À ESPERA, por Gustavo Melo Czekster
É pálido, mas também início. A teia começa em algo, na inconformidade da sua urdidora, e o primeiro vestígio é um fio quase translúcido a esvoaçar em meio à sala, frágil e inocente, sobrevivendo ao vento que esboroa a janela com cortes secos, repletos de um frio invisível, crepuscular. O mundo se ressente da ausência da mulher; a casa perdeu sentido. O perfume que ainda persiste nos móveis e o silêncio varrem a sala com lufadas cheias de vazio, ora lembrando que acabou, ora trazendo a esperança de que pode reiniciar, e eu surfo entre estas forças agônicas, desejando que ela volte, desejando que nunca reapareça. Nas proximidades da porta, a espiral enlouquecedora do parafuso me fita com seu olho vazado, esperando voltar ao lugar de onde foi alijado depois da batida cruel com que fomos abandonados, eu, a casa, a ainda sombra de teia, a porta, o parafuso. Não vai voltar, talvez ela volte, não sei de mais nada; no fundo do desespero, ainda há a gota de esperança que me segura na angústia com que as horas transcorrem, uma após a outra, cristais de areia girando na ampulheta, ao mesmo tempo em que o tímido fio ondula ao sabor do mundo, até se firmar em algo sólido e conseguir segurança no outro canto da janela, ganhar o ainda sonho de uma estrutura que se adivinha intrincada, mas que começou com um fio, pálido, sem sentido, solitário. Como eu.
No vidro, oito olhos me fixam; adivinho pelos invisíveis, capazes de sentir até o inexistente, e agradeço por não ser mais capaz de mergulhar naquela embriaguez, mistura de cegueira com ressaca, a overdose do passo a mais, do arrepio inoportuno, do salto em branco. Filho da puta, ela gritou, safado, miserável, seu merda, desembocando nos mais cruéis, os últimos antes da porta ser batida, corno, bicha, vagabundo, a rajada de fúria despejada como uma metralhadora de perdigotos, olhos repletos de rachaduras sangrentas, a loucura espreitando em cada movimento à espera de uma reação, de uma risada, do mais leve estremecer da pele do homem para desmoronar em socos, chutes, pancadas, fúrias. Mais uma vez ela saiu pela porta, mais uma briga, desta vez sem vasos quebrados, sem cristais estilhaçando, somente discussão e gritos e raiva e uma porta batida com tamanha força que arremessou o parafuso no chão, como se o rompante do gesto conseguisse evitar a apatia ou como se o inexorável homem fosse tão volúvel que alguns gritos e uma saída repentina pudessem modificar o construído em dezenas de anos, em uma caminhada que se arrastou do primeiro berço até cair naquela poltrona, um tijolo após o outro separando corpo do espírito, vontade da segurança, racionalidade do instável, transformando-o em uma criatura na qual os sentimentos só penetram após longo, extenuante processo de erosão. Fios caudalosos derivam do cordão umbilical que deu início ao meu mundo de espera, ramificando-se no transparente enquanto monto a minha estrutura de medo e angústia; é gigantesca a dor de parir um prédio de cordas, um fio aqui, outro ali, outro ainda ligando naquele primeiro, cinco fios em círculo, encaixe diabólico visando sufocar a comida, resistir ao ímpeto de vida de outro ser, cercá-lo de gosma até a constatação de que a morte pode ser a liberdade, pois, como toda boa aranha sabe, e eu sou, sim, uma boa aranha, antes de matar o corpo, é preciso destruir o espírito.
Calma, ela vai voltar, todas voltaram, mas algumas nunca mais, e fiquei sem saber o que aconteceu de especial naquela briga, a última, qual foi a gota suficiente para destruir a relação, ou se foi uma sucessão de gotas transformando a derradeira em um quase indiferente ponto final. Construo o meu mundo de fios com paciência, à espera da incauta mosca que voa por aí desconhecendo o próprio fim, esperando a mulher voltar para aquele mesmo homem achando que desta vez ele mudou, sem saber que a mosca também imagina, por delirantes segundos enquanto me aproximo, que eu deixarei de lado a minha natureza, que ela será perdoada, que existe alguma esperança para a nossa história de amor quebrada.
Gustavo Melo Czekster é formado em Direito pela PUC-RS, mestre em Letras (Literatura Comparada) pela UFRGS e doutor em Escrita Criativa pela PUC-RS. É palestrante de temas ligados à literatura, resenhista de sites e ministrante de oficinas literárias. É escritor, autor de dois livros de contos: “O homem despedaçado” (2013) e “Não há amanhã” (2017). Com o segundo livro, foi vencedor do prêmio Açorianos 2017 (categoria Contos), do prêmio AGES de Literatura (categoria Contos e categoria Livro do Ano) e do prêmio Minuano de Literatura (categoria Contos), tendo sido finalista do Prêmio Jabuti 2018 (categoria Contos).
