ESPÍRITO DAS ÁGUAS, por Vera Ione Molina

Permaneci à janela observando as ondas na areia, aqueles babados brancos que lembravam uma fantasia de baiana coberta de brilhos, a sambar lentamente na avenida, bem como a televisão mostrava quando focava nas saias. Chegara ao entardecer com todas aquelas latas e caixas, descarregadas num quarto da casa emprestada pelo meu patrão.

Desinsetizador de residências e depósitos era o meu ofício, por isso me chamaram antes do veraneio para o combate do surto de pragas que assolava o balneário, escreveu o sub-prefeito.

Precisava descansar, mas o movimento e as figuras que se formavam na água, junto com o som que me embalava, mantinham-me hipnotizado. A brisa fresca no rosto era uma carícia do mar, que há tanto tempo eu não via. Só uma vez minha mãe, que vivia de costurar para fora, conseguiu me levar a uma colônia de férias pra passar uma semana.

Uma lufada de vento deslocou uma porção de areia das dunas. A areia me atingia com a sensação de agulhadas no rosto e me voltei para o outro lado. Pela primeira vez vi que, a uns cem metros do lugar, havia uma espécie de farol abandonado. Uma luz amarelada, mortiça, era sua única iluminação. Senti vontade de caminhar até aquela estranha construção, mas o horário e a fraqueza das pernas desaconselhavam.

De manhã, tomei meu café com leite, comi pão com manteiga e fui olhar a agenda: o clube às oito, a igreja às dez, o centro espírita às duas e os correios às quatro da tarde. Ia tentar me organizar sem ansiedade, sem antecipar o próximo dia, costeando o mar sempre que possível.

Lembrei da visão do farol e subi as escadas correndo para olhá-lo novamente. Não era tão próximo assim, mas era uma construção em formato de cilindro, feita de pedras antigas, cinzentas, mal dava para ver, parecia uma miragem. Perguntaria para um funcionário do clube, ou para o padre, ou para quem tivesse oportunidade, se aquele farol tinha alguma serventia numa praia tão moderna. Talvez passassem barcos grandes por aqui. De navios, por essas bandas, nunca tinha ouvido falar.

O tempo passava rápido quando se queria parar para pensar, lembrar histórias que a mãe contava, filmes que vira na televisão nos fins de semana. Hora de pegar a caminhonete e tomar o rumo do clube.

Um prédio bem amplo, eu teria que descer muito material, talvez precisasse de ajuda do porteiro. E o moço já vinha na minha direção, a mão estendida para cumprimentar, parecia contente com a minha presença. Sim, dava uma mãozinha, estava acostumado a carregar peso, era mais faz-tudo que porteiro. E falava, falava, mostrava cada cadeira, cada mesa em volta da piscina e contava onde e quando tinham sido compradas, ele tinha ido em pessoa junto com o diretor social até as melhores lojas do município.

Quando consegui terminar a inspeção e preparar os inseticidas para começar a distribuir pelos pontos estratégicos, já eram nove horas. Tive que pedir licença para o porteiro e, para não magoá-lo, disse que as substâncias que ia usar eram muito tóxicas, melhor ele ficar longe, já que não tinha a proteção adequada. Só então ele perguntou meu nome. Cândido, respondi cheio de orgulho. E ele saiu murmurando: Cândido, que nome mais estranho.

Eram nove horas e quarenta e cinco minutos quando o clube ficou pronto, chamei o moço para combinar a limpeza que me cabia fazer e ia perguntar sobre o farol, mas ele se pôs a mostrar os bancos do bar, as mesinhas com cadeiras estofadas. Não, ia deixar para perguntar para o sacristão ou quem sabe até para o padre.

Fui para a igreja e uma senhora que cuidava da limpeza me recebeu com cara de poucos amigos. Fiz tudo o que tinha de fazer e, cansado, pus os olhos numa santa, a mais bonita que já tinha visto. Perguntei para a dona que santa era aquela e ela disse que era Santa Teresinha. Minha mãe era devota daquela santa e me dizia que quando eu me visse em apuros, ou desejasse alguma coisa para melhorar minha vida, rezasse para ela. A mãe tinha passado a vida rezando e contava muitos fatos sobre Teresinha. Aos catorze anos, quis entrar para a ordem das Carmelitas Descalças e não lhe foi permitido devido à pouca idade, mas ela não sossegou até ir falar com o próprio Papa. Era muito bela, mas também muito doente e morreu aos 24 anos. Havia também uma história sobre rosas vermelhas.

A senhora disse que sabia de tudo isso e até o nome de nascimento dela, a nacionalidade e foi me conduzindo para a porta de saída.

Fui preparar meu almoço, já pensando que a próxima visita seria ao centro espírita. Lá, não ia perguntar nada, nem olhar muito para os lados. Tinha muito medo de espírito, só da mãe que não. E fiz tudo muito bem feito porque sempre fui caprichoso. Lá sim, tinha uma senhora bem simpática e eu tinha certeza que ela era viva, pois até no telefone falou, sabia números de documentos, endereço, tudo.

Perguntei se ela conhecia o farol da praia. Pareceu se interessar e logo desistiu. Bem como fazem as pessoas que mudam de ideia. Aí sim, fiquei assustado e resolvi esquecer aquela história, me concentrar só no meu serviço e voltar pra casa assim que desse. Mas que a vista do quarto que eu estava ocupando era linda, ah, isso era. E o som do mar, então? Estava na hora de deixar de ser medroso e aproveitar as coisas boas da vida, conhecer coisas novas, sair da frente da televisão, onde me refugiava quando não estava trabalhando.

Por hoje só faltava o posto dos correios. Ia terminar ainda dia claro. Se tivesse um carteiro, eu ia perguntar o que eu queria saber, mas só tinha o zelador me esperando, com cara de quem está com pressa para ir embora.

Eu também estava cansado, louco por um café, por um passeio pelas ruas com nome de flores. E vi muita casa bonita, conversei com muitos jardineiros, pedreiros, pintores de parede. Alguns até me chamavam de doutor, acho que por causa da caminhonete do patrão. Pessoas que tinham amigos eram felizes e saudáveis, uma professora sempre dizia. E eu me lembrei dela, conversando com todos os alunos, fazendo jogos que nos obrigavam a conversar.

Dois dos novos amigos, que pintavam as paredes de uma mansão próxima à casa do meu patrão, me convidaram para uma cervejinha. Por que não? Sentamos num bar de onde se via e escutava o mar. Eles bebiam muito, eu bem menos. Fui pra casa dando risada e trocando os pés.

Quando abri a janela do quarto, era nítida aquela construção em forma de cilindro, aquele farol. Afinal, só podia ser um farol.

Desci as escadas e comecei a caminhar na direção da luz amarela. Fui com os pés dentro d’água, estava gelada, brilhante. O mar me absorvia tanto que nem me lembrava para onde me dirigia. Olhei pra frente e estava a poucos passos do prédio que eu já nem sabia se era realidade ou imaginação.

Começou a chover. Chuva perfumada? Chuva colorida? Eram pétalas de rosas vermelhas. Achei estranho, mas não senti medo. Bati à porta. Uma voz feminina perguntou quem era. Disse que me chamava Cândido, que era desinsetizador, estava trabalhando no balneário. Ela respondeu que a casa dela era muito limpa e não tinha insetos e pragas. Expliquei pra ela que tinha ido até lá porque já estava pensando que o farol existia só na minha imaginação. Que ela podia ligar para o meu patrão e perguntar se eu trabalhava pra ele.

A porta foi aberta lentamente, com aquele rangido de portas de casas mal-assombradas e surgiu uma linda moça de cabelos longos. Era tão linda que dei meia volta para fugir, pensei que podia ser uma alma, talvez uma princesa morta há séculos.

Então ela desceu os degraus e disse:

– Me espera, Cândido. Vivo isolada, mas gosto de gente.

Perguntei se ela morava sozinha. Disse que sim. O pai era o faroleiro. Amigo dos pescadores, da colônia logo ali, cem metros adiante. Ela continuou sendo amiga deles e das esposas quando ficou órfã. Ajudava as mulheres nas costuras e bordados. Ajudava também num pequeno restaurante de frutos do mar. Não era um fantasma.

– Qual o teu nome?

– Dione.

Achei estranho o nome dela e perguntei se aquilo era apelido ou era nome inventado. Ela disse que era o nome dela, tinha até sobrenome, como todas as pessoas. Dione significava espírito das águas, o pai contava, mas recomendava que o dia que aparecesse um moço bonito e ela se apaixonasse, podia ir com ele para qualquer lugar do mundo, mesmo que fosse longe do mar.

Vera Ione Molina mora em Porto Alegre, RS, professora, revisora e escritora de livros de literatura infantojuvenil, contos e romances. Graduada em Letras e pós-graduada em Teoria da Literatura, ambos na PUC-RS. Autora da novela Quarentena,IEL e Alves Editores, 1996, na 3ª edição intitulada Notícias da Guerra e o Destino de Laura, 2017, Gemido da morte sob as solas dos sapatos, 2018, ambas pela Editora Bestiário; O outro lado da ponte, Ser MulherArte Editorial, 2020, dos livros de contos Outros Caminhos, Mercado Aberto, 1997 e O Quarto Amarelo, Bestiário,2015, entre outros. Participa da Antologia O Livro das Mulheres, org Charles Kiefer, 1997, de coletâneas de contos e poesia, inclusive como organizadora. Foi jurada dos prêmios Histórias do Trabalho e Açorianos, entre outros.

FICÇÃO

3 comentários Deixe um comentário

  1. Muito bonita a força simbólica do teu texto, a chuva perfumada, o farol suspenso entre o real e a imaginação. E sobretudo a abertura que leva (pode levar) ao amor. Parabéns, Vera! É a Luciana Coronel. Não sei porque consta o meu login na autoria do comentário. Até o próximo!

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