NO MORE CHOW FUN’S, por Meire Brod

Resolvi que iria dar um jeito na minha vida naquele momento. Aquela era a hora, nenhuma outra jamais se anteciparia. Era meu sim, meu princípio. Por mais que tenha demorado, por mais que tenha vacilado, entrei por um túnel que não tinha volta, nem engano.

Passei bons anos vagando em uma espécie de limbo que acabava por não me levar a lugar algum. Uma dança que aperfeiçoei com o tempo, onde exercitava o paradoxo existencial que me colocava na gangorra emocional, oscilando entre o vou ou fico, puxo ou empurro, subo ou desço, morro ou vivo, rio ou choro.

Foram séculos de agonia, mas uma agonia disfarçada. Nem sempre tinha a exata noção da batalha travada e seguia sem pista alguma do que acontecia dentro de mim. Sentia as energias sugadas porque eu queria, queria muito, mas não sabia o quê.

Num filme antigo de que gosto muito, The story of us, a personagem Katie, vivida por Michele Pfeiffer, menciona esse paradoxo existencial. Quando decide continuar no relacionamento falido, porque era nele que Katie se reconhecia e sentindo o alívio que só os abraços moldados ao corpo podem oferecer, ela escolhe ir ao mesmo restaurante de sempre com a família, o Chow Fun´s. Lá era seguro, um território que sabia andar. I say Chow Fun´s.

Assim era comigo. Inúmeras vezes estive a ponto de emergir a superfície, mas o velho filme da rotina reconfortante vinha à cabeça, insistindo em evocar tudo o que seria bom de novo, na condição natural das coisas. Ou como deveria ser. “Escolho chow fun´s”, dizendo sim ao mesmo restaurante, à mesma vida, ao mesmo (des)amor. E voltava para as profundezas. A euforia inicial da redundância abafava os sentidos, e eu não percebia o quanto morria a cada retorno.

E foi lá no fundo, submersa, sem oxigênio, em estado de suspensão e quase privada dos sentidos, que decidi pegar impulso e deixar vir à tona todo o amor que estava ali, eu sabia, e que era maior que tudo. Um amor que nunca se ausentou. O amor por mim. Bati no fundo, tomei impulso, emergi e sorri.

Encerrei a conta no banco, liguei para meia dúzia de pessoas, deixei um bilhete sobre a mesa de centro e parti sem vontade de dar explicações que desconhecia. Sequer saberia justificar o que estava prestes a acontecer. Achei justo escolher um destino qualquer, uma vez que nada na minha vida tinha um sentido concreto. Não no momento, pelo menos. É estranha a sensação de desapego. Não me preocupava. Nem as contas, nem os e-mails, tampouco o trabalho, muito menos o marido. Deixei tudo num estado de suspensão, provisória ou permanente.

Decidi pelo primeiro destino que me veio à cabeça: Espírito Santo. Amém! Talvez porque precisasse de uma bênção para esta nova jornada, talvez porque sequer me vi um dia lá. Nem sabia como era, o que tinha, pontos turísticos, nada. Total ignorância. Assim é melhor. Começar do zero, sem expectativas.

Quase em transe venci o percurso. Minha cabeça estava vazia, assim como o coração. Não me dei ao trabalho de racionalizar qualquer atitude. Tratava-se de sobrevivência básica manter a sanidade enquanto era tempo.

Foi nessa inércia que cheguei a Vitória e depois segui para a praia de Ilha do Boi. Escolhi o lugar por causa do nome e porque desconhecia o que encontraria no local. Tive uma sensação confortável de acolhida mesmo com a brisa furiosa que bafejava no meu rosto grudando areia no suor. Apesar da minha urbanidade, sempre gostei do ar denso soprado pelo mar entrando nas narinas, a bagunça dos cabelos, o desalinho dos movimentos quando caminho descalça na areia.  Senti que tinha começado bem, seja o que fosse que estava começando. Talvez tivesse uma nova vida, na pele de outra pessoa. Qualquer perspectiva não alterava meu estado.

Por impulso, entrei na primeira imobiliária que encontrei, próxima à estação de ônibus. Pensei que seria bom ter um lugar sem ninguém por perto. Consegui uma casa sem ter que escolher muito. Algo simples, de fácil manutenção. Não queria nada que demandasse atenção. Nos próximos dias, estaria ocupada comigo como nunca estivera durante toda a vida. Entrei naquela sala que não era minha e fiz um breve reconhecimento da área. Tudo que precisava, sucinto e resumido. Poucos móveis, poucas distrações. Joguei a mala no canto e saí batendo a porta.

Olhava as pessoas nas ruas tentando reconhecer algo familiar. Era tão reconfortante nunca ter visto aqueles traços. Me senti transparente e comecei a gostar da situação. Eu, que sempre busquei nos outros a aprovação para tudo, parecia uma despudorada indo para qualquer direção, aquela que eu quisesse. Fui para o lado da praia acompanhando o desenho rodopiante de uma pipa colorida no céu. Senti sua leveza e quando dei por conta me vi dançando e reproduzindo o movimento alegre da pipa no azul do infinito. Era insano, mas não senti vergonha. Ao contrário, achei linda a saia esvoaçante e meus cabelos bagunçados. Corri para o mar e molhei os pés na água morna. A onda veio e molhou tudo, lavando um ranço que não queria mais na minha vida. O gosto salgado na minha boca não era do mar. As lágrimas que escorriam embaçavam meus olhos, não de tristeza. Queria chorar e mandar tudo embora de vez. O tempo passou e não percebi os ponteiros se adiantando na noite.

Depois, a lucidez. Sabia o que faria da minha vida e a certeza me atingiu com intensidade. Se tudo antes havia começado com um sim, agora era hora de dizer não ao que não coubesse dentro de mim. No more Chow Fun´s.

Meire Brod é jornalista, escritora e editora. Escreveu o romance Dora e o livro infantil Pequena Leitora, além de ter participado de coletâneas de crônicas e contos.

FICÇÃO

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