De ‘TRAVESSIAS DE AMANAÃ’, de Ana dos Santos, Lilian Rocha, Carmen Lima, Fátima Farias, Taiasmin Ohnmacht e Delma Gonçalves

A cor do negro (Ana dos Santos)

A cor do negro
é o contraste entre as cores.
São multicores negras
entre a mais clara e a mais escura cor.
Mas ainda é negro
o meu amor!
Há pessoas de cor
e há pessoas sem amor…
E eu,
eu amo quem sou:
Negra!

Preta-à-porter (Carmen Lima)

Pendura a armadura
pesada e dura de amargor
Espalha, embaralha, realça tua cor
te veste
investe na alma
e te acalma
Cabide tudo que te aperta, espeta e tortura
Rompe o remendo e a costura
Ergue a fronte
para que nada te afronte
nesta nova postura
Desata os nós
que alinhavam tuas mãos, pés e voz
Te envolve em cortes de valor e apreço
e desfila sem tropeços
agora, sob tuas medidas
vestindo teu lado avesso.

Identidade (Fátima Farias)

Não existe cabelo ruim e sim identidade assumida
Abracei a minha há um bom tempo
Criei meu mundo saindo do poço das incertezas
Posso ver e tocar a beleza que minha raiz representa
Sem tristeza
Não estou mais em cima do inseguro muro
Despertei com sede de aprendizado
Essa busca não cessa
Se alimenta na pressa de se valorizar
Eu meu chão minha raiz meu lugar
Nada preciso fazer para provar
Descobrindo quem sou e isso basta
Não poderia ficar aceitando a mulatice morenice
Sem luta sem freio
Acordei a tempo
Tenho orgulho de minha Negrice.

Flores às margens (Taiasmin Ohnmacht)

Maria, há que se ter delírios
Esquecer rotas
Criar caminhos

Roberta, há flores às margens
Embora
o dióxido de carbono
E direito a viver
Dinheiro a dever

No céu da boca de Júlia
Ruínas pedem
Mandingas ao céu da noite
Faísca produtiva
De palavras-archote

O dom de Quixote
Cobriu o corpo de Silvia
Encontra teu bará, mulher
E cavalga
Hay gente siendo devorada
Por molinos

Meus meninos (Delma Gonçalves)

Dizem que quando uma poeta escreve versos
São partos que se repartem na soltura da dor
Ou como a harmonia do músico
A fluir melodias de seu interior
Como a música que nasce da alma
São atos, afetos nascidos
Sentimentos clandestinos
O ventre que dá à luz emergente
Criaturas, fios, nascimentos
O amor que vem de dentro e se espalha pelo mundo
Não são mais obras da gente
Nossas inspirações de fórum uterino
A se espalharem pelo mundo
Vão fazendo seus caminhos, seus ninhos…
Assim como passarinhos
Obras-primas de minha libido
Amores do meu destino
A ária orquestrada em tom masculino
A poesia da canção mais bonita
Em seu melhor estribilho
O meu hino, os meus erês
Meus filhos
Os meus meninos!

Preciso andar (Lilian Rocha)

No primeiro instante
Uma tristeza profunda
A terra sob os meus pés
Treme
Uma incerteza
Paira no ar
Logo mais
A respiração se estabiliza
O reflexo e a memória
Se dão as mãos
Como assim, resistência?
Por acaso em algum momento
Da vida
Deixei de ser resistência?
Meu corpo negro
Estereotipado, objetificado
E não será agora
Que será diferente
Olhos mais abertos
Intuição
Audição da alma
Juntos de mãos dadas
Com os meus
Eu te cuido
Tu me cuidas
Nós nos cuidamos
E seguimos
Pois a bala tem alvo
E na palheta de cores
O gato pardo
É Negro!

(publicado anteriormente em rudiomanifesto.org, mas/2019)

POESIA

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