FUMAÇA, por Giovani Thadeu
Doralina, mais conhecida na vizinhança como Dora, é uma senhora septuagenária, aposentada, viúva, vivem ela e Fumaça no seu pequeno apartamento.
Fumaça deve seu nome ao tom cinza do seu pelo e também ao seu comportamento onipresente e irrequieto, Fumaça está aqui, ali, lá e de novo aqui.
Dora é uma senhora de baixa estatura, um pouco rotunda como as figuras de Rivera, cabelo farto e sempre alinhado em tom lilás. Simpática, risonha e amável como a personagem Dona Benta de
Monteiro Lobato, conservando uma sobriedade inglesa no modo de vestir-se. Tudo milimetricamente combinando e de bom gosto.
Seu marido, de descendência alemã, fora ferroviário, era homem taciturno, tiveram dois filhos, um homem e uma mulher.
O filho homem, herdou a doença do pai hemofílico, e como o pai, teve breve tempo de vida.
A filha casou-se e foi morar em outra cidade do país.
Dora morava num apartamento de um conjunto de prédios populares construídos na década de 60.
Certo dia, a simpática dama, voltando para sua casa e passando por um terreno baldio, avistou um saco de lixo preto que estava no meio de macegas. O saco movimentava-se em ondulações e abafados ganidos, vinham da direção dele.
Ela parou, olhou ao redor, a rua estava deserta, titubeou em ir na direção do saco e finalmente algo mais forte a fez considerar o feito.
Aproximou-se da embalagem amarrada com um nó, desfez a amarração e demorou um pouco para distinguir uma pequena mancha cinza dentro do saco preto.
Aos poucos foi percebendo patas, rabo, orelhas, focinho e grandes olhos remelentos.
Dora apanhou o bichinho com as mãos, levou-o para perto do seu rosto para analisá-lo melhor e logo levou uma lambida no nariz.
Fumaça ficou fazendo parte da sua vida. A Esperava aos saltos, quando ela retornava para casa, dormia aos pés da cama dela e estava sempre pronto para um passeio.
Simpatia à primeira lambida, foi assim o acontecimento para ambos.
O tempo passava e a cena se repetia, a imagem, margem da imaginação. Fumaça apressado e Dora nem um pouco.
Ele a puxar a vida e ela a travar o tempo. Fumaça tinha ímpetos de escapar, queria correr e Dora afligia-se com a euforia juvenil de Fumaça.
Embora, a senhora tivesse recebido educação cristã católica, não vacilou por optar por outra religião, mais por querer agradar o marido, que era luterano convicto e também para que a família tivesse uma unidade de fé.
O marido nunca lhe pedira para que ela abandonasse sua fé, mas Dora que lera a Bíblia e tinha espírito libertário, não via diferença significativa entre os dois sistemas religiosos da fé cristã. Pensava que a mudança de religião não mudava em nada seu modo de agir, diante da vida da sociedade e do próximo. A professora alfabetizadora aposentada, no passado, tivera que lidar com a diversidade das crenças dos alunos, católicos, umbandistas, espíritas, luteranos e mais os indiferentes.
Como era professora de escola pública, não tinha o compromisso curricular dos colégios de cunho religioso, de catequizar os silvícolas.
O texto favorito da bíblia, que despertara Dora para a questão da fugacidade da vida e da vanidade de certas coisas, era do velho testamento:
“Eclesiastes 1 prólogo – Vaidade das vaidades…, tudo é vaidade. Que proveito tira o homem de todo trabalho com que se fadiga debaixo do sol? Uma geração vai, uma geração vem, e a terra sempre permanece. O Sol se levanta e o Sol se deita, apressando-se a voltar ao seu lugar e é lá que ele se levanta. O vento sopra em direção ao sul, gira para o norte, e girando vai o vento em suas voltas. Todos os rios correm para o mar e, contudo, o mar não se enche: Embora chegando ao fim do seu percurso, os rios continuam a correr. Toda palavra é enfadonha e ninguém é capaz de explicá-la. O olho não se farta de ver e nem o ouvido se farta de ouvir. O que foi será…”
O tempo se esvaía e como “fumaça”, foi passando, Dora que não era de cultivar memórias, era grata e se comprazia de contar com a companhia e a amizade de Fumaça.
Resignava-se com sua sorte, pensava que tudo que lhe acontecera na vida, deveria ter acontecido, não lamentava nada e pensava que tudo estava certo nos seus desígnios.
O texto bíblico, dava para Dora um sentimento compassivo, para com a sorte humana, apenas deixava fluir, observando as coisas que lhe sucediam. Nada para ela era um desalento, amava a vida, as pessoas e a natureza, amava os mistérios do mundo e a sua complexidade, restando-lhe perplexidade e contentamento por fazer parte de tudo isso.
Na idade em que se encontrava, aceitava normalmente sua história e seu acelerado envelhecimento, enquanto Fumaça lhe significava um resgate de vida, o próprio nome dele evocava também a fugacidade do tempo.
Em uma dezena de cair de folhas outonais, em um amanhecer ensolarado, com o tempo de temperatura amena, Dora acordou sonolenta, com as lambidas de Fumaça na sua mão.
Isto fez com que ela lembrasse que havia pouca comida para o cãozinho e, que teria que sair para comprá-la. Falou com Fumaça como se ele entendesse muito bem o propósito da saída dela. Ao sair do prédio, deparou-se com um dia radiante, quanto céu azul, sobre a sua cabeça, sem nenhuma nuvem, por que preocupar-se?
O chão repleto de folhas esmaecidas, o que deixava entrever os pássaros que chilreavam por entre os galhos das árvores nuas.
O cenário parecia a fotografia de um final ou início de algum filme que ela já assistira, uma sensação forte de paz invadiu-a.
Ao retornar, ela fez barulho na porta com sua chave, anunciando a sua volta do supermercado, Fumaça já não saltava mais como antes, mas ia ao seu encontro, esperando uma recompensa.
A idosa senhora acariciou a cabeça de Fumaça, tirou da sacola a comida dele, serviu-o no seu pote, mas naquele dia, Fumaça não quis comer. Dora sentiu-se bastante cansada, torpor, tirou os sapatos, deitou-se no sofá e cerrou os olhos, com Fumaça lambendo os seus pés e permanecendo ao lado da velha amiga.
Giovani Thadeu é nascido em Porto Alegre, em 26 de junho de 1965. Formação em filosofia pela UFRGS, licenciatura. Formação em canto pelo conservatório Pablo Kómlos. Atuou como cantor e professor de canto por 20 anos. Fez parte de vários grupos vocais, sendo para mim o mais significativo “O Madrigal de Porto Alegre”, regido pelo maestro Gil de Roca Sales. Proferi algumas palestras sobre filosofia (A dialética hegeliana aplicada à atualidade e O Aparecimento dos Castrati no período Barroco) em cafés e espaços culturais. Estudei pintura com as professoras Michele Filomena e Ondina Pozoco.

‘Ele a puxar a vida e ela a travar o tempo. Fumaça tinha ímpetos de escapar, queria correr e Dora afligia-se com a euforia juvenil de Fumaça.”. Maravilhoso conto, rico em conteúdo, pois dialoga com outras linguagens, como Artes Plásticas, filosofia e a bíblia (Eclesiastes). (Precisamos conversar sobre vírgulas).
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