De ‘O ÚLTIMO CONTINENTE’, de Simone Saueressig

“Ele riu, nervoso, e a puxou na direção da porta. Meteu a mão no trinco, teve de forçar um pouco antes da folha se abrir para a escuridão e ele cair para fora. No breve instante em que perderam contato, Maria do Céu achou que ele tivesse caído em alguma armadilha da embarcação abandonada. Gritou, aflita, e avançou, só para sentir os braços de Shiaka ao seu redor outra vez.

Zangada com o susto, ela o afastou com força.

– Isso não é hora de brincar! Achei que você quisesse sair daqui tão depressa quanto eu.

Ele riu baixinho e pegou sua mão de novo.

– Vamos, o caminho está livre deste lado.

Retornaram ao convés dos barcos salva-vidas, mas pelo outro lado do Orlova. Ali, a amurada se debruçava sobre o oceano escuro. Nada se via a não ser as estrelas, o céu repleto delas. Maria parou por um instante para olhar, enternecida.

– Às vezes eu esqueço como é – ela comentou baixinho, lembrando do desfecho da aventura de ambos no LHC.

– Sim, eu também – ele sussurrou. – Mas em outras sonho com elas, e então me lembro.

Shiaka a puxou para frente, e eles viram que teriam de descer uma escada espiral parecida com a que haviam deixado para trás. Maria suspirou desalentada. Seguiu o garoto arrastando os pés. As sombras na sua retaguarda pareciam vivas, repletas de movimentos furtivos.

Ela só queria voltar de uma vez para o rebocador.

A escada rangeu e estremeceu quando eles iniciaram a descida. Dava a impressão de que se sacudissem um pouco, ela ia desabar. O convés, abaixo, estava limpo, resultado de anos inteiros no oceano. Só restava o emaranhado de cabos mais a boreste, do qual se aproximaram com cuidado, prestando atenção onde punham os pés.

Foi mais ou menos nessa altura que Maria do Céu começou a espiar sobre os ombros. Parecia que sempre havia um movimento rápido, justo no limite de sua visão. “Deve ser o vento”, ela pensava, enquanto avançavam, se concentrando para não enredar os pés em algum nó. Quando chegaram junto à amurada, Shiaka comemorou, porque a antena do Félix estava presa apenas por um gancho da estrutura, e seria muito simples soltá-la. Ele passou a lanterna à garota e pediu que iluminasse, ao passo que desatarraxava a parte presa. Claro que parecia mais fácil do que era, de fato. Tudo estava bem firme, e levou algum tempo até ele sentir a rosca ceder.

– Vai ser tranquilo – ele falou, entredentes. Do Céu sorriu.

Um pequeno movimento, mais uma vez, fez com que ela estremecesse e desviasse o foco de luz para cima da rede, próximo ao pau-de-carga retorcido.

– Ei, ilumine aqui, faça o favor! – protestou Shiaka.

Ela obedeceu, resmungando baixinho:

– Ui, que nojo!

No alto da rede, sentadinho sobre as patas traseiras, as dianteiras encolhidas junto à barriga peluda, exibindo um focinho pontudo e meio torto – um detalhe quase engraçadinho – havia um rato.

– O que foi? – o garoto ofegou. Dois laços se soltaram sozinhos e a ponta de metal rasgou o ar de súbito, por pouco não cortando o rosto dele. Shiaka recuou e grunhiu um palavrão. Missão cumprida.

Ele aproximou-se de novo da amurada e espiou o explorador, lá embaixo, se afastando do Orlova. A capitã estava no convés, com outra lanterna e uma coisa que pareceu ao jovem um extintor de incêndios. Ele acenou para a garota lá embaixo, e ela gritou algo que ele não entendeu.

– Acho melhor a gente voltar. Helena parece estar com problemas – comentou, dando-se conta de que não haviam combinado uma forma de regressar ao Félix. Do Céu concordou com um monossílabo, estendendo a lanterna para ele. – O que foi que você disse antes? “Que nojo”? – ele indagou, passando o feixe de luz pelos cabos e pela rede.

Um silêncio de morte caiu sobre os dois, e lá de baixo, uma palavra de Helena conseguiu chegar aos seus ouvidos:

– Ratos!

Era o que havia agora no emaranhado: ratos.

Um monte deles, pequenos e grandes, de pelo escuro, mirando-os com olhinhos redondos e astutos. Um dos animais arreganhou o focinho, cheirando o ar e exibindo os grandes dentes amarelados.

Parecia faminto.

Por um longo momento, Maria desejou com todas as forças ter encontrado uma forma de fugir, antes que se afastassem de Torres.”

Simone Sauressig é escritora. Gaúcha, tem mais de trinta títulos publicados. Seu livro mais vendido é “A Máquina Fantabulástica” (ed. Somos Educação). Recebeu o prêmio “Odisseia de Literatura Fantástica”, em 2018, pelo conjunto da obra. É autora de “Os Sóis da América” e “Padrão 20 – A ameaça do Espaço-Tempo” (ed. BesouroBox), finalista do prêmio “Livro do Ano” da Associação Gaúcha de Escritores, em 2015, na categoria “Narrativa Juvenil”. Em 2021, seu livro “O jovem Arsène Lupin e a Dança Macabra” foi finalista do prêmio Marcos Rey, oferecido pela Associação Brasileira de Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror. 

FICÇÃO

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

%d blogueiros gostam disto: