A VOZ DO PAI, por Luiz Mauricio Azevedo
Não há um modo indolor de consertar o passado. O que sei é o que me contaram, porque vivo de histórias: em alguma tarde do ano de 1979, Álvaro Afonso e Ilma Silva conversavam em tom baixo, dentro de um Corcel creme. O banco de trás estava cheio de livros. Álvaro gostava de literatura, em especial, a de Nelson Rodrigues e Jorge Amado. Sonhava em ser jornalista.
Enquanto isso não acontecia, fazia bicos em uma transportadora e escrevia para um jornal alternativo da cidade. Ilma era uma comerciária recém-divorciada, vinte e quatro anos, um filho de três, e uma dúzia de comorbidades. Para eles aquele era um encontro romântico. Para o resto de nós, foi mais um capítulo do difícil e precário processo de socialização das pessoas negras no Brasil.
No ano seguinte, eu nasci.
O primeiro céu que vi foi o da cidade de Cascavel, no interior do Paraná. Nasci lá porque minha mãe foi expulsa de casa pelo pai. A família, profundamente católica, mal havia engolido o divórcio. Não aceitariam, portanto, a nova gravidez.
Ela acabou acolhida pelo irmão, que vivia naquele estado por conta da aprovação em um concurso público. Minha vida é feita de repartições públicas, lutas, livros e acasos. Não me queixo.
Porque o ser humano é uma máquina de contradições, três meses depois do nascimento do neto meu avô aceitou o retorno de minha mãe. Contudo, bastaram algumas semanas para ela perceber que a cidade de Rio Grande, na década de oitenta, com economia baseada na exploração da vida marinha, não tinha muitos atrativos para uma mulher de 25 anos, com baixa escolaridade.
A promessa que fez a si mesma era de retornar para o Paraná, trabalhar intensamente e, quando a vida pessoal estivesse estabilizada, voltar para buscar os filhos. As migrações são construídas de esperança e de ilusão. No caso dela, foi ilusão. Trabalhando em subempregos, mal remunerada e com a saúde debilitada por uma onda de episódios de convulsão epilética, minha mãe retornou a Rio Grande, onde aliás morreria, uma década mais tarde. No primeiro ano de vida, minha avó foi minha mãe. E meu avô o meu pai. Chamam isso de modelos alternativos de família.
Eu chamo de abandono.
Uma das primeiras coisas que minha mãe fez ao retornar à cidade em que nasceu foi procurar Álvaro. Depois de duas tentativas frustradas, prometeu nunca mais procurá-lo.
Em 1986, anunciei a ela que era meu destino era tornar-me jogador de futebol, ideia que ela rapidamente rechaçou. Jogadores de futebol eram malandros, ela disse. Jogadores de futebol, ela insistiu, não queriam nada com nada. O necessário na vida era “Es-tu-dar”, ela encerrou seu argumento. Contei que toda terça-feira alguém ia me assistir jogar na pracinha. Descrevi o homem: alto, gordo e negro. Nos dias que se seguiram ela ia à pracinha e ficava aguardando o tal homem aparecer. Semanas se passaram, at é que ele finalmente apareceu. Sem dizer nada ela interrompeu o jogo, me pegou no colo, dizendo: “Vamos pra casa, Maurício. Aquele homem é o Álvaro, teu pai.” Embora esse tema fosse tabu lá em casa, aquele era um nome pronunciado a todo instante por ela. A junção das duas informações é que era nova. Até aquele momento, em meu dicionário pai era um significante sem significado. E Álvaro uma espécie de índice de indeterminação negativa. Sempre que eu me comportava do jeito errado, ela me alertava: “Tá ficando igualzinho ao Álvaro”. A cada deslize, a cada indisposição moral, lá estava ela lembrando a filiação genética: “É o Álvaro”. Como não sabia o que aquilo significava, incorporei o xingamento. Quando um coleguinha me empurrava durante uma brincadeira, eu respondia: “Igualzinho ao Álvaro”. Em minha cabeça havia o Fulano, o Beltrano, o Ciclano e o Álvaro. Personagens sem rosto, e com funções ideológicas arbitrárias.
O fato é que, depois daquilo, meu pai nunca mais foi à praça me ver jogar. No ano seguinte, soube que ele havia viajado para o Montevidéu, e que, ao retornar, tivera um mal súbito e foi internado na Santa Casa de Rio Grande. Ao saber do ocorrido, minha mãe foi visitá-lo. Explicou a ele que sentia muito por tudo; que queria consertar as coisas. Desfilou um monólogo sincero e amistoso. Ele permaneceu em silêncio por muito tempo. E quando ela achou que ele fosse dizer alguma coisa, ele apenas virou o rosto na direção oposta à sua presença.
Não sei precisar o motivo, mas é nítido para mim agora que se odiavam.
Talvez por isso tenha sido tão difícil ingressar com a ação judicial pedindo o reconhecimento da paternidade, mesmo que tenham se passado tanto tempo depois da morte de ambos. A família da mãe sempre considerou meu desejo de pai uma espécie de traição. Eu só via o pai. Eles só viam o filho. Na primeira vez que venci as resistências domésticas, e fui ao antigo trabalho dele, no hoje extinto jornal Agora, seus amigos da época disseram: “Cara, tu só pode ser filho do gordito”; outros foram além: “Se o Álvaro soubesse que o filho dele se tornou o que ele queria ser, ficaria muito feliz.”
Sei que é impossível recuperar dos mortos décadas de afeto perdido. Mas sei também que para nós, os vivos, a memória é uma forma de carinho. Ainda que seja pouco, ainda que seja precário, preciso desse sobrenome. Foi tudo o que sobrou de meu pai. E a única coisa que aceito levar dele. Há uma poderosa polissemia na constatação daquele amigo de meu pai: realmente eu só posso ser o filho do gordito, não há como fugir da evidência de nossas origens, não há como ser outra coisa além daquilo que se é, embora aquilo que somos por vezes pareça o oposto do que queríamos ser.
Acho que Shakespeare estava certo sobre as rosas terem o mesmo perfume, mesmo quando são chamadas por outros nomes; e, nesse sentido, não é de mudança que estou tratando, mas de aceitação. Adotar o sobrenome de meu pai não é inventar para mim um novo futuro, mas reconhecer meu passado. Durante sua vida Álvaro teve a chance de me assumir. Hoje cabe a mim assumi-lo. E não fugirei de minha responsabilidade. Jamais tive outro nome. Jamais tive outro cheiro. São os documentos que estão errados. Não os fatos.
Estou consciente de que tomo contra mim um mar de obstáculos. É o preço da identidade humana. Aceito porque reconheço que todo aquele que procura seu pai abraça a si mesmo. E, ao fazer isso, pulveriza todos os pesadelos que o impedem de ser, ainda que dentro de uma casca de noz, o rei do espaço infinito.
Luiz Mauricio Azevedo nasceu em 1980, na cidade de Cascavel (PR). É editor e professor de literatura. É doutor em História Literária pela UNICAMP e pós-doutor em Literatura Brasileira pela UFRGS. Recentemente tornou-se vegetariano e passou a acreditar que Lee Harvey Oswald agiu sozinho. Mora em Porto Alegre, com a jornalista e escritora Fernanda Bastos.
