O LIVRO E A FEIRA – entrevista com Lu Thomé
Em 2021, a tradicional Praça da Alfândega e seu pavimento de pedras portuguesas, no coração do Centro Histórico porto-alegrense, voltou a receber as barracas e estandes da Feira do Livro de Porto Alegre. Nessa edição da Sepé, convidamos a curadora do evento (neste e no ano anterior), Lu Thomé, para conversar a respeito do evento e outros assuntos mais. Na entrevista, ela comenta das dificuldades e desafios de retomar este que é o principal e maior evento literário do Rio Grande do Sul e uma das maiores feiras a céu aberto da América Latina. Além disso, Lu oferece na entrevista suas opiniões e impressões acerca de assuntos que são do interesse de todos os envolvidos e interessados na literatura e no mundo da leitura e do livro de um modo geral.
Até onde sei, é o teu segundo ano de curadoria na Feira do Livro de Porto Alegre, é isso mesmo? Ou tu já tinhas relação com a Feira e não sabemos? Seja como for, como foi chegar em plena pandemia? E enfrentar o desafio da edição passada, de 2020, que parece ter estado a risco de não acontecer e, depois, a desse ano, quando se pode recomeçar a retomada do espaço tradicional da Praça da Alfândega e voltar a ser presencial?

Em 2021, fui curadora da Programação Geral da Feira do Livro de Porto Alegre pela segunda vez. E, desde 1998 – quando fiz a cobertura como repórter – mantive uma relação direta ou indireta com o evento. Já atuei como produtora na equipe da Feira, assessora de imprensa, coordenadora do site, editora, autora, palestrante e livreira. Talvez essa multiplicidade tenha sido o motivo do convite para que, em plena pandemia, eu assumisse a tarefa de planejar os eventos de uma edição que foi totalmente on-line. Um modelo que nunca havia sido trabalhado pela Feira. Foi um desafio gigante para toda a equipe da Câmara Rio-Grandense do Livro. Desafio que novamente se apresentou na 67ª edição, com o retorno presencial, ainda com as restrições da Covid-19. Mas trouxemos aprendizados: o digital veio para ficar e muitas atividades foram transmitidas, assim como os associados têm atuado no comércio eletrônico. No entanto, nada substituiu a alegria dos reencontros. Este foi o ponto máximo da edição mais recente da Feira.
“Para ler um novo mundo” foi o tema escolhido para a 67ª Feira. São sessenta e sete edições e a Feira parece querer se reconectar ao mundo contemporâneo, ao comportamento das pessoas, seus hábitos de leitura, preferências temáticas e expectativas culturais. Ao contrário da ideia de uma feira convencional, na qual as pessoas é que costumam se dirigir ao mercado, é um movimento que, por outro lado, parece querer se dirigir às pessoas. Seria essa uma tendência do mundo literário e, por consequência, do mercado livreiro? Pensando na atividade editorial, mas também na livreira (e, talvez, também na autoral), como se fazer interessante – e fazer do livro um bem/objeto de interesse – diante a um mercado com tantas opções de distração e lazer?
Existia um pedido, há muitos anos, de que a Feira se conectasse aos grandes debates. Realizasse sessões de lançamentos e autógrafos, mas também promovesse conversas relevantes. A ideia de uma curadoria para a Programação Geral partiu disso: criar uma conexão maior entre as atividades e elaborar o planejamento de cada uma delas, não apenas dos assuntos que tratam, mas incluindo o perfil dos participantes e mediadores. O mercado do livro é, na verdade, um espelho com os dois lados. Há o lado dos escritores que emitem a mensagem e querem se enxergar. E há o reflexo dos leitores, que recebem as narrativas e participam ativamente. Mesmo com o ataque sofrido pelo setor cultural nos últimos anos, a pandemia reforçou os laços entre a cultura e os seus apreciadores. Não só pelas plataformas de streaming, como na música e na leitura. E a missão de eventos como a Feira do Livro de Porto Alegre, com seu caráter popular, é aproximar cada vez mais os livros dos leitores.
Os dois últimos anos foram marcados pela pandemia, pelo distanciamento social e pelo incremento do e-commerce no setor livreiro. Junte-se isso a necessidade de migrar com certa urgência para um modelo no qual a tecnologia passou a intermediar cada vez mais as relações entre leitores e livros. As duas edições mais recentes foram as feiras do que era possível fazer ou é certo que se poderá contar com o modelo híbrido também para as novas edições? Como é que tu avalias a recepção das pessoas, as dificuldades e vantagens que há nesse novo modelo?
Eu acredito que o modelo digital de transmissão das atividades deve seguir – se esta for a decisão da nova diretoria da Câmara Rio-Grandense do Livro. O que vimos nas duas edições mais recentes foi um aproveitamento não apenas de custos e logística quanto de projeção institucional do evento. Ou seja: tivemos a participação de grandes autores a distância e muitas pessoas – mesmo em outros países – puderem acompanhar a programação. Em 2020 tivemos Isabel Allende e, em 2021, Alice Walker, para citar duas convidadas. No entanto, o caráter presencial, do contato do livreiro com o leitor, é uma grande marca da Feira. Existe, até pela finalidade da CRL, a necessidade do evento físico, das bancas na Praça da Alfândega. O público está acostumado a esta materialidade e a garimpar títulos. O que aprendemos é que a mescla dos dois modelos – presencial e digital – traz ganhos não só para associados e público, como para os convidados. E eu imagino uma edição futuro com toda a diversidade que isso possa garantir: bancas físicas e online, convidados presenciais em um grande auditório e outros participando pelos telões. A grande recepção do público já nos mostrou que este é um caminho promissor.
E em relação às vendas? Sendo a feira, afinal, um espaço de comércio, a proximidade das pessoas, quer dizer, a sua presença não é vital mesmo nesse modelo? Há uma estratégia em curso no sentido de “competir” com o virtual? Eu pergunto porque me parece haver haver um risco nessa relação, ainda mais quando o e-commerce fortaleceu-se enormemente em função da pandemia e editoras e feiras on-line Brasil afora cada vez mais exploram as possibilidades dessa modalidade.
Complementando o que já respondi anteriormente, eu vejo como é difícil um evento regional como a Feira do Livro competir na Internet com marketplaces já estabelecidos e com alto investimento tecnológico. É um obstáculo vivido também ao longo do ano, por todos os associados. Por isto, a volta da Feira à Praça foi tão importante em 2021: o evento é simbólico e afetivo não apenas para os porto-alegrenses, mas para os gaúchos. E é esta experiência – sensorial, sentimental e cultural que cria um diferencial imbatível na Feira, em comparação aos sites. É preciso, no entanto, seguir presente na Web. O comércio eletrônico, com suas facilidades e possibilidades, não é mais uma escolha.



Há poucos dias foi publicada uma reportagem que atestava existir atualmente, em Porto Alegre, uma livraria aberta para cada 14.000 habitantes, ou seja, seriam cerca de 104 estabelecimentos. Ao mesmo tempo, as dificuldades do setor são significativas e afetam praticamente todos os elos da cadeia. Neste ano, foi impossível não notar ausências históricas entre as barracas da Feira, porém o incremento nas compras pode ser interpretado como um indicador de retomada. Ao menos para mim, isso aponta para uma população que compra livros e gosta de frequentar a Feira. Eu volto aqui ao ponto “estratégico” que mencionei acima. Se estamos de algum modo num ponto de virada no qual a tecnologia parece ser cada vez mais determinante na atração e engajamento de público leitor e consumidor, o que tu dirias a esse público e aos profissionais e pessoas envolvidas no ramo em relação ao futuro da Feira?
Não acredito. No entanto, em relação à Feira de 2021 alguns fatores devem ser levados em consideração. Em 2020, não houve a Feira física. Muitos associados sofreram com a ausência. Os reflexos já estavam sendo notados no setor desde o início da pandemia: livreiros e editores sem alternativa de comercialização on-line sofreram mais perdas. Depois disso, o cenário foi de fechamento de livrarias (alguns associados pararam de atuar no mercado), recessão (outros não tiveram o investimento necessário para pagar os custos da participação na Feira) e esperança (os associados que puderem, voltaram à Praça da Alfândega). A Feira teve um número menor de bancas neste ano, mas quem pode voltar comemorou as boas vendas e o grande engajamento do público. Acho que é mais um sinal de que o planejamento deve ser misto: presencial e digital.
Em eventos literários e voltados ao livro, um conceito vem aparecendo cada vez com mais força: o da “bibliodiversidade”. É uma ideia que vem se tornando a pedra de toque para editoras independentes e autores iniciantes que não encontram espaço nos grandes negócios ou preferem um caminho alternativo. Nas últimas edições do Jabuti, por exemplo, a presença de pequenas editoras tem sido cada vez mais significativa. Seria ingenuidade pensar que o evento pudesse de alguma forma atrair pequenas editoras, livrarias e pessoas interessadas em conhecer e desbravar o mundo da “bibliodiversidade” rio-grandense?
Grande parte dos associados da Câmara do Livro é composta por livreiros e distribuidoras. Ou seja: empresas voltadas à comercialização dos livros e, portanto, vendendo livros com grande apelo de vendas. Outra parte são editoras com sede, principalmente, em Porto Alegre. A participação na Feira está condicionada à participação na Câmara. Neste sentido, a Feira divulga o que é realizado por escritores e editoras do Rio Grande do Sul. O que eu acredito que seja um papel maior da Feira é apresentar novos agentes ao cenário. Não apenas os mesmos participantes ou escritores já conhecidos do público. Mas especialmente novos mediadores e autores com potencial de despertar o interesse. E este, sim, pode ser um ganho na ampliação da bibliodiversidade: incrementar o contato entre associados e o cenário editorial, para reduzir distâncias, estabelecer parcerias e consolidar o mercado do livro. Acho que há muito ainda a ser feito.
Agora olhando em perspectiva, qual tua percepção a respeito do evento de um modo geral? Quero dizer da diversidade da programação, das atrações e da expectativa pelas novas edições. Pode o público porto-alegrense contar com a Feira para continuar fazendo boas compras e aventurar-se no mundo da leitura, nesse que é o principal e mais esperado evento literário do Rio Grande do Sul?
Existe uma resistência quanto a novos formatos da Feira. Há pessoas que apoiam e abraçam as inovações. Mas outras que torcem o nariz. Muitas pessoas lamentaram a realização da Feira digital em 2020, mesmo sabendo que não existia uma alternativa por conta da pandemia. E seguiram sem reconhecer o mérito da Câmara em realizar uma edição mesmo com o cenário adverso. Isso também acontece com a programação: muitos escritores e editoras estavam acostumados ao modelo quantitativo, com centenas de eventos e pouca presença de público – porque as próprias atividades concorriam entre si. A curadoria, com um conjunto de atividades principais, ainda é vista com desconfiança. Acho que o tempo será um aliado das mudanças que a Feira iniciou já sob a corajosa condução do Isatir Bottin Filho. E mostrará que o ganho institucional e de divulgação vai ampliar o destaque para todos de forma coletiva. E o livro vai permanecer nos holofotes. Cada vez mais.


Lu Thomé é jornalista, editora e escritora. Foi curadora da Feira do Livro de Porto Alegre em 2020 e 2021.
