1 poema de Vera Ione Molina

EM TEMPOS DE LUTO

Naqueles tempos antigos
quando a família perdia um membro
as mulheres surgiam vestidas de preto
da cabeça aos pés
as crianças ouviam gritos e odiavam o falecido
Sabe-se lá se as velhas obrigavam as meninas-moças a gritar
os sons delas pareciam fingidos de tão agudos
como se os homens amados tivessem partido para uma revolução
Os gritos das mães, tias e avós eram guturais
de assustar os pequenos
O defunto era levado em procissão
tão longa conforme a extensão de seus campos
e as mulheres continuavam vagando graves
pelas casas de pé direito alto
As moças talvez lavassem com raiva os panos
quando ouviam notícias de bailes e companhias de teatro
e na igreja iam rezar
aos grupos, com as velhas
e seus livros de missa encapados de couro
As roupas das ninfetas eram mais lavadas
que os vestidos das mães a avós
e o preto se tornava ruço
palavra que nem existe mais nos vocabulários atuais
E dentro desses tecidos que iam, como as madrugadas,
assumindo tons rosados
rogavam pragas cabeludas para seus guardiões e provedores
Um dia ouviam dizer que podiam vestir uma blusa branca
e iam procurar nos guarda-roupas, rindo alto e retoçando
primas e irmãs de seios apontando nas combinações brancas
E já podiam cruzar a Praça da Rendição
e sentir o cheiro dos homens, que nunca guardavam luto
Se davam empurrõezinhos e deixavam escapar sílabas
dos nomes dos herdeiros
vaidosos, sorriam maliciosos para elas
E, chapéu na mão, postados na calçada do Clube do Comércio
desfiavam conversas lerdas sobre castrações, safras de lã
Borges de Medeiros, Assis Brasil
Até que um dia, numa saída de missa rezada em latim
viam passar as gurias rindo e se roçando os quadris,
vestidas de gris, como se dizia por estas plagas
as bocas rosadas dos batons das amigas
sentindo o alvoroço de jogar fora as roupas sem feitio
e se vestirem de azul hortênsia, bois de rose, lavanda.

Vera Ione Molina é graduada em Letras e pós-graduada em Teoria da Literatura ( PUC-RS). Foi jurada do Prêmio Açorianos de Literatura, do Prêmio Histórias do Trabalho em 2003 e integrou a Academia do Prêmio Fato Literário, promovida pela RBS. Faz parte das antologias “O Livro das Mulheres, org. Charles Kiefer, Mercado Aberto, 1997), Concurso Binacional Moviarte 90 (Biblioteca Pública de Pelotas e Grupo Eslobon, Canelones, Uruguai).  Publicou os romances Quarentena”, IEL/Alves Editora, 1996,que  em 2017,ganhou 3a edição e o título: “Notícias da guerra e o destino de Laura”,  Bestiário, “O Outro Lado da Ponte” (Ser MulherArte Editorial 2020) e “Gemido da Morte sob a Sola dos Sapatos” (Editora Bestiário, 2016) e “Depois que tudo passar” (Amazon Kindle, 2021). Os livros de contos “Outros Caminhos” (Mercado Aberto, 1996) e “O quarto amarelo” (Editora Bestiário, 2015). Os livros infantis, “Eram duas vezes”, ilustr. Yuji Schmidt, “Catarina abre um caminho de magia”,ilustr.  Juska e “Não sou nenê, sou cachorro”, ilustr. Juska, 2016,  2017.e 2021, respectivamente, todos da Editora Bestiário

POESIA

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