VIAGEM SEM VOLTA, por Ademir Furtado
Apertou o botão do controle remoto, a grade de ferro rangeu, começou a abrir, ela manteve o pé agitado no acelerador, como se os toques leves e contínuos no pedal pudessem acelerar a abertura do portão. Pela janela do quarto não se podia ver nenhum sinal de vida lá dentro de casa. Entrou. Desligou o motor. Desceu. Abriu o porta-malas. Tirou as sacolas de supermercado. Largou as sacolas na beira da porta. Apertou a campainha. De volta ao volante. Ligou o carro. Mirou-se no espelho. Ajustou a máscara que descia, desprotegendo o nariz. O olhar sempre atento na porta. Ninguém apareceu. Podia esperar mais um pouco, ver a mãe ao menos pelo vidro do para-brisa, acenar, conferir se estava tudo bem, mas nada de movimento. Pegou o celular. Acessou o whatsapp. Enviou mensagem, as compras estavam no lugar de sempre. Questionou se a mãe não iria pegá-las. Esperou alguns minutos pela resposta. A mãe respondeu, estava no banheiro, o pai, surdo daquele jeito, andava lá pelo pátio, não ouvia o chamado, a filha podia voltar prá casa, estava tudo bem. A filha deu tchau pelo aplicativo, acionou novamente o portão. Deu ré. Manobrou na rua, o olhar sempre voltado para a porta da casa, queria ao menos avistar a mãe, confirmar que não havia problemas. Seguiu em frente, ainda espiando pelo retrovisor, mas a imagem da casa desapareceu quando ela dobrou a esquina, à esquerda, e pegou a avenida, em direção ao centro.
Chegou em casa, tirou os sapatos na entrada, foi direto à cozinha. Largou as chaves na pia. Na área de serviço se livrou da máscara. Jogou a máscara na lixeira. Pegou um frasco pulverizador. Lavou a sola dos sapatos. Voltou à pia. Lavou as chaves. Novamente o pulverizador, desinfetou a maçaneta da porta. Só então apareceu na porta do gabinete do marido, deu um oi de longe, avisou que ia tomar banho, depois almoçar. Ele anuiu com um aceno de cabeça, ela foi ao banho. Apesar de ser um sábado, o marido, trabalhava no computador, se dedicava ao trabalho remoto, em que fazia o horário de acordo com a disposição do momento, um dos pontos positivos trazidos pela praga que infernizava a vida de todo mundo nos últimos meses.
A mulher voltou à sala pouco depois. Antes de sentar à mesa, que o marido havia posto, telefonou para a mãe. Ouviu os agradecimentos pelas compras, mas a fisionomia dolorida denunciou o desassossego interior.
– Tá tudo bem, mesmo, mãe?
A nova confirmação saiu junto com uma tosse seca, mas a mãe acrescentou a suspeita de um resfriado, por dormir com o ar condicionado ligado a noite toda, e emendou uma queixa sobre o calor de Porto Alegre. Sentou à mesa, ainda com o aparelho no ouvido, sob o olhar interrogativo do marido, que já avançava na salada. Ela finalmente largou o telefone, deixou escapar um grande suspiro.
– Eu tô nervosa com esse comportamento da mãe. Fui ao supermercado, levei as compras pra ela, e pela primeira vez ela não abriu a porta para me receber.
– Não me diga que está com a síndrome da filha abandonada?
– Deixa de bobagem, tô falando sério. Ela disse que pegou um resfriado do ar condicionado, mas, pra mim, ela não queria que eu visse que ela tá doente.
– É possível. Com esse calor insuportável que assola Porto Alegre. Nós também dormimos com ar condicionado, mas tomamos a vacina contra a gripe, e temos mais resistência. Pode ser uma tempestade num copo d’água.
– Não sei, não. A mãe é muito orgulhosa, mais teimosa que uma mula. Do jeito que as coisas aconteceram, mesmo que esteja com o vírus, ela não vai dar o braço a torcer.
No olhar do marido havia uma expressão muito clara de um pensamento já exteriorizado outras vezes: tudo aquilo era muito previsível. A sogra, uma pessoa de difícil trato, havia ignorado todos os apelos, desprezado todas as regras de isolamento prescritas pelas autoridades sanitárias, se lançado numa aventura suicida e irresponsável, por puro capricho. Agora, com toda certeza, eles seriam todos atingidos, principalmente o sogro, com a saúde debilitada, uma cirurgia no esôfago e um fígado destruído por um histórico de alcoolismo no passado. Desnecessário verbalizar isso, lia-se tudo no olhar dele.
– Ela disse que se adoecesse teria condições de se virar sozinha, mas como é que eu vou desamparar uma pessoa da idade dela, minha própria mãe?
– Até eu me meti no assunto e ela me veio com essa mesma ladainha. No final só serviu para ela se magoar.
O almoço acabou, sem o cafezinho costumeiro, por causa do calor. Nos fins-de-semana, o casal costumava desfrutar o prazer de um cochilo de sesta, mas, desta vez, o marido foi para a cama sozinho. A ansiedade da mulher agia como uma força de resistência que a mantinha ocupada na cozinha, a louça suja servia de pretexto para manter a cabeça voltada para algo menos aflitivo. Aproveitou para limpar o fogão com manchas de leite derramado. Depois disso, não custava nada passar um pano no chão, tirar o lixo. A pandemia impusera a dispensa da faxineira que vinha toda sexta-feira deixar a casa em ordem para o casal aproveitar melhor o fim-de-semana, no resto dos dias, o casal, que só entrava em casa de noite, dava conta de deixar o apartamento em estado habitável. Antes de se recolher ao quarto, o marido ainda sugeriu deixar tudo aquilo para mais tarde, ele ajudaria, se desligar um pouco, relaxar, mas ela não atendeu ao apelo. Enquanto lidava nos afazeres domésticos, repassava mentalmente toda aquela história, sem se poupar do remorso de não ter sido mais enérgica no devido momento. Ela apenas manifestou contrariedade quando a mãe anunciou a intenção de viajar para ver o filho em São Paulo.
– Mas, mãe? Agora, no auge da pandemia? Mais de mil mortes diariamente
– Ah, a gente morre quando Deus chama. Aí não adianta estar trancada em casa. Há quanto tempo eu não vejo o teu irmão? Depois, sabe-se lá quando vou ter outra oportunidade.
– Mas, e o pai? Tu pode trazer o vírus pra ele, que tem esse monte de problemas de saúde. Sem falar que eu e meu marido também ficaremos expostos aos mesmos riscos.
Mas a mãe não cedeu a nenhum arrazoado, o desejo de ver o filho contou muito mais do que qualquer ameaça de colocar a vida dos outros em perigo. Por fim, para arrematar, a mãe prometeu.
– Não te estressa por minha causa. Na volta, se eu adoecer, não careço de ninguém me cuidar, eu me viro sozinha, não seria a primeira vez.
Mas esse discurso de autonomia não passava de retórica, pois caso ela adoecesse, a filha e o marido estariam sempre prontos para arcar com qualquer responsabilidade, como levar ao médico, ir na farmácia, tratar de internação. Também não seria a primeira vez que todas essas atividades cariam como uma carga nos ombros da filha. Mas a mãe vivia de caprichos, quando cismava com alguma coisa não desistia enquanto não tivesse seu desejo realizado, igual a uma sonâmbula, ela cegava para as possíveis consequências de seus atos. Como uma criança mimada, que se atira no chão aos berros ao ser contrariada, ela não demorou a verter copiosas lágrimas, que brotaram junto com conhecidas lamúrias, ninguém dava bola prás vontades dela; às vésperas de completar oitenta anos, ainda lúcida, não tinha mais o direito de decidir a própria vida; chantageava com os enfartos já sofridos e insinuava a possibilidade de sofrer outro a qualquer momento; que poderia morrer sem ver o caçula pela última vez, mais de dois anos sem a presença real do filho querido, apenas as conversas virtuais que só serviam para aumentar ainda mais a saudade. Essa choradeira toda imobilizava a filha como o efeito de uma camisa de força. Ela também gostaria de ver o irmão, mas o mundo inteiro sob o terror de uma calamidade sem trégua, o bom senso dizia que a reclusão não duraria muito, em breve as vacinas trariam o sossego e a paz.
Aliás, o episódio não deixava de ter um significado muito especial. O irmão se formara piloto, havia alguns anos, no Aeroclube do Rio Grande do Sul, sediado no Belém Novo. Dadas as dificuldades de emprego no Brasil, enjeitou o ninho familiar e voou em busca de trabalho onde houvesse uma vaga. E encontrou na companhia aérea dos Emirados Árabes, justamente a contratada para trazer as vacinas da Índia. Na condição de brasileiro, ele foi escalado para fazer parte da equipe. Ao chegar, passaria um dia em São Paulo, mas pelas regras rígidas da empresa, deveria se confinar no hotel, em completo isolamento.
Tudo teria sido mais fácil se ele mantivesse segredo sobre o assunto, mas numa das conversas por whatsapp ele mencionou, muito orgulhoso, que seria um dos responsáveis pelo transporte da vacina para o Brasil. A mãe não conteve o impulso de se prontificar a ir recebe-lo em tão importante missão. E o filho, ou por ingenuidade, por falta de tino, ou distração de quem não prevê os desdobramentos dos próprios atos, reforçou ainda mais a insânia materna, dizendo que seria muito bom ver a mãe pessoalmente. A partir desse momento, não houve mais nada que fizesse a sentimental matriarca mudar de ideia.
Quando o marido acordou, encontrou a mulher deitada no sofá da sala, folheando um jornal, sem se concentrar em nenhuma notícia, o olhar deslizava sobre as manchetes e as imagens. Ele usava apenas uma bermuda, soltou um bocejo, coçou a barriga já um pouco proeminente.
– E aí, alguma novidade?
– Nada, tudo na mesma. A última vez que liguei ela foi até grossa comigo, eu tava sendo muito insistente, disse que ia dormir um pouco, quando acordasse dava notícias.
Apesar da calma aparente, ela não parava de consultar a tela do celular. Em tempos normais, depois da soneca pós almoço, ou um pouco mais tarde, conforme a temperatura, eles se exercitavam numa caminhada pela Redenção, ou talvez até na orla do Gasômetro no inverno, mas há quase um ano que o passeio mais comum se limitava a ir da sala para o quarto. A esposa ainda assumira o provimento das necessidades dos pais, como supermercado e outras emergências, mas para o marido, descer do décimo andar para tirar o lixo já significava uma viagem. O marido sentou na poltrona, de frente para a esposa. Ela mudou de posição. Pegou uma almofada na outra poltrona. Colocou a almofada na borda do sofá. Deitou de novo. A cabeça não encontrou o conforto desejado. Levantou. Foi à cozinha. Na geladeira, pegou uma garrafa de água. Agarrou um copo na pia. Encheu o copo. Voltou ao lugar de antes. Bebeu a água. Consultou tela do celular. Sentou. Mais um gole de água. O marido apenas acompanhou com o olhar de empático enternecimento ao desenrolar daquele nervosismo dramático com final previsível.
A tarde de sábado se arrastou com a lentidão das coisas ruins, o casal se ocupando com tarefas vazias, cujo único objetivo era passar o tempo. Enquanto um jogava paciência no computador, a outra continuava de celular em punho, em zigue-zague no apartamento, à procura de algo em que dissipar aquele mal-estar. Mais tarde tomaram um café. A mulher estava mais uma vez na pia tratando da louça suja quando o telefone tocou. Ela correu, o marido se aproximou atencioso. Ela atendeu.
– Oi pai, como estão aí?
E ouviu o que mais temia, a voz do pai soava nervosa, vacilante.
– Tu sabe como a tua mãe é teimosa… Eu queria ter ligado antes…Ela não deixou…
– O que foi que houve?
– Ela tá com febre… Tomou uma dose de dipirona e foi dormir…Não adiantou… Agora tá com dificuldade de respirar… Desde ontem ela se queixa de dor no peito…E não para de tossir… Não sei o que fazer.
A voz do pai saia aos arranques, como um choro retido que irrompia fora de controle.
– Tem que levar pro hospital, chama o SOS Ambulância do plano de saúde. Largou o telefone, correu ao quarto, o marido seguiu atrás.
– O que vai fazer?
– Vou trocar de roupa e levar a mãe pro hospital, ela tá com Covid.
– Calma, talvez seja só um resfriado, mesmo.
– Que resfriado? Febre, falta de ar, dor no peito. Ela já teve dois enfartos.
– Tá, eu vou me trocar também e vou contigo.
– Não, de maneira nenhuma. Não tem por quê os dois expostos a essa maldição, fica em casa.
Ele ainda argumentou que não fazia muita diferença, se ela pegasse o vírus traria para ele também, mas ela não ouviu, ele desistiu resignado. Em poucos instantes a mulher estava pronta, pegou o telefone, ligou, o pai atendeu. Já havia chamado a ambulância, a filha orientou se dirigirem ao Hospital Divina Previdência, que aceitava o convênio deles e a Emergência estava menos lotada. O marido, sem ter o que fazer, vigiava o frenesi da mulher que, como num passe de mágica, já estava com a máscara no rosto e a chave do carro na mão. Nem lembrava mais do que fora combinado dias antes, que se a mãe adoecesse por efeito daquela viagem maluca, teria de se virar sozinha, sem auxílio de ninguém. O marido acompanhou-a até a porta, desejou boa sorte, pediu que ela se cuidasse. Sozinho em casa, ligou a televisão, sintonizou alguns programas sem muito interesse, trechos de filmes, notícias que mostravam os avanços do vírus e as primeiras imagens da campanha de vacinação.
A noite já se insinuava pela janela quando a esposa entrou, seguida do pai, tão abatido que a máscara no rosto não escondia o olhar angustiado, o sofrimento e o medo. O marido correu ao quarto, vestiu uma camiseta, voltou solícito para cumprimentar o sogro, mas o ancião parecia não atinar onde estava, como se vagasse perdido no meio de estranhos. A mulher conduziu o pai até o banheiro, livrou-o da máscara, pediu para ele tirar a roupa que ela colocaria na máquina, ele deveria tomar um banho. Enquanto o pai tomava banho, a filha relatou ao marido, a mãe estava infectada, em estado já avançado, levaram direto para a UTI, ela não teve coragem de largar o pai sozinho na casa deles, trouxe ele, mesmo sem consultar o marido, que assentiu, fora a decisão mais acertada; reafirmou a determinação de carregar com ela qualquer peso que se abatesse sobre a vida deles. Ela agradeceu, mas não pode externar o sentimento de gratidão em atos como um beijo ou um abraço, pois ainda não tinha tomado banho. O pai saiu o banho usando um pijama do genro que a filha emprestara, então foi a vez dela tomar o segundo banho do dia.
Quando ela saiu, o marido vasculhava a geladeira à cata das sobras do almoço para preparar uma janta. Ela ainda tratou de acomodar o pai. Conduziu-o para o quarto da TV, orientou, ele deveria manter um certo distanciamento, não podia se aproximar muito, permaneceria sozinho no quarto, podia assistir televisão. O velho obedeceu a todos os comandos como um autômato, a filha transformou o sofá em cama, ligou a TV num canal com um filme que contava a história de um cachorro que acompanhou o funeral do dono até o cemitério e depois do enterro deitou ao lado do túmulo, à espera do tutor. O pai gostava muito de filmes sobre cachorro. Por fim ela avisou.
– Agora fica quietinho aí que eu vou providenciar uma janta, e trago aqui, não precisa se levantar. Saiu e puxou a porta, mas antes de fechar completamente, junto com o som do aparelho ela ouviu uma tosse seca dentro do quarto. Aquela golfada de ar expelida pelo pai produziu o efeito do estrondo de uma bomba aos ouvidos da filha. Com o rosto pálido de temor, como se visse um fantasma, ela soltou a maçaneta da porta e correu em direção ao marido.
Ademir Furtado, mora em Porto Alegre, formado em Letras pela UFRGS.
