LIRISMO, SUBJETIVIDADE E SOCIEDADE: O ENTREGADOR DE PRESSA, DE MARLON DE ALMEIDA, por Marcia Ivana de Lima e Silva

O verso é um doido cantando sozinho.
Seu assunto é o caminho. E nada mais!
O caminho que ele próprio inventa…
Mario Quintana

No ensaio “Lírica e sociedade”, Theodor Adorno afirma que o poema é o encontro entre subjetividades, a do poeta e a do leitor, através da linguagem que funciona como um elo entre lírica e sociedade. Ou seja, não há como pensar a representação social do poema fora da esfera da subjetividade, já que somente o indivíduo realmente mergulhado na linguagem conseguirá concretizar a relação entre o conteúdo lírico e a vida social. É exatamente isso que Marlon de Almeida nos proporciona com O ENTREGADOR DE PRESSA: um mergulho na linguagem lírica ao encontro da representação social.

Os poemas sem título se entrelaçam, promovendo um ritmo de leitura, que ora nos empurra com pressa, ora nos convida a parar para observar e pensar. A realidade do isolamento social devido à pandemia aparece, principalmente, pela presença dos entregadores, que se tornaram figuras relevantes para que o distanciamento fosse possível, como se lê:

Arrisca a vida sob chuva fina.
Na garupa, a pizza esfria,
metade calabresa, metade coração
com molho de tomate.

A realidade deste trabalho dos motoboys está nos versos de Marlon, que parte da subjetividade do „eu‟, ampliando-se para a representação coletiva de todos que se sentem “atropelados” pelos imprevistos da vida.

Ao mesmo tempo em que somos colocados diante de nossa realidade cotidiana, também são presentificadas as referências clássicas, como a mitologia grega, na figura de Ariadne, ou como a tradição literária portuguesa, no velho do Restelo, de OS LUSÍADAS, de Luís de Camões. Além disso, a poesia brasileira é atualizada, através da intertextualidade com os versos de NO MEIO DO CAMINHO, de Carlos Drummond de Andrade:

No meio do caminho, porém, tinha uma pedra,
tinha uma pedra no meio do caminho
para desequilibrar o poeta de fatigadas retinas.

Ou com os versos da canção CONSTRUÇÃO, de Chico Buarque, em que usa a mesma brilhante estratégia das palavras proparoxítonas ao final dos versos:

Entregou a encomenda
como se fosse a última.
Comeu o pó da estrada
anunciando a máquina.
Andou na contramão
desafiando o trânsito.
e acabou notícia
no jornal de sábado.

Ao lado dessas referências, descortina-se para o leitor a cidade contemporânea, com suas ruas agitadas, casas, edifícios, pessoas com pressa, moradores de rua, relações fortuitas, carros, motos, tudo o que marca nossa urbanidade. Ênfase para o destino, às vezes, trágico dos motociclistas, a representar a necessidade de parar, sem pressa de morrer.

Não apenas as grandes cidades estão aqui, mas as pequenas também, aquelas que Mário Quintana já havia cantado. Marlon nos mostra, agora, a cidade que se motorizou e se povoou, mas sem garantia de comunicação entre os habitantes e, consequentemente, sem garantia de felicidade:

A solidão das pequenas cidades
nas praças ao redor das quais
os automóveis passam no domingo
em zigue-zague.
A solidão escancarada nas calçadas
rodando pelas mãos
na hora do mate.
E o ar pesado de um azul bovino
no couro líquido e mole dos olhos
de quem não sabe.

O olhar do poeta mudou porque a cidade mudou, marcando a força da subjetividade que representa a coletividade, o conteúdo lírico que se concretiza na representação da vida social. A solidão permanece como marca do indivíduo na sociedade.

A literatura, mais especificamente, a poesia, parece ser a solução para os males que a vida moderna nos apresenta. Marlon traz diversos poemas que entrelaçam o fazer poético com a correria do dia-a-dia, seja a pé, numa bicicleta, numa moto ou num carro. A presença do lirismo garante nossa sensibilidade, diante de um mundo que não faz questão de abrir espaço para o sensível. Mesmo assim, o poeta insiste:

O carro invade a calçada,
o carimbo das rodas
nas pernas quebradas do verso.

Antes fosse a caçada de algum poeta:
não há metáfora
na barbaridade do gesto.

Insiste, inclusive, como possibilidade de escapar do ritmo alucinado e alucinante da cidade, seguindo o andamento tranquilo do poema:

Ando lento ao longo das ruas do poema,
não há prazo para a entrega do ponto final:

quem tem pressa come carne crua. Encantamento puro a potência da poesia de Marlon de Almeida, que faz aparecer a palavra do eu e a do outro, colocando a nu as relações pessoais e sociais, revelando nossa mais íntima condição existencial. Seus poemas nos salvam da mesmice do cotidiano, porque o conteúdo lírico nos revela a mais simples verdade: existir é um problema social. A relação entre subjetividade e sociedade é potencializada pela tensão existencial do sujeito na sociedade, que só pode ser salvo pela poesia, pela arte. Ressoando Quintana, para quem o verso é “um doido cantando sozinho” apenas preocupado com o caminho, os poemas de O ENTREGADOR DE PRESSA nos acompanham, apontando o caminho da lírica, como capaz de revelar a vida interior e a vida social. O que fica em nós é a percepção de que somente a “consciência de si” nos torna capazes de ver o outro; somente a poesia potencializa este olhar, que só tem uma pressa: nossa leitura.

Marcia Ivana de Lima e Silva é professora do Instituto de Letras da UFRGS. Pesquisa criação literária, com ênfase em Crítica Genética. Coordena o acervo de Guilhermino Cesar.

ENSAIO

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