De ‘DEVOÇÃO’, de Guto Leite
às vezes eu queria ser como um pássaro que acompanha por alguns instantes um ônibus de viagem, ser obstinado como esse pássaro, ou como um peixe, melhor, eu queria ser como o pássaro que abocanha um peixe dentro do lago, é impossível ter certeza de que ele avista o peixe antes do mergulho, quem de nós esteve atrás dos olhos de um pássaro, mais do que ver o peixe, o pássaro acredita que ele exista, atrás do muro de água, no futuro, e realiza um cálculo rigorosamente biológico, que pondera, não na razão, mas nas penas, que mais valem tantos bicos cheios de azul e alga para um, com uma brilhante escama, a limitar a dieta de rãs, esquilos e carne morta
há uma anedota chinesa, muito antiga portanto, que diz que a vida é o sonho de um pássaro, de um emberiza aureola, ou de um dragão, as traduções são imprecisas, em todos os séculos anteriores a tang taizong, a escrevedeira planava sonâmbula sobre as relvas do norte, de lá pra cá mergulha, isso que nos causaria essa sensação intensa de vertigem
painho
se você chega a porto alegre pelo aeroporto, e resolve pegar, em vez de um uber ou um táxi, um T11, seguindo pela perimetral, na primeira parada, no alto do viaduto josé eduardo utzig, há um abrigo de plástico, bege, sujo, parcialmente derretido, por mais que os porto-alegrenses se vangloriem também de ter a maior temperatura do mundo no verão, não é pra tanto, tampouco se trata das evidências da brincadeira esporádica de jovens ricos quando veem um velho mbya-guarani dormindo no ponto
quem poderia contar essa história é mauro, há muito assim não chamado, geneticista, pai de dois filhos, ex-morador do menino deus, tipo comum desses que dormem na rua, sem ânimo para as burocracias de albergue, depois de uma década resistindo nas barras de são joão, no porão dos navegantes, em farrapos, antiguidade é posto, conseguiu se estabelecer no abrigo de ônibus, fez ali seu canto com caixas de papelão, dois cobertores, um copo de metal, uma lanterna, eventualmente com pilhas, gastas, e uma caprichosa estrela fosca de plástico, que amarrava na ponta da casa na época do natal
trinta anos antes, sua habilidade maior era contar mirabolantes histórias de ninar aos dois filhos, o mais novo, hoje cirurgião de cabeça-pescoço no hospital de clínicas, torturava o pai pedindo combinações improváveis, he man com a espada justiceira duelando com o vingador na casa de áries para salvar sara, mauro costurava os enredos, o que mais acordava do que dormia os pequenos
por alguns meses, mauro chamou o abrigo de painho, tímido a princípio, baixo, boa noite, painho, como foi o dia, painho, se aninhando às caixas, pouco falava pra fora, como esses que nos obrigam a mudar de calçada mas evitam as crianças, ficava o dia tricotando no peito rezas de microscópio, ralhas de petri, cantilenas, dando nós, duas dúzias de crónicas repetidas, sequências de dna, sem parar
na noite do crime acordou de súbito, painho, não pode, despencou três quadras para achar uma venda, quebrou a janela, disparou o alarme, saiu com álcool e fósforos, painho, não pode, tremia quando jogou o álcool em tudo que tinha e apoiou a pequena haste de madeira na superfície porosa, sssshhhhi, um eco mínimo se fez no abrigo em chamas, eco mais de luz que de som, mauro ficou parado vendo painho pegar fogo
o que se passou em sua cabeça é tão misterioso quanto as outras formas de vida que existem e desconhecemos, vidas que ganharam formas efémeras na fogueira, pirangas, flavas, era ali, uma criação sua há tanto gestada, desde que chegara à cidade, de ônibus, órfão, pelo recém-inaugurado viaduto da conceição
tem gente que é pássaro
Guto Leite é formado em Linguística pela Unicamp, especialista, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela UFRGS, onde leciona. Autor de seis livros de poesia e três discos de música popular. Vencedor do Prêmio Açorianos de Criação Literária (poesia) e do Prêmio Açorianos de Música (compositor popular).
