MEMENTO, por José Francisco Botelho

Em tardes de inverno
que o fogo alongava
estalando chamas
pra dentro do ocaso
minha avó contava
a velha lembrança
de quando, menina,
na noite do rancho,
o estrondo de passos
cresceu em seu sonho
e a trouxe assustada
de volta à vigília.

Passos de botas duras,
duro tinir de esporas,
estalos de rebenques,
sussurros de cancelas,
contra o silêncio aflito
da noite que aguardava
um grito, uma batida,
na estância que dormia,
exceto pelo mocho
no galho da camélia
cujo ulular profundo
era um soturno alarma
no sonho da menina
que longo crepitava.

E, despertando, entendeu
que o sonho não era sonho,
que os passos vinham de fora,
das pedras mouras do pátio,
e as esporas retiniam
contra os degraus e o lajedo,
sobressaltando as janelas,
repicando a escuridão.
E no fio do parapeito
acuava a cachorrada
e a coruja se escapava
na noite virada em susto.

E algo nas vozes sussurradas,
na densidade do ar noturno,
lhe revelou que aquele estrondo
eram os homens do governo
que pela Estância da Ramada
vinham pisando sem licença
vindos ali quebrar a porta,
vindos ali prender seu pai.
Porém o velho coronel
jamais foi pego de surpresa.
Dormia sempre com um pé
fora da cama, já calçado
em sua bota russilhona
-e, sob o travesseiro, a adaga
velava, ardente, na bainha.
E o coronel ouviu os gritos
da soldadesca nos umbrais
e um outro grito, lá no quarto,
onde sua filha despertava
e com voz plena lhe gritava
“Eles vêm te pegar, meu pai!”
-E o coronel saltou no escuro,
dois pés calçados num instante,
e como sombra envolta em sombra,
no poncho-pala se encobriu,
vulto veloz cruzando as peças,
borrão-fantasma atrás do algibe,
vento fatal com forma humana
soprando pelo parreiral,
até pular sobre o cavalo,
Pata-de-Pano, sempre à espera,
na soga, atrás dos buritis,
esse cavalo que ninguém
pôde quebrar com relho e espora
não tolerando cavaleiro
além do dono desta voz
que junto às crinas sussurrava:
“É nossa hora, mi hermano.”
E quem os viu ganhar o campo
sombreando as sombras num galope
pisando estrelas na coxilha
um raio escuro nas baixadas
raiando antes do sol nascer?
E quem os viu na Cordilheira
no lusco-fusco que se alçava
entre os vapores da geada
sumindo à beira dos penhascos
onde a minguante ia morrer?
Apenas ela, debruçada
no parapeito da fazenda,
com olhos grandes a menina
os pés gelados contra o pasto,
as mãos grudadas nos arames
e a madrugada nos cabelos:
apenas ela, minha avó.

Mas o tempo passou. E passou.
Outras guerras vieram. Passaram.
Outras noites desceram. E as luas
sobre o cerro nasceram, morreram.
E a memória dos dias amargos
Se perdeu entre o vento e a planície.
Mas a moça levou a lembrança
resguardada entre o sonho e a vigília,
entre outras arestas do mundo.
E a menina seguiu e viveu,
e a mulher prosseguiu e viveu,
e por fim me encontrou nos umbrais
de uma tarde de fogo alongado
e eu, seu neto, escutei essa história
antes que ela partisse também
caminhando em estrelas no cerro
pela fenda entre o campo e o luar.

Criatura de caprichosos hábitos
é a memória humana. Às vezes foge
de seus supostos donos e mergulha
na repentina treva; e às vezes salta
sobre o muro do tempo e seus abismos,
e ignora a hierarquia sucessiva
que distribui o Antes e o Depois,
e voa de alma em alma, semeando
sons e visões, e espantos e fulgores,
na mente de quem não estava lá
para ver, escutar ou pressentir.
Por isso, ainda hoje, mesmo longe
das antigas comarcas desoladas,
peregrinando em mundos apartados
sob um céu de constelações estranhas,
eu às vezes acordo em noite plena
num sobressalto de olhos arquejantes
no afã de levantar a casa inteira
de gritar, de chamar, de combater

pois botas retinem nas pedras do pátio
e o ulular do mocho escava a escuridão
e os inimigos vêm pegar o coronel Juvêncio.

José Francisco Botelho nasceu em Bagé, em 1980. É jornalista, escritor, tradutor, crítico de literatura e cinema, havendo colaborado com diversos veículos de circulação nacional. Entre suas obras, estão dois aclamados volumes de contos que misturam a ficção histórica, o fantástico e a especulação filosófica: A Árvore que Falava Aramaico (Zouk, 2011) e Cavalos de Cronos (Zouk, 2018) — esse último, grande vencedor do prêmio Açorianos de 2019 e também ganhador do prêmio Minuano na categoria Conto, no mesmo ano. Botelho é especialista em tradução de poesia, e suas versões de obras medievais e renascentistas são objeto de estudo internacional. Como tradutor, recebeu dois troféus Jabuti: um por sua tradução de “Contos da Cantuária” (Companhia das Letras) em 2014, e outro por sua tradução de “Romeu e Julieta”, de William Shakespeare, em 2017. Também traduziu “Júlio César”, de Shakespeare, assim como obras de Bram Stoker, Arthur Conan Doyle e vários outros autores, para diversas editoras brasileiras. Botelho vive atualmente em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. 

POESIA

3 comentários Deixe um comentário

  1. Este poema só poderia estar numa revista como a Sepé, que se destina a pessoas que leem boa literatura. Particularmente, gosto de poemas narrativos, longos, desde que tenham imagens e sonoridade tão ricas. Estou cansada de trocadilhos. Obrigada por esta leitura, Lucio Carvalho e José Francisco Botelho.

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