ARMAZÉM DE SECOS E MOLHADOS, por Lucia Nogueira Leiria

Amei muitas vezes, nem sempre correspondidas, mas todas muito sentidas. Numa delas, me apaixonei pelo dono de um armazém de secos e molhados do bairro. Na verdade, era quase uma delicatessen, vendia desde artigos importados até itens mais comuns do dia a dia, mas tenho comigo boas razões para chamar de armazém. Costumava ir lá esporadicamente, para buscar um produto mais refinado, uns biscoitinhos italianos que combinavam com vinho do Porto, um pedaço de queijo holandês, algo que faltou na ida ao supermercado ou para fazer alguma compra emergencial.

Um dia, percebi que ele me olhava. Eu era uma mulher atraente, ser notada pelos homens era comum, mas seu jeito era diferente, fiquei intrigada; outro dia, observei seus movimentos com mais atenção e percebi que, além dos olhares, era muito gentil. Comecei a gostar daquilo. Passei a frequentar o local, mais para ser olhada que para me abastecer. Ia no início da tarde ver um doce para o lanche. Ia à tardinha pegar algo para o jantar. Incentivava uma amiga, minha vizinha, a comprar qualquer coisa que estivesse lhe faltando, ou não, para que eu pudesse ir junto. Gostava muito de café, passado na hora com filtro de papel. Comecei a experimentar café de diversas marcas e precisava, claro, de muitas caixas de filtro.

Essas idas foram ficando cada vez mais recorrentes, duraram alguns meses, até que os olhares, ao contrário, tornaram-se cada vez mais escassos. Uma vez o vi saindo pela porta lateral, assim que cheguei. Tentava entender o que o teria feito recuar: outra mulher? Minha cintura muito grossa? Minhas canelas muito finas? Não teria retribuído seus olhares à altura? Não, isso não. Teria exagerado nas aquisições? Ido muitas vezes? Um fluxo de perguntas vinha à minha mente, mas todas caíam no vazio, não encontravam respostas.

Quando morri e meus irmãos se empenharam na dolorosa e intrigante tarefa de desmanchar a casa de um morto, brotaram lágrimas e indagações. Choraram abraçados, culpados pela ausência, pela falta de visitas, de telefonemas, geralmente ocupados com os filhos, os cunhados, as sogras. Depois que se casaram, as famílias das mulheres estavam em primeiro lugar. Se não eram elas, era o tio Geraldo. Viuvou, entrou em depressão. Como houve suicídios na família, temiam que ele também se suicidasse. Sempre havia um lugar reservado para o tio Ge no carro, no sofá, à mesa e alguém disposto buscá-lo em casa para desfrutar de momentos de aconchego.

Perceberam o quanto haviam se distanciado. Fui esquecida, como aquelas bananas pretas e murchas deixadas na fruteira em cima da mesa. Já não me conheciam mais. Ficaram surpresos com o verdadeiro depósito que encontraram em um dos quartos. Isqueiros, caixas de fósforo, cigarro, e eu nem fumava. Latas de refrigerante, de milho e ervilha, vidros de maionese, pacotes de massa. Prendedores de roupa, caixas e mais caixas de sabão em pó, potes para armazenar comida, embalagens para presente, frascos de água sanitária, garrafas de suco de uva. Havia de tudo naquele quarto, e tudo desestabilizava as certezas que tinham sobre mim.

Todos sabiam que, quando fui à França pela primeira vez, voltei fascinada pelos cheiros de lavanda da Provence. Depois conheci os sabonetes ingleses, os italianos, e decidi que, houvesse o que houvesse, sabonete importado seria o meu luxo. Os portugueses de madressilva eram os meus preferidos – meu primeiro beijo foi sob uma ramada de madressilva, perfume inesquecível: banho com cheiro de beijo, beijo molhado como o banho, presente e passado se embaralhavam, eu ria. Aquela caixa grande cheia de sabonetes baratos era um mistério.

O que teria acontecido? Não entenderam o que viram. Não souberam do meu amor.

Lúcia Nogueira Leiria nasceu em São Francisco de Assis, RS. É graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre e doutora em Linguística pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Foi professora na graduação e na pós-graduação em instituições da rede privada de Porto Alegre. Ministrou Português e Cultura e Literatura Brasileiras na Universidade Ëtvös Loránd, em Budapeste. Atualmente é professora de Linguística no curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande.

FICÇÃO

3 comentários Deixe um comentário

  1. Gostei Muito desse SER, que dialoga com o próprio.
    Das expectativas criadas, do que parece ser de uma mulher introspectiva.
    Do refinamento, e gostos delicados da protagonista.
    Da amargura, sutilmente revelada, no relacionamento com seus entes.
    Da forma do texto, que consegue, nos envolver e comover.

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