De ‘OLD PARR’, de Armando Moura Filho
Noite espichada
Noite espichada,
Dia que se recusa a chegar.
A noite profunda é o meu habitat,
Quando ela chega saio para as ruas
Desertas, o lixo carregado pelo vento,
Que posso ver até onde permite a neblina.
Movimento-me por calçadas
Irregulares e estreitas. Às vezes,
Tropeço. Quase caio.
Vejo luzes de bares quebradas pela
Densa bruma,
Dentro deles só corações sangrando
De solidão.
Não é real, estou delirando, digo
Para ninguém. São quadros.
Uma sucessão deles.
Todos assinados por E. Hopper,
O pintor que iluminou a solidão
Para nos deixar ainda mais solitários.
Volto para a calçada escorregadia,
E para a umidade, quem sabe?
Quem sabe não consigo pelo menos
Um cigarro?

Muller & Norman
Muller & Norman formavam uma dupla
De profissionais do direito.
A sociedade funcionava havia 12 anos.
Era eficiente. Engrossava com Muller, afinava
E era até refinada, com Normam, mais jovem
E feiticeiro das construções teóricas do direito.
Pai rico = tempo para estudar.
Norman, 38, era solteiro e, pela distribuição das tarefas,
Ficava mais tempo no escritório. O sócio desconfiava
Que ele mantinha um caso com Rita, Rita Mello, secretária.
Ela tinha uns 5 ou 6 anos de casa, sem dúvida,
Era preparada e muito amável. Se isso interessa, Muller
Costumava ler H W Auden, Greene, Callado e Palmério.
Norman era assíduo frequentador das páginas do brutalista
Fonseca. Apreciava também Dalton e Raduan Nassar.
No final do ano de 2020, celebraram, como sempre,
a passagem de ano, com a presença, no escritório, de alguns
clientes importantes e colegas. Havia um motivo adicional
para a comemoração. O escritório vencera uma causa milionária
no STF. Vinha perdendo na instância ordinária, mas, no último
minuto, virou o jogo. A sustentação oral de Norman foi
considerada uma das mais brilhantes da história da Corte.
O cliente fora garimpado e seduzido por Muller.
Mas a condução da demanda por Norman fora impecável e decisiva. No encerramento da festa, só os dois presentes,
disse o mais velho, com inusitados reconhecimento e franqueza: Norman você é genial; não tenho mais dificuldade em lhe dizer isso. Obrigado, você exagera, mas sei que sou, pelo menos,
bom, disse o mais jovem.
Quero deixar claro, contudo – prosseguiu- que você
é a alma e o coração da sociedade. Meu trabalho vem depois,
e se o seu tiver êxito; caso contrário, a minha presença aqui
é de uma pertubadora inutilidade.
Depois de longo suspiro, disse Muller, você é muito generoso,
além de tudo o mais. Acho, aproveitando o momento de sinceridade, que tua participação nos ganhos da sociedade deve aumentar. É justo.
Não estou pensando nisso, Mueller. Não agora.
Quieta non movere. Tenho um presente para você :
um W C Williams. Obrigado. Pois eu estou lhe dando
um Carver, contos. Obrigado. Ele é um craque.
Tomaram mais uma dose de Chivas e trocaram
mais alguma confidência. Saíram juntos para o frio
da noite em busca de táxi. Antes de embarcarem trocaram
longo e apertado abraço. Até segunda. Até segunda.
Na segunda, Norman não apareceu.
Também na terça e assim por diante.
Na verdade, ele nunca mais foi visto,
What hapenned with Norman? Jamais se saberá.
Eu sou o único que poderia esclarecer.
Isso, confesso, me faz sentir poderoso,
Um deus de brinquedo, mas que se sente constrangido
Em intervir na solução do mistério que criou.

Quando eu a tinha por perto
Quando eu a tinha por perto,
Costumava contar-lhe histórias
Exóticas sobre meu passado,
Para ela obscuro… Narrava-lhe
A minha vida estranha no interior
De uma enorme cidade de vidro,
Construída sobre dunas de areia
De um remoto deserto de outro continente.
Era um clandestino. E de espécie diferente.
No lugar da pele, como nós, eles tinham
Um plástico claro e muito esticado;
Os olhos, pequenos e multicoloridos,
Eram também de vidro;
Os cabelos, cabelos não eram:
Fio de aço bem finos e flexíveis.
Os adultos tinham um porte avantajado,
Quase, em média, 2 metros de altura;
Dominavam vários idiomas, e estudavam sânscrito.
Podia não me sentir completamente
À vontade para estar ali; mas apreciava muito
O ar futurista e cosmopolita do lugar.
Nunca soube a quem agradecer por ter
Permanecido na cidade,
E também jamais me informaram dos motivos
De minha compulsória saída. Embarquei
Num trem e fui embora …
A Lia, nessa altura, me perguntava se era
Mesmo tudo verdade. Dizia sempre que era…
Mas ela já estava dormindo; eu? Quase…
Armando Jorge Ribeiro de Moura Filho nasceu em Curitiba (PR) em janeiro de 1944, onde concluiu o colegial e ingressou na faculdade de direito da UFPR. Em 1967, transferiu-se para porto alegre e aqui concluiu o curso de Direito em 1970, na UFRGS. Depois de seleção pública, foi admitido no quadro de advogados da Rede Ferroviária Federal SA. Posteriormente, lecionou, no ensino superior, as disciplinas de Teoria do Estado e Direito Tributário. Em 1992, mediante concurso púbico, ingressou na Justiça do Trabalho, 4a região, como juiz substituto. Aposentou-se em 2001. Interessado por literatura desde jovem, tem na relação de seus autores preferidos, entre outros, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Dalton Trevisan, Sérgio Faraco, Rubem Fonseca, Raduan Nassar, Manoel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Hemingway, Carver, Salinger e Calvino. Começou a escrever, predominantemente poesia, no ano passado, quando contava com 75 anos. Os poemas selecionados integram o livro “Old Parr”, no prelo.
