5 poemas de ‘EU É MUITOS OUTROS’, por Douglas Ceccagno

NÃO SE SABE

Quando quero falar sério,
digo que a vida é mistério.

Em cada dia que se vive,
tem tanto que não se sabe:
aonde foi o dia de ontem;
e o amanhã, por que vem tarde?

Por que nasci nesse tempo,
nesta cidade, entre tantas?
Por que vou morrer um dia
(nem um dia depois, nem antes)?

Quando quero falar sério,
digo que a vida é mistério.
Como eu não saber seu nome,
ou como ainda haver fome.

POLÍTICA

Há cinco mil ações políticas
se enraizando em meu quintal:
em cada galho que brota,
em cada folha que cai,
cada formiga que desloca
o peso de uma gramínea,
os movimentos se consolidam,
as bases se afirmam,
as revoluções se sucedem
e os conservadorismos contrarreformam.
Todos os dias, esse canto esquecido
do parlamento das nações
me convence de sua justiça
com as palavras que procuro.

SEQUÊNCIA ONÍRICA

Rum!, eu grito com dificuldade,
uma bola de tênis incrustada na boca.
O barman com cabeça de peixe me serve uma cerveja;
não consigo mover a língua para reclamar:
bebo rápido da garrafa
e dou uma olhada ao redor.

Estou num saloon – não, numa bodega.
Os cowboys – não, os soldados do Paraguai
olham-me com suspeita.

Disfarçadamente, apalpo a cintura
em busca de um revólver:
estou sem calças.
Sinto o chão frio e vejo as botas que deixei
ao lado da porta dupla –
não, ao lado da porta giratória.

Um valentão gordo empurra meu ombro;
pergunta algo com voz de ruído branco.
O bafo de cachaça chega com os perdigotos.

Quebro-lhe a garrafa nos dentes.
O chapéu caído
revela o cérebro exposto.

Empurro seu corpo de cetáceo
contra os outros marinheiros,
corro para a entrada sem porta,
despenco da torre.

POEMA PARA JOGAR FORA

Peguei meu poema,
botei tudo dentro:
tudo que não tinha
mais lugar na casa.

Tudo que é passado
pra jogar pra longe,
todo paraíso
que já se perdeu,

tudo que era nosso
e hoje não faz falta,
tudo que era certo
e a loteria não deu,

tudo que não presta,
tudo que não resta
pus no meu poema:
enfiei tudo dentro.

Fiz este poema
para o esquecimento.

FELICIDADE

Hoje eu te amei:
a tempestade renovou o mundo,
os pássaros consertaram a primavera,
as árvores beberam ao dia,
as flores enfeitiçaram a nossa casa
e até a polícia nos esqueceu.

Douglas Ceccagno é autor de Rábula (poesia) e Ópera Subterrânea (contos), além do recente Eu é muitos outros, que contém os textos aqui reproduzidos. Publica irregularmente, no Instagram, suas Notas apressadas para poemas futuros. É doutor em Letras pela PUC-RS, professor e pesquisador de literatura na Universidade de Caxias do Sul. E-mail: douglasceccagno@hotmail.com

POESIA

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