De ‘PRIMEIRA PESSOA’, de Magda L. Carvalho
Primeira pessoa
Livre como os cavalos nos desfiladeiros, selvagem
tece teias como as aranhas apanhando suas presas
arremete-se por estradas poeirentas
acaricia os pássaros em voo.
Sua solidão não se rompe
nada muda na paisagem de seus olhos
morta de um cansaço em outro além de tudo
a morte anuncia-se em lampejos de luzes tremeluzentes.
As cadeias em círculos concêntricos
nunca saiu de onde nasceu
como árvores amarelecidas pelo tempo
as palavras embotam-se
os objetos permanecem
as ruas escondem mentiras
sua sensibilidade controla o empobrecimento da verdade
mente a todo o momento.
Prisioneira em seu túmulo confortável e triste
prisioneira seus laços cadeias elos sem fim e alegria
ousa e recua em táticas desconexas
apenas vai sendo carregada pelo vento em seu rosto.
Seu luto esvai-se em pérolas jogadas aos porcos
seu nome parece não ter significado
sua imagem, nos reflexos das janelas, é lastimável
em solitário abandono dentro de si mesma.
Meus dedos doem
minhas mãos finalmente se acalmam.

Para as mulheres do meu passado
quem és tu, ó mulher sem rosto
de onde vens com teus olhos tristes, perdidos no escuro das noites
[dos campos
quem são teus ancestrais, o que fizeram em dias de sol, nas tardes
[de inverno
terás sido feliz em um leito largo
terás amado e sido amada como quiseste e sonhaste
conheci teus filhos e teus netos, conheci um pouco tuas dores
sentei em teu colo nas tardes de sol de inverno, brinquei com tuas rugas a descobrir teus traços, a conhecer minhas origens de menina
[sem rosto
vejo teus filhos mortos
vejo-te, mulher enigmática de olhos duros como as noites nos campos seus temporais e tempestades
o que me legaste em teu testamento de sangue
porque deixaste-me tua dor a resolver em minha vida
quem és tu, ó mulher androide
de onde vem tua dor solitária como as noites dos campos
que fazes nas tardes de sol no inverno
erras como as mulheres de tua vida
porque procuras fugir dos desígnios do tempo
foste extemporânea nas ruas das cidades, perdida em teu tempo
porém, o legado teu, ó mulher ansiosa, resolve-se em nãos,
em transmutação das mulheres que carregas no sangue.

No quadrante sul
O sol não bate nas janelas
A luz, indireta sempre
É clara e forte
O branco reflete
As cores tornam-se a sombra da palheta
E o azul do céu é límpido e transparente
O verde das plantas, em seus diferentes matizes,
É lusco-fusco
E a água do rio, ora é azul, ora é turva
No quadrante Sul
O sol não aparece
Nunca há lua cheia
E quando há tempestade
A chuva intermitente lava as vidraças
E o vento até assusta.

Por tudo
por tudo o que já fui
pelas promessas
pelos sonhos que não se cumpriram
pelas palavras balbuciadas
pelos poemas tontos
pelas inúteis esperas
pelos amores traídos
pelos desejos assassinados
eu venho aqui dizer
que sei que vou aos poucos
com medo, Deus, com medo
cada face minha
que fica para trás
traz as lembranças de quem já não sou
traz os infortúnios por minha covardia
traz os desígnios de meu destino opaco
traz a memória eterna de tua face querida
traz o beijo partido da despedida
e sei que vou morrendo
todo o dia
enquanto houver vida.

À musa
digo-te, querida
vá com calma
pois meu coração
é o coração de uma criança
abandonada à beira da estrada
se me deres a mão
vou seguir-te, trôpega
mas de olhos bem abertos
porque não sou boba
e só confio depois
não sei por que te aproximaste
sou apenas uma mulher sozinha
ah! já sei, querer ser minha amiga
mas eu preciso de provas
tua intenção deixa-me em alerta
nunca mesmo ninguém
veio ao meu lado no mundo da poesia
e não sei se cumprirei a tua expectativa
sempre cantei ao léu.
Magda L. Carvalho nasceu em 1961, em Lavras do Sul (RS). É engenharia metalúrgica e publicou Noite Alta em 2009, pela Ed. Movimento. Na internet, mantém o blogue Poesia Cotidiana e as páginas Poesia em Branco e Preto, Poemas inconstantes, Poemas derramados e Balada para sax e orquestra.
