BONEQUINHA DE LIXO, UMA RESENHA BREVE PARA UM LONGA RECOMENDAÇÃO, por Luís Roberto Amabile
“Lucio, tudo bem? Não vai ter as recomendações de leitura, igual teve no ano passado?
Nesse ano vamos de edição normal, Luís. Todavia, se quiseres fazer uma resenha breve de algum livro, recebo tb!”
*
As aspas acima intentam mostrar que pretendo deixar tudo às claras. Nessa linha, preciso dizer que conheço a Helena Terra e que ela elogiou meu livro de contos O lado que não era visível para quem estava na estrada. Então eu iniciei a leitura de Bonequinha de Lixo (Diadorim, 2021) querendo gostar. Mas não esperava gostar tanto.
Gostei tanto. Por quê?
Porque me lembrei do Vladímir Maiakóvski: “Sem forma revolucionária não há arte revolucionária”. Aa novela de Helena Terra remete à conhecida frase do poeta russo. Como observam Maria Valéria Rezende e Nara Vidal nos paratextos, Bonequinha de lixo desmonta o patriarcado machista e a violência simbólica implícita nos padrões sociais. O conteúdo é o depoimento de uma voz narrativa feminina jovem e sem freios na língua. Um relato direto da personagem Maria Clara da história de sua família, de seus pais, de seu meio social, de sua vida.
Isso é o conteúdo.
Há também a forma, no caso, o frescor da forma. Que advém da voz narrativa. Com a qual se ajusta.
Maria Clara não se mostra nenhuma Audrey Hepburn em Bonequinha de luxo, o nome em português da versão cinematográfica adaptada da novela de Truman Capote. Uma versão delicada, aliás, que não deixa explícito o conteúdo do livro de Capote. Ao contrário, a voz narrativa da novela de Helena Terra diz tudo, diz com todas as letras, diz de maneira irônica, ácida, rápida, metralhando:
Comunicação nunca foi o forte da família.
Somos bons em jogos e brincadeiras de boneca.
Bonecas de plástico.
De pano.
Louça.
Papel.
Luxo.
Lixo. (p. 14)
Cada frase é um parágrafo, frases curtas, parágrafos curtos, quase todos. Combina com a Maria Clara, como se seu fluxo textual não poderia ser de outra maneira:
Está doendo?
Nada.
Nada é um coringa.
Uma carta branca e veloz cruzando o pensamento como um carro em uma madrugada.
Eu gosto de madrugadas e de acidentes de percurso.
Da ideia de acidentes, do risco produzindo adrenalina e esvaziando a mente; das consequências, não sei.
Talvez eu seja cretina.
Deveria dizer tri cretina para honrar a minha origem materna.
Mas dane-se a honra.
E os pais, as mães e as filhas. (p.16)
O Formalismo Russo, aquela corrente teórica que buscou definir a literariedade, chegando ao conceito de estranhamento, isto é, o efeito que determinadas obras produzem no percepção dos leitores. Esses efeitos são alcançados por procedimentos de singularização da linguagem. Assim, ocorre uma quebra de expectativa, o leitor estranha a maneira como a linguagem está organizada, pois não é o modelo cotidiano. Tem-se então a percepção renovada.
Pelo que narra, pela voz que narra e pelo modo como é narrado, o livro de Helena Terra quebra expectativas. Demanda uma leitura ativa nas primeiras páginas, até o leitor se situar na estrutura proposta. Depois é um mergulho de onde se volta com a percepção renovada.
*
Retorno às aspas do início. Para dizer que essa resenha breve foi escrita para indicar Bonequinha de lixo como recomendação de leitura de 2021.
Luís Roberto Amabile é escritor e professor na Escola de Humanidades da PUCRS, doutor em Teoria da Literatura (2017) e em Escrita Criativa (2020). Teve textos publicados em revistas e antologias no Brasil, em Portugal, na Espanha e nos Estados Unidos. Colaborou com Luiz Antonio de Assis Brasil em Escrever ficção (2019). É autor, entre outros, de O amor é um lugar estranho (2012, finalista do Prêmio Açorianos na categoria contos) e O livro dos cachorros (2015, vencedor da chamada para publicação do IEL/RS).


Ainda não li Bonequinha de lixo, da Helena Terra, gostei muito da resenha e fiquei curiosa para conhecer essas ousadias da autora.
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