AMARE, por Catia Schmaedecke

Antigamente Porto Alegre era uma cidade murada cujo portão se fechava ao anoitecer para impedir a entrada de possíveis invasores através das águas, e abria-se nas primeiras horas do dia seguinte. Era o que aparentava à primeira vista, quando havia a escassez de chuvas torrenciais e consequentes cheias. Foi ali, às margens do Guaíba, que certa vez eu cheguei vitorioso de um penoso trajeto de verdadeiras batalhas emocionais. Naquela tarde chuvosa de novembro, após cumprir a tarefa de acompanhar a travessia de um número considerável de casais, eu percebi estar apto a qualquer outro tipo de incumbência. Durante o percurso precisei manter-me firme, com força redobrada, para afastar o ódio que, durante o tempo todo, se empenhou em me fazer desistir. Amenizei tristezas, arrependimentos, saudades. Apartei brigas, discussões, desentendimentos. Esclareci dúvidas, aplaquei a fome, curei enfermidades. Sem contar as passagens por tormentas, e até mesmo por ameaças piratas. Exausto, um tanto cambaleante, aportei no cais com as bagagens repletas de coragem e de um punhado de esperança.

Sem pestanejar me estabeleci logo no primeiro espaço de terra. Demarquei o território providenciando a chegada de novos rebentos que cresceram soltos, felizes da vida, carregados de mim. Naquela época a fé era a minha companheira mais próxima. Juntos nós erguemos a primeira capela, convocamos a comunidade a ajoelhar-se em preces de agradecimento ao Criador, arregaçamos as mangas e auxiliamos os menos favorecidos, aqueles que apenas me conheciam de nome. A união tomou conta de todos e, de súbito, me senti fortalecido. Com o passar dos anos rebatizei o lugar com a palavra da alegria.

Às vezes alguns teimavam em não querer me conhecer. Fugiam através das vielas escuras nas madrugadas de inverno, quando o frio intenso congelava os neurônios e resfriava os corações, e se embrenhavam nas matas a praticarem atos ilícitos sob o comando da maldade e da loucura. Para resgatá-los, eu busquei forças dentro de mim que jamais pensei ter. Os fiz refletirem através de seus pares, através de seus filhos, através de pessoas preocupadas em perdê-los. Consegui, enfim, que em meu nome muitos voltassem ao seu ponto de origem. Herdeiros desafortunados, porém, ainda hoje seguem a sina da cegueira que envolveu de modo definitivo, os seus antepassados.

Aqui, no tempo presente, ergo o olhar para o céu, onde encontro respostas para todas as minhas incertezas. Descobri que sozinho eu posso fazer muito, porém acompanhado eu posso fazer muito mais. Descobri que o tempo é o meu maior aliado quando encontro resistência pela frente, e que eu posso encontrar pessoas em lugares ermos, muito distantes, onde o esquecimento muitas vezes chega antes de mim. Descobri que na minha ausência os seres humanos promovem guerras e aniquilam-se mutuamente, por isso eu não posso falhar.

Porto Alegre me tem há duzentos e cinquenta anos. O mundo me conhece desde a sua criação.

Muito Prazer, eu me chamo Amor.

Catia Garcia Schmaedecke, natural de Passo Fundo RS, é autora do romance “A Casa da Grande Colina”. Em 2018 concluiu o Curso Livre de Formação de Escritores da Metamorfose. Participou de coletâneas de contos. Em 2019 recebeu o 1º lugar na categoria Contos do Prêmio Nacional de Literatura dos Clubes. Há mais de trinta anos reside em Porto Alegre.

FICÇÃO

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