5 poemas de Lígia Savio
HÉCATE
Só quem se desviou da rota principal
e pegou uns caminhos tortos
é que pôde enxergar
outros céus, outras paragens,
os azuis esverdeados,
descoberta de um poeta
navegando em barco bêbado.
Também eu quis
Sentir o gosto das frutas interditas
Me fui ou fui levada?
Que dimensão era aquela?
Entrava-se na íris das pessoas
e se via tudo por dentro,
mente e coração
Que infinitos terríveis se abriram para mim?
Um milhão de aves de ouro me guiou
Em muitas outras realidades mergulhei
além do pequeno pedaço
que os mortais normalmente recebem
Fui batizada numa noite a céu aberto
com a Via Láctea quase tocando a Terra.
Fui ungida com gotas de orvalho
como filha de deusas pagãs.
destinada a trilhar uma estrada sem culpa
e a amar a solidão.
Fui feliz pisando na face escura da Lua.
Acho que ainda não voltei.

DÁDIVA
Aprender com o silêncio
com as pausas
com os espaços em branco
com a ausência de letras
e a solidão aceita.
Lançar sobre o mundo
um olhar sem confrontos.
Aprender a não esperar nada
e receber, como graça,
um rio de palavras.

PEDIDO DE PERDÃO
Perdão, pessegueiros, pelo florir antecipado.
Desculpem-nos, sabiás, por seus cantares de inverno.
Compreendam-nos, maricás, por desabrocharem mais cedo.
Entendam, jardins, o que acontece agora com suas flores.
As magnólias já estão abertas
na rua onde sempre as encontrava em setembro.
Absolve-nos, se puderes, Primavera,
por estarmos te violentando.
Se te valer de alguma coisa nossas lágrimas,
deixa que elas se juntem aos riachos, Natureza.
Será que podemos pedir que não nos condenem, mares,
por toda degradação que causamos?
Não sei se algum tipo de perdão nos ajudará,
quando houver mais destruição,
com os ciclos da vida sendo quebrados
Assistimos, atônitos, ao que nós mesmos produzimos,
pensando no que podemos fazer
além destas inúteis desculpas,
mas não sabemos.
E nem sabemos se haverá tempo.

VIAGEM AO HADES
Andei no caminho da Medusa
das Minotauras
das Parcas e seus fios.
Não me sentei à mesa
dos deuses solares do Olimpo
que se fartam de ambrosia e doce néctar
Segui Perséfone,
engoli também sementes de romã
para descer ao Hades
e encarar sem temor as regiões infernais.
Roubei o barco de Caronte
E me fui descobrir mistério
vedado àquelas como eu.
Desbravei sem respeito
o reino mais sombrio
navegando nas venenosas águas subterrâneas
e abriu-se, então, para mim,
em meio às trevas,
a terceira margem dos rios.

CONCHA
carne aberta
nos lábios como vulva
abrigada na concha
– cálcio, nácar –
na areia seca
morrendo devagar
sem poder entranhar-se na terra
pra ser talvez devorada depois
agonizante espelho meu
a mesma ânsia mesma sede
corpo atirado ao sol
ao calor do meio-dia
– carapaça sobre a polpa –
destinado a perecer
carreguei-a comigo
e fomos tentar driblar a morte
mergulhar
beber o oceano
reviver – irmãs –
nas mãos do mar.
Lígia Savio nasceu em Porto Alegre. Participou de Antologias independentes na década de 70 ( Teia e Teia Il, edit. Lume). Publicou seu primeiro livro individual de poemas – No Dorso da Palavra – em 2015 e o segundo, Fios de Aço, em 2019. Teve vários poemas publicados nas Antologias do coletivo Mulherio das Letras.
