O SOPRO MODERNISTA NO RS, por Lucio Carvalho
A poucos meses de que se iniciem as comemorações da Semana de Arte de Moderna de 1922, é e ao mesmo tempo não é custoso lembrar a efeméride e refletir um tanto acerca do impacto modernista na literatura rio-grandense. Como se sabe, trata-se de uma relação que não foi por aqui resolvida por uma arremedada variação local da semana de 22 nem por sua imediata assimilação. Não é por isso, entretanto, que se deve pensar que os sentimentos por aqui não se alteraram e pessoas não se digladiaram, apenas que isso não ocorreu de uma forma tão radical. Antes de qualquer coisa, é preciso pensar no cenário de um Rio Grande do Sul ainda predominantemente agrário e de uma Porto Alegre que recém começara a respirar os ventos da modernidade. Esta é a parte agradável e não custosa da tarefa e que consiste em observarem-se com a confortável distância temporal eventos que, à época, sem dúvida foram tomados por cruciais pelos artistas e intelectuais envolvidos.

A parte difícil reside em enfrentar-se a persistência e perenidade de certo dilema interposto entre a literatura de cunho regionalista em contraposição ao modernismo. Difícil porque recoloca a literatura rio-grandense num posição de premente xeque-mate, ou seja, diante de uma opção modernizadora que implicaria no descarte de uma tradição decadente e ultrapassada ou de outra, conservadora, que abandonasse qualquer pretensão renovadora tanto no plano estético quanto no temático. E custoso, afinal, porque confina a apreciação dos valores estéticos ao sul a uma discussão que, a despeito dos cem anos já passados, atola-se no mesmo sumidouro no qual se embrenharam, no remoto ano de 1925, de um lado o historiador e crítico Moysés Vellinho e, no outro, o jornalista Rubens de Barcellos. O motivo da contenda? O caráter passadista da obra de Alcides Maya (detratado por Vellinho e defendido por Barcellos).
Apesar da dificuldade que representaria hoje encontrar leitores de Alcides Maya dispostos a examiná-lo sem aquela mesma intenção de Moysés Vellinho, não deixa de ser estranho que o autor de Água parada ainda hoje represente tão bem o impasse da modernização (concluída?) literária e política rio-grandense logo dos primeiros momentos do séc. XX. Cem anos de impasse é tempo considerável até para uma água de brotadouro esgotar em si mesma. Todavia o dilema permaneceu e contaminou a produção literária superveniente, atravessando o século como amostra de que se tratava, afinal, não de uma dificuldade ideológica, mas de outra mais complexa, de natureza histórica e política.
Embora por muito se tenha aventado que, num desvio histórico improvável, o Rio Grande do Sul tenha restado incólume ao movimento que teve na Semana de Arte Moderna seu grande desenlace, hoje a hipótese felizmente é pouco considerada. Seria maneira obtusa de eliminar a tensão real que as ideias modernistas repercutiram na vida intelectual de todo o país e, obviamente, por aqui também. Da mesma forma, igualmente empobrecedor seria imaginar que o ideal modernista apenas se estabeleceria conforme as vanguardas europeias e paulistas o preconizavam sem que ao menos assumisse algumas características locais.
A história literária não só desmente ambas as possibilidades como se percebe com mais clareza que esse processo aconteceu aos poucos, embora alguns escritores tenham assumido a urgência modernizadora de forma mais radical. É o caso especial do poeta Tyrteu Rocha Vianna e o seu Saco de viagem (1928), cuja edição restrita (Tyrteu pagou à editora Globo a impressão de 1.000 exemplares e imprimiu apenas 10) restou uma raridade até meados da década de 90, quando o poeta e ensaísta Itálico Marcon reeditou-a numa co-edição da Edipucrs com o Instituto Estadual do Livro.
Não menos engajado no movimento modernista, por sua vez Raul Bopp participou pessoalmente das atividades da Semana. Mais que isso, era amigo de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral e, ao publicar em 1931 o seu Cobra Norato, o livro foi alçado imediatamente a ícone do movimento antropofágico ao lado do Abaporu de Tarsila. Além de Bopp e Tyrteu, talvez quem mais instantaneamente tenha reivindicado o caráter libertário modernista, é preciso ainda falar na obra de Ernani Fornari, filho de imigrantes italianos que debandou do simbolismo predominante para em 1928 publicar Trem da Serra, livro de poesia inovador em forma e linguagem.
Mas de casos à parte não se faz a história, muito mais de condutas socialmente estabelecidas e acertos culturalmente partilhados. Fato incontestável, a preponderância simbolista na poesia do período, com a presença marcante de Felippe d’Oliveira, Theodomiro Tostes e Augusto Meyer, foi abalada tão logo da Semana e da publicação das revistas e livros de seus principais expositores, Mario, Oswald, Guilherme de Almeida e Cassiano Ricardo. Não muito distante dali, entretanto, os poetas gaúchos já começavam a mostrar em livro os ecos da flexibilização formal e espontaneidade urbana mais características do preconizado pelos mentores paulistas do movimento. Fato também que a geração imediatamente anterior, que desenvolvera laços profundos com a poesia simbolista e a prosa regionalista não cedeu imediatamente aos encantos cosmopolitas de um estado ainda marcado pelos conflitos republicanos e cujo projeto modernizador (a culminar nacionalmente em 1930) era bem mais reformador que revolucionário, a despeito dos nomes pelos quais ficaram conhecidos os conflitos políticos de 23, 28, 30, 32…

Nas páginas do Correio do Povo, do Diário de Notícias e da nascente Revista Madrugada (com o sugestivo subtítulo de “revista semanal de literatura, artes e mundanismo”), escritores e intelectuais gaúchos levavam para o mundo impresso as ideias e comportamentos que compartilhavam no circuito da Praça da Harmonia ao Café Colombo, espaço público a que acorria uma geração que vivia na premência de atualizar a vida intelectual da cidade e do estado, feito que se concretizaria com o sucesso comercial da editora Globo logo a seguir.

Capa da quarta edição da Revista Madrugada.
Os poucos números publicados da Revista Madrugada servem bem para demonstrar-se o amplo espectro e o ritmo desejado pelos gaúchos para empreender seus passos rumo à modernidade cultural. Nela, nenhuma tendência era desprezada e havia seções destinadas à publicação dos simbolistas locais, como Alceu Wamosy e também o catarinense Cruz e Sousa, além de traduções dos europeus; havia página dedicada à descoberta de autores platinos e ao debate acerca do regionalismo das obras de Simões Lopes Neto, Alcides Maya e Roque Callage; havia também espaço de sobra para aqueles que desejassem experimentar a voga modernista sob a batuta de seu principal mentor, Augusto Meyer, e sob a análise de seu principal crítico, Moysés Vellinho. Mais tarde, o próprio Mario de Andrade reconheceria a unidade literária existente no estado apontando a falta de qualquer “tropicalismo” nos motivos escolhidos pelos autores rio-grandenses que, a essa época, confrontavam o modelo romântico sem, contudo, descartar por completo os próprios motivos e dilemas.

Figura determinante na transição modernizadora do mundo literário de então, é justo dizer que o poeta e ensaísta Augusto Meyer exerceu uma espécie de apostolado e contrabando. Por um lado, favoreceu a assimilação racional da estética modernista principalmente entre os autores reunidos em Porto Alegre, em torno da editora Globo; por outro, empreendeu esforços no sentido de não descaracterizar completamente a tradição literária aqui consolidada levando-a ao conhecimento dos amigos modernistas. Com efeito, Augusto Meyer tornou-se ao longo dos anos o principal articulador intelectual da renovação modernista gaúcha e, mais tarde, quando da consolidação do sistema literário local representado pela Globo na década de 40, se tornaria fundamental tanto na recuperação e fixação dos clássicos regionais Simões Lopes Netto e Alcides Maya, quanto na projeção de, dentre outros, dois dos nomes de maior destaque que viriam a seguir: Érico Veríssimo e Mário Quintana. Mas não é só pelo seu apostolado a sua relevância: Augusto Meyer ainda é autor de uma poesia culta e universal e que também na poesia guarda sua dicção local. Nas palavras de Manuel Bandeira, um poeta “muito de sua terra e muito pessoal”.
Talvez seja justo dizer que, afinal, tanto pelas mãos de Augusto Meyer, de Mansueto Bernardi quanto mais tarde de um Érico já na coordenação editorial da Globo, o sopro modernista foi apaziguado em essência pelo encontro a uma aragem própria do sul (o Minuano?) e de seu sistema literário já formado. Incorporou-se esteticamente sobretudo para além da geração de 30, nos estágios posteriores do modernismo, no entanto já fica difícil saber nesse caso quem foi mais influenciado por quem. Caso se considere que o romance brasileiro voltou novamente sua atenção para a vida além dos grandes centros urbanos e note-se que entre os maiores sucessos editoriais logo a seguir encontram-se os romances de Jorge Amado, Guimarães Rosa e do próprio Érico, as conclusões precipitadas ficam adiadas. Melhor ainda se a cisão dos universos restasse inumada em benefício de todos os interessados em observar a complexidade do real – maior que uns e outros, já que relativo a todos.
Lucio Carvalho é editor da Sepé.

Obrigada pelo ótimo ensaio. Se aprende, se reflete… Pela diversidade na Sepé – tal qual o tempo em seu eterno retorno, de Mario de Andrade a Guimaraes Rosa – tem-se a sensibilidade e a inteligência do editor confirmando a complexidade do real.
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