com quais palavras se deve escrever um poema?
amor, dor, pássaro, flor
cabe tanta coisa na rima que não cabe na sonoridade
fazer do poema uma cidade
onde há casas para todos
onde a fome fica do lado de lá
onde todo mundo é digno de ler um poema
onde não faltam bibliotecas nem escolas.
todo poema é uma utopia
em que habitam os poetas.

você precisa ter
uma janela para avistar o céu
uma planta
para acompanhar
o desabrochar da flor
até a morte da pétala
uma cidade em que possa caminhar
e olhar nos olhos
dos outros
como enxerga a si mesmo
você precisa ser
meio alegre
para contemplar o passarinho
que pousa logo à sua frente
meio triste
para contemplar a folha
em que pisas
meio pacífico
para sorrir a um estranho
meio bravo
pra não se conformar com as injustiças que habitam as cidades.

dei teus bilhetes apaixonados para o cachorro
devia ver aqueles olhos brilhantes
devorando o papel
destroçando cada pedaço do papel
como eu devorava tuas palavras
sim, é isso
teus poemas experimentais
viraram brinquedos do meu cachorro
tuas letras riscadas no papel
que ocupavam a minha parede
não existem mais.
há muita verdade quando se fala por aí
que o cachorro é o melhor amigo do humano.

eu quis encontrar Wislawa
já escrevi sobre o céu tantas vezes
esse mar imenso de estrelas
que por vezes é de um azul tão repleto de delicadeza
mas hoje dadas as circunstâncias
penso que o céu é pequeno demais
esse pedaço de escuridão que alcanço da janela
sabe, gosto de me perder enquanto avisto a imensidão do céu
houve uma época em que eu soube
diferenciar nuvens
e separar os milhares de tons de um pôr do sol
esses dias escrevi como homens escolhem armas
quando na primavera há tantas flores
mas, querida Wislawa
me fazes pensar mais uma vez sobre isso
como homens fazem guerras
quando poderiam contemplar o céu
esses com certeza esqueceram do vazio imenso da noite.

– resenha sobre os poemas que já escrevi

como se escreve um poema de não amor?
na teoria basta incluir a palavra não
e deixar claro que este poema não fala de amor
nem dessas coisas que envolvem o verbo amar.
o que também é diferente de escrever sobre o desamor.
pelas regras
(algumas que eu invento agora)
basta unir as palavras não e amor
e a leitora que lê este poema neste instante
talvez até apaixonada
talvez até lembrando de alguém
(por sugestão deste poema)
entenda que não estamos conversando sobre amor.
não neste poema.
mas eu subverto as regras
e escrevo de amor mesmo assim.

Giana Guterres é escritora e produtora cultural, mestre em Comunicação pela UFPR. É autora de Eu, Passarinho, Como eu sobrevivi quando você trouxe o inverno para dentro de mim e coautora de Luar, o menino que escuta estrelas. Se interessa por produção de arte por mulheres, teatro de animação e espaços cênicos não convencionais. Natural de Bagé-RS, onde é mediadora do Clube de Leitura Leia Mulheres.  

POESIA GIANA GUTERRES Inéditos