5 poemas de ‘ENTRE MANDALAS, ESPADAS E UMA ESCADA CARACOL’, por Mariana Machado
DESALINHO
Eu, que não sou nenhum grau 33
dessas seitas políticas que exigem
o beijo impresso atrás do Baphomet,
a subserviência das palavras
de alminhas devotadas, cujos punhos,
desvirginando nuvens, vêm propor
brindes de sangue e leite verborrágicos;
como alcançar a condição de eleita?
Eu, que não tenho sido a cidadã
consciente, e não conserto o mundo, e não
separo o lixo dos meus pensamentos;
eu, que não bato ponto nos conselhos,
cultuando minorias de pelúcia,
bebendo, marginal, vinhos do porto,
cuspindo poemas que serão servidos
como papel higiênico em vinte anos;
eu, que não sou nenhum jovem profeta
pregando a castração vernacular;
que não oferto os revolucionários
pelinhos pubianos aos tarados;
que não sou submissa aos manuais
(dos que os adoram e dos que os detratam);
que não frequento a alta nata lírica,
que não sou psicótica e esquisita;
eu, não contente em ser semimaldita,
cansei de bater só em burguês safado,
e decidi bater pra todo lado.

FANTASMA DO NATAL
Quando chega dezembro, você insiste
na mesma lenga do vazio das bolas,
do excesso de vermelho, Sinhá Grinch,
cuspindo na abundância das senhoras,
com a velha afetação de profundeza ¬—
onde o mundo está cheio de mil nadas,
e a culpa nunca é sua, camarada;
é deles, sempre deles… dos burgueses,
das luzes, cruzes, fitas, passas, taças…
Quando chegar dezembro e você ainda
posar de gema rara em mundo falso,
com tédio dos afetos agendados,
recorde o quão ridículo é culpar
um mês! Esse clichê também cultuado
é um falso deus, um totem, purpurina,
a maquilagem da melancolia,
a lágrima num relicário, exposta
na almofadinha cara da vitrina.

JORNADAS DE JUNHO (2013)
A marcha dos vinte centavos
(que não era por tão pouco)
foi uma romaria báquica.
No mar de rostos sem face,
o sangue delirava num furor
de lava fresca e revolucionária.
Meus fráteres, então, disseram:
— Não vá! Esqueça!
Todo romeiro político, enfim,
perde sua alma (ou a cabeça).
Ah, pusilânimes! E eu perderia
essa estupenda chance estúpida
de caminhar pelas escamas úmidas
e ver de perto as vísceras da Hidra?!
Os líderes do grupo coordenavam
os movimentos peristálticos,
numa coreografia simiesca:
— Quem não pula quer aumento!
(Que comoção de esfíncter é o medo!)
Nos pulos exigidos por tambores,
o frenesi dos risos, os vapores
de suor e desespero… e de demência…
Eu continuei pegada ao solo, surda.
Seria vomitada pela entranha lisa
a escorregar já sem atrito pelas ruas?
Mas fui solenemente ignorada,
como um nada aliado aos demais nadas,
apenas célula dessa engrenagem
(esse intestino de animal selvagem)
em seu desfile sob os viadutos.
No fim das contas, não venci o monstro,
nem ele me venceu. Fui uma testemunha
do tórrido motor que anima as Fúrias.

PLACEBO PROFILÁTICO CONTRA O TRANSTORNO OBSESSIVO DA BUSCA PELO SENTIDO PROFUNDO DA EXISTÊNCIA A CADA INSTANTE
Morte ao zen!
Nem todo tempo contém
o supra sentido, o profundo,
uma última revelação desta existência.
Então, sossega da avidez e da avareza:
não há como evitar o roubo dos segundos,
tampouco descobrir o paradeiro das horas
que esqueceste onde deixaste —
junto aos guarda-chuvas e às chaves.
De vez em quando, veste
uma sandália gasta no teu pé direito
e sai deambulando na incerteza. E basta.
Porque o mundo… o mundo é como antes,
sem consenso e sem conserto.
Por isso, vai-te, de vez em quando afunda
numa qualquer tarefa estúpida,
60 horas de trabalho, pilhas e pilhas
de uma burocracia absoluta
a te sugar a gordura dos ossos.
De vez em quando esfrega e esfrega,
absorta em qualquer pensamento,
esse rejunte imundo do banheiro,
como se disso dependesse a guerra
e não houvesse uma mínima trégua.
No futuro estará sujo, eternamente sujo,
e limpo apenas por um átimo. Como o destino.
De vez em quando dorme num sono sem sonho,
uma pequena morte sem gozo.
Sossega da avidez e da avareza de valer a pena.
Quando o milagre do instante não te abre a janela,
e teus polegares tocam numa areia seca e estéril
(a que é matéria-prima de rosáceas e vitrais),
e sopra-te no ouvido um hálito de tédio,
sossega. E marcha.
De vez em quando finge-te de máquina,
finge-te de autômato operário
como uma célula dos rins, do baço…
um peão plástico do Banco Imobiliário…
Prossegue e paga a existência dos teus filhos.
E o resto é nada.

GLÓRIA
Ah, poeta, no dia em que tua cara
estampar cédulas de cinco pilas,
pagar o pão com o troco do salário,
depois de carimbar uma avenida,
com teus poemas todos malogrados,
menos uns trinta de uma antologia;
quando levarem ao bolso amarrotados
teus versos soltos, máximas, conselhos,
esquecerão se os escreveste bêbado,
ou padecido de um fervor lunático.
Mas o teu rosto impresso, às mãos do povo,
pelos botecos, feiras e prostíbulos,
darão fé pública do teu ofício.
Tua mãe assumirá feição esquisita,
batendo pálpebras — desbaratada —,
num êxtase de orgulho quase místico.
Tu vais rolar em teu caixão com asco.
Mariana Machado nasceu em 1982, em Pelotas, e vive atualmente em Santa Maria, RS. É poeta, graduada em Artes Visuais (UFSM), com mestrado em Poéticas Visuais (UFRGS). Em 2021, publicou “Cães & Astromélias”, pela Editora Mondrongo. Seu novo livro, “Entre Mandalas, Espadas e uma Escada Caracol” está no prelo. Seus poemas já foram publicados nos periódicos: Revista Piparote, Jornal Rascunho e outra edição da Revista Sepé.
