De ‘FÁBULA DO AFETO’, de João Pedro Wapler
não sei dizer agora dizer assim
ao certo qual foi a maior rajada
de vento que já dançou na minha
pele. não sou tão velho assim pra
ter o fígado lacrado pelos ponteiros
podres do relógio. tenho agora
tudo cronometrado só por canções
aleatórias, neste quadrado correto,
liso e desinfetado. a única aberração
que aqui cria limo vicia um interior
embaralhado. tenho certeza de que
a infância não seria tão mais torta se
depois de anos de insolações mentais
nos uníssimos num só coro em busca
do nada.

bobagem esse negócio que dizem
da raiva ser reguladora e redentora.
quero ser calmo como o camelo, ter
controle do manto escuro da alma
de dentro do deserto, voar entre
pirâmides, conversar com deuses
amarelados de anteontem. não sei
se pago este pedágio da estrada e
realço a névoa que me cobre. deus, me
perdoe, algumas vezes, só por hoje,
por todos menos por mim no meio
disso tudo. hoje.

meus delírios noturnos não são
castelos onde eu gostaria de me
refugiar. a maioria é só uma sinfonia
torta dos restos de rotina. não faz
tanta diferença o teor do inconsciente.
a maior pedra que está no sapato é a
insensatez dos caminhos corroídos,
uma brasa em forma de cicatriz que
deixa tudo meio nublado e depois
anulado pelo bom convívio animal,
como ocorre nos circos.

anjos suburbanos precisam de
algo além de abelhas pra recriar
o inverno. é assim que me sinto
socado nesse quarto. converso com
o branco das paredes, anoto na
memória o estado preliminar das
coisas. minha geração já foi muito
desatinada – a que teve chance de não
ser. muitas coisas ao mesmo tempo
pra implodir os neurônios, muitos
dados descompensados no hardware.
admiro mais quem é parecido com
meu inconsciente inconsistente e meio
ridículo e desminto o ocorrido da
vida. pode haver um lapso retratado
em mim, um uivo retardado. daí vem
aquela leve impressão infantil de não
pertencer a essa camada decomposta
do planeta.

costurando nuances nos modos de
se ouvir o que vem de dentro com
força fatal, capaz de amansar restos
de espíritos, dejetos cômicos dum
amanhecer do nunca dito. de volta
sem querer à loucura fantasiada
por breves neuroses, drogado pelo
estigma bruto da ternura – implantes
em áreas vivas no corpo do céu.
lembro dela. um pouco. parece que
nessa lama não preciso de nada.
João Pedro Wapler é autor também do livro de poesia Translúcido (2014, Letra1). Também é músico sob o nome Pedro Jules, tendo lançado o álbum Antes que as Cores Façam Sentido (2020) nas plataformas digitais.
