3 poemas de Gonzalo Bolliger
Os Delírios de Narciso
Nasci nas ranhuras da montanha,
Cresci nelas como um arbusto raquítico e seco,
Minhas folhas, que são poucas
Experimentaram o vento de todos os lugares,
Pois sou o filho pródigo da fuga
O inconsolado, o peregrino, o inconstante
De olhos enormes e boca silenciosa como a noite.
Filho da loucura do crepúsculo dos Deuses,
Observo tudo de um monte íngreme, terrível.
Meus olhos – são os olhos de Deus;
E minhas mãos, sozinhas, ergueram estátuas
Maiores que as do próprio Egito formidável.
Em mim, feneceram milhões de Afrodites
Que não encontraram, no rosto de Narciso, o amor.
Fui o verdugo e suicida que fez do sonho a sua imagem!
Que de lembranças vagas e esparsas enfim
Da inexistência, construiu o seu reflexo.
Aquele que em um dia de sol e de suor galgou a torre
Que continha, em si, a insônia de uma vida.
Solitário como um abismo belo, intratável,
Pretensioso como um porco, eu.
(Do livro “Rumo ao Âmago da Própria Voz)

O orangotango
Não há árvores e não há
Ao menos uma fêmea no recinto vazio.
O orangotango está sozinho, cordas
Pendem inúteis e a plateia pede festa.
O orangotango está dormindo.
Nas suas costas há uma bandeira e há um manto,
Uma bandeira onde as estrelas florescem
E a noite nunca é escura nem fria.
De tão, de tão escondido
Todos se perguntam: “onde está ele?”
Terá sido substituído por um rato? Terá
Valido a pena a entrada ao parque?
Depois de um tempo interminável à plateia,
Ele se levanta e em pouquíssimos passos
A bandeira cai revelando seu semblante,
O rosto é amassado, seus lábios nas pontas
se abaixam…
O homem da selva nos olha,
Caminha desengonçado e majestoso até as grades,
E ao chegar perto junta as mãos,
Lentamente no peito junta as mãos.
“Parece um homem” – diz uma velha. “Com esse manto
Parece um daqueles mendigos bem velhos” – diz um outro
E ri um jovem para disfarçar a tristeza
E todos juntos tentam rir.
O orangotango olha as grades,
Tristemente olha as grades e nem
Consegue, fazer caretas.
Apenas olha, olha o céu além das grades.
O homem da selva, o prisioneiro, o pulagalhos
Com seu manto
Marrom e desgastado,
Retoma finalmente o seu passo majestoso…
Por um momento olha a cada um – os jovens
Os velhos – e logo se volta a si mesmo.
E dessa vez ele se aproxima da parede
E comprime sua cabeça na parede
Arrastando-se de um lado para o outro na parede
Sem jamais conseguir
Parar de sofrer.
(Do livro: A Melancolia)

A história do mundo I
I
Mister Solaris teve um filho
E pediu para Madame Astrolábia que o batizasse.
Ela olhou para o céu infestado de estrelas
Escolheu a que lhe parecia mais bonita
E disse: Ele se chamará Barusch, o filho de Netuno com a lua
O de milhões de palavras, aquele de mil nomes.
Pois será mais forte que todos os homens,
Mais belo e valente que todos os homens,
E em cada vila receberá um nome distinto.
Bebê Baruch era feio e careca,
Aos cinco anos não conseguia falar nem andar
E gostava de bater em seu macaco
Até que o mesmo se transformasse em barata.
“Madame, madame Astrolábia, o que será do nosso filho?”
Falavam o senhor e a senhora Solaris,
E falavam todos os pássaros do céu e todas as bestas da terra.
“Não vemos força nem coragem nele
E nem sabemos como nos dará dinheiro.”
“Acalmem, acalmem a alma” – dizia a lisérgica vidente Astrolábia.
“Tudo o que parece não é, tudo o que é não parece.
Ele é especial como um alienígena com chifres,
Ele é único como um vulcão que solta lava de gelo,
Eu soltarei um cavalo e onde
O cavalo defecar,
É onde Baruch começará a falar.”
No planeta terra Baruch desceu,
Já era um bebê grande e quis que sua prole aumentasse.
Tantas, tantas almas bem dispostas ali encontrou!
Eles estavam sedentos por Baruch, faziam
Templos para Baruch muito antes da sua chegada.
E hoje em dia
Baruch reina, Baruch comanda, Baruch caga e todos obedecem!
II
Como explicar o que é Baruch?
Quantos sábios e tolos
Não passaram a vida tentando compreendê-lo?
Baruch é espírito, é corpo, é espirro?
Baruch está em tudo ou em nada?
Baruch faz sempre o que é certo ou
As pessoas é que traem Baruch? Ou então
Um anti-Baruch estraga suas maravilhosas ideias?
Oh, Baruch criou tudo e foi embora
Ou Baruch ainda está com nós e escreve
O certo em linhas muito tortas? Qual
É a verdade que se esconde entre essas nuvens poluídas?
III
Baruch almeja controlar
Os sonhos e os desejos e as crenças
De todos os homens e formigas que habitam a terra
E manda que homens mascarados
Ameacem aqueles que não respeitam as prescrições do seu livro
Do seu livro-cd composto de peidos, arrotos e choros de bebês.
Ele divide o mundo em uns tais de países
Muralhas de mortos separando os países
Moedas que valem montanhas ou árvores de areia,
Impalpáveis como os sonhos dos mortos.
“Queimem os barracos, as favelas, os mangues
E destruam as florestas para que meus filhos, os grandes
Peidadores do caos
Possam se alimentar como em um piquenique no inferno!!”
É o que berra Baruch enquanto desfila diante dos cagões,
E é isso que muitos repetem em camisas verde-amarelas
Em fardas romanas e em mantos de monge,
E em palácios onde se decide como se deve roubar,
Pois Baruch, ah Baruch
Para a sua sublime satisfação
Tem desde sempre milhões de olhos que rezam por ele
E que sabem que ele é o Deus
O Deus que une o amor e o ódio
E que sabem que ele é o Deus
Que dá o mágico sentido
Para as fantasias jamais concretizadas…
E com aqueles que não rezam ele sabe o que fazer!
Há cavernas especiais chamadas cadeias,
Em volta delas além do deserto não há nada,
Em volta do deserto um mar de latas e cocô,
E nessas cavernas de tantos tipos diferentes
Ele coloca os ateus, as adúlteras, os sábios,
Os gays, os drogados, os guerrilheiros, as putas
Os artistas, os índios, os negros, os eslavos
Os outros deuses que competem com ele
Os que são e sempre serão pobres
E uma tanta infinidade que fica difícil contar…
Ah, cadeias reais, cadeias mentais, cadeias sociais
Cadeias sempre em cada povo iguais e diferentes,
Ele ama todos os tipos de cadeias,
Sua diversão é colocar os inimigos de Baruch nesses infinitos cadeados!
Muitos, é claro, mesmo podendo serem presos se revoltam,
Falam que ele não existe ou que é um filho abortado.
Eles batem panelas, eles saem nas ruas de despovoadas cidades
Eles escrevem livros contra ele ou contra sua existência
Eles criam ONGS, empresas, exércitos, religiões, vazios
Eles ficam deitados reclamando ou bocejando
Ou então gritam das janelas, como se expulsassem os órgãos de dentro:
“Morra Baruch, saia do seu trono de fezes Baruch!”
Mas ele ri e ri sem parar
Pois nenhuma dessas vozes jamais será escutada
Seus peidos são os trovões do purgatório,
Suas risadas os ecos do inferno.
“Baruch é quem manda, Baruch é o bum Baruch é o bo Baruch é o boi bobo!”
E multidões seguem Baruch até o precipício da terra
Até o precipício da terra plana das suas mentes,
E multidões param de viver para dar vida a Baruch
Pois pensam que são do mesmo sangue e substância que ele…
Mas Baruch não é mau
Não, não é isso!
Ele às vezes, deitado em sua elástica cama
Percebe que tem agulhas e gordura no meio dos miolos
Que o impedem pensar sobre tudo ou quase tudo…
Então olha para o céu e sorri
Sorri por uma deusa mais poderosa que ele o ter escolhido
E pensa – ao olhar para suas arminhas de brinquedo
E ao deixar cair baba de suas gordas bochechas –
Bom que para ser Deus só é preciso ter nascido!
E quando está deprimido ele fala morram comigo,
Pois o imperador deve morrer sempre acompanhado,
E assim os próprios servos se enterram ou enterram aos demais.
Cabeças são decapitadas para homenagear o rei sol
Colheitas são garantidas com o sangue inimigo
Uma cabra imolada como oferenda ao deus dos mortos
Bruxas queimadas para abençoar o deus crucificado
Tudo, tudo para deixar ele feliz, ele
O careca, o babento e peidorento Baruch
Aquele com olhos enormes que saem da cabeça
E que rindo dança destruindo os pilares da justiça do caos
“Baruch manda, Baruch é o rei momo!
Baruch só quer o bem, mesmo que tenha
Que fazer sempre o mal!”
Ri Baruch, ri
Ri islante intratável inoperante irrequieto
Ri ilimitante histriônico intolerante ilhado
Ri ri Baruch i i i apenas ri
Pois Baruch manda, Barush peida, Baruch é o rei momo
Pois Baruch é Baruch, é o bum é o bo é o boi, rei bobo, bobo bum!”
E ele pede para que todos os homens e mulheres
Pintem a pele de uma mesma cor!
E ele culpa os mendigos pela ruína dos reis
E proíbe os da esquerda de dormirem de barriga para cima
E os da direita de comerem porco na lua cheia!
E promove as guerras contra os povos
Que abrem os ovos pela base e não pela ponta
Ou que cortam seus cabelos
Ou que deixam a barba crescer
E em cada país, cidade ou mente
Dá uma ordem diferente
Para que todos com a guerra e o caos se divirtam!
E mesmo assim o mundo venera Baruch.
Quando algo bom acontece
A pessoa sempre grita, “é graças a Baruch!”
E quando fica doente, cego ou sem dentes
“É tudo culpa dos inimigos de Baruch!”
E assim Baruch nunca tem como perder…
Pois Baruch é Baruch, é o bum é o bo é o rei bobo!”
Pois Baruch é Baruch, é o bum é o pum é o bu é o boi bobo!”
Ah, o mundo hoje está feito de cidades em ruínas
Uma seca terrível se alastra incendiando os povoados, corações e sonhos,
A imbecilidade está protegida em uma capsula de metal radioativo
E todos ao olharem as estrelas cobertas de fumaça se perguntam:
Oh, por que com tantos Baruchs pelo mundo
Continuamos assim sem comida sem alma e perdidos em oceanos sem fundo?
(Do livro A Melancolia)
Gonzalo Dávila Bolliger nasceu em 1989 em Lima, Peru, e se mudou para o Brasil em 1994 com os pais. Estudou Letras na USP e tem como alguns dos seus livros: Rumo ao Âmago da Própria Voz (poesia, pela Autografia); As Realidades Invisíveis (conjunto conceitual de contos e novelas; pela Autografia) e A Melancolia (poesia, sairá este ano de 2022 pela editora Piraputanga).
