado, filho do Dyonelio Machado e tenho vários motivos para me emocionar com o que escreveste. Obrigado e um abraço.

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  3. Texto lindo com muitas interpretações que pode. Ser feitas. Do ilustre paciente no anonimato. Do amigo simples que se sentia importante por não ser discriminado e do comportamento indiferente da atendente que poderia ser um mecanismo de defesa ou ser de sua personalidade,…
    Me faz lembrar também o bonde que muito usei quando vim do interior fazer o Científico em Porto Alegre.
    Parabéns pelo texto.
    Cada um que ler fará uma interpretação de acordo com suas vivências,…

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