A RUA DOS IMORTAIS, por Simone Saueressig

para Gustavo

            …nuvens por toda volta. Mas é só nuvens, não chove, chuva, só amanhã. O calor segue até o final de semana. Depois a gente entra em um período que vai até o final de maio…

Abaixo o volume do rádio. Esse Cléo Khun, aposto que hoje chove. A porta do outro lado da rua se abre e fecha. Lá vai o Agnaldo com aquele casaco verde, horrível, e o boné que a neta dele deu de presente de aniversário. Vou te contar, dar boné de presente para avô… que falta de criatividade. Ele vai com os bolsos cheios, dá para ver daqui, o volume de papel estufando o tecido. Velho safado. Vai entrar na fila da lotérica e pagar contas. Nenhuma delas é sua. Todas dos vizinhos, filhos, netos, gente que não tem tempo nem paciência para perder esperando ser atendido ou ser assaltado. Ele ganha cinco pila por conta paga, está caro esse negócio dele. Mas, também, a gente tem que se virar.  A aposentadoria está pela hora da morte.

– ‘dia, Dona Cândida, tudo bem?

– Tudo na santa paz, seu Agnaldo.

– E a noite? Passou bem?

– Dormi com os anjos!

– Nossa aposta ainda está de pé, então?

– Como sempre!

– Que bom! Nenhuma continha para adiantar?

– Não, paguei tudo ontem. Minha filha veio e me deu uma mãozinha.

– Então está certo. Bom dia pra senhora.

– Bom dia, seu Agnaldo. Cuidado com os guris da rua.

Ele acena e vai andando no seu passinho frajola. Eita velho saudável, será possível? Uma sorte daquelas, ganhou no jogo do bicho duas vezes no mês passado e nunca, sequer, tropeça. Assalto? Só uma vez, quando novo. Levou uma pedrada na testa e ficou uma semana de atestado. Vai ver, fez um trabalho de corpo fechado com a Comadre Luíza. Dizem que essas coisas funcionam.

– ‘dia, Dona Cândida, como vai a senhora?

Falando no diabo, não é que a benzedeira me aparece na janela?

– Do jeito que Deus manda, Comadre Luíza.

– E nossa aposta? Firme?

– Firme.

– A perna, doendo muito?

– Nadinha! A sua receita funcionou direitinho.

– Que bom! Mas tome cuidado com a corrente de ar. A senhora sempre aí, nessa janela, vai terminar pegando uma gripe.

– Que nada, meu neto me leva para fazer a vacina e já resolvo esse problema.

– Eu já fiz. Não quero perder a nossa aposta, não é?

– Ninguém quer, Luíza, ninguém!

Ela acena e se vai. Assim não dá, esse velha fica aí, de chazinho em chazinho, de vacina em vacina, de médico em médico! Isso é jogo ladrão! Pelo menos o Agnaldo não toma remédio nem que a vaca tussa. Teimoso feito uma mula. Eu me debruço para frente, um pouco, espreito. Lá vem o Joca, com aquela sirigaita da Divina, aposto que foram num motel, de novo. Já viu essa, velho indo em motel? Pois, tal. Diz o meu neto que o “negócio bomba”. Os dois param ali, do outro lado do murinho, sorriem para mim com cara de anjo.

– ‘dia, Dona Cândida. Firme?

– Feito uma rocha, Dona Divina. E o senhor, seu Joca?

– Ah, mas tem que perguntar é pra mim que sei, Dona Cândida: tá feito um rapazote, este Joca! Tá demais, esse homem.

– Ah, não exagera, Divina.

– Hi, uai! Eu exagerei, Joca? Quem disse?

– Quem tem que cuidar para não exagerar é o seu Joca, não é, seu Joca? Mais que um azulzinho faz mal para o coração, foi o que eu ouvi dizer.

– Ahn? Mas que azulzinho, Cândida? A coisa, aqui, é ao natural.

– Ah, não inventa, Divina, que a essa altura da vida, nada mais pega no tranco. Tudo precisa de uma ajudinha para levantar.

– Mas que conversas, minhas senhoras, e a essa hora da manhã!

– Ficou vermelho, o velho sacripanta! Até parece!

– Ah, ele é recatado, do lar, Cândida, nem te conto!

– Não conta, que não acredito nem vendo!

– Meninas!

– Mas te dou um conselho, Divina, vai com calma. Numa dessas, quem sabe, vai que o coração falha e o seu Joca perde o trote e a aposta?

– Aposta? Que aposta, Joca?

– Ué, Dona Divina… não sabia, não?

– Eu não tinha contado pra ela…

– Joca, você entrou na jogatina dessa velha fofoqueira?

– Fofoqueira, quem? Eu?! Olha aqui, Divina…

– É só uma brincadeira, meu bem…

– Brincadeira, só se for de mau gosto, Jorge. Soube que o Maurício colocou cinquenta, na semana passada, depois que voltou da UTI. Que coisa mais macabra!

– Ô, Divina, não é assim, Divina. Espera, espera aí! Deixa eu te explicar…

E pronto, lá se vão os dois batendo boca, estrada à fora. Nem olham para os lados. Que coisa, o diabo do ônibus do bairro sempre se atrasa de passar com o acelerador no fundo, nessas horas!

Mas foi bom, tá vendo? Eu aqui, nessa cama, não tenho como saber de certas coisas. Tem que estar pendurada na janela para descobrir. Então o prêmio cresceu, foi? Maurício colocando cinquentinha, só para provar é que mais forte do que a hipertensão? Hahaha! Vamos ver quem ri por último!

– Como vai, Dona Cândida? Aproveitando a energia do solzinho encoberto?

Pronto, lá vem Nicota. Cheia de filosofia, oração pros chacras e tudo o mais. Nunca foi carola, mas de um tempo pra cá deu para acender incenso e pendurar sininho na porta, como se todo dia fosse Natal. Virou de um jeito… diz que acredita em outros mundos e vida depois da morte mas vai ver, foi uma das que mais botou dinheiro na nossa aposta. Culpa do marido que morreu num acidente de carro.

– Vou bem, Nicota. Vou bem. E você? Notícias dos netos?

– Aham! Falamos pelo facebook ontem à noite. Julinho está na Austrália, Margô em Budapest. A senhora sabe onde fica?

– Na Europa, ora bolas, e quem não sabe? Perto do país das “chinas”, decerto, se tem “buda” no nome…

– Não, querida, não! Budapest fica longe da China. É na Hungria. É a capital. A Margô mandou umas fotos lindas, lindas, tinha que ver. Passo de tarde para te mostrar.

– Isso, boa ideia. Daí eu peço para Lurdinha fazer um chimarrão.

– Olha a sua pressão, Dona Cândida. Não vai querer perder a nossa aposta, não é? Vamos tomar um chazinho relaxante, vou trazer de casa. Peguei a receita num blogue de reike, a senhora precisa ver. Vai gostar. Uma beleza. A gente dorme feito um anjo.

– Mas eu já durmo, Nicota.

– Coisa boa de se ouvir! Até a tarde, então?

– Até!

Me pergunto se vou ter coragem de tomar chá de reike que faz dormir, vindo da mão dessa jararaca do astral. Sei não, gente que acha que fala com outras gentes pelo computador sempre me parece muito estranha. Esse tal de celular que o Nuno me deu para falar comigo… às vezes acho até que está estragado, porque ele nunca toca, e quando toca, não é alguém que eu conheça. Gente da companhia de telefone, gente querendo me vender mais remédio. Nunca é a minha gente. Nunca é o Nuno, que veio aqui já faz mais de dois meses. Pelo menos a Letícia vem uma vez por semana, ver como eu estou. Me enche de beijo, chora de saudades do ex-marido mais recente, eu digo a ela que desse jeito vai ficar com mais rugas do que eu. Então ela ri, mesmo sem vontade, mas ri, e isso é um alívio que ninguém imagina. Meu coração fica mais leve quando vejo minha filha sorrir e isso desde que ela era desse tamainho. Mas de quem eu tenho saudades, mesmo, é do meu neto Nuno. A Letícia diz que também tem saudades dele, às vezes. Quando ele era pequeno, não saia daqui. Era uma ventania passando pela casa, uma alegria feita gente. Ele tem o sorriso do meu marido. O que se foi há dez anos.

– Dona Cândida? Vou no mercado comprar sal, a senhora quer que eu traga alguma coisa de lá?

– Trazer, não precisa, Lurdinha, mas…

– Deixa eu ver se não tem que buscar o seu remédio, aquele que sempre falta na farmácia popular.

– Que eu saiba ainda tem. Você precisa…

– Também falta café, eu acho. Mas a senhora não devia tomar café todos os dias, né?

– Vê lá se eu vou ficar sem café, Lurdes!

– Depois a senhora não dorme! Fica se revirando na cama a noite inteira. Acha que eu não escuto?

– Você ronca mais do que uma bomba de água estragada, minha filha! Vai ouvir o quê? Como? Com aquela barulheira…

– Mas escuto. Escuto mesmo. A senhora dorme pouco, que eu sei. É sem café hoje de noite. Tô avisando. Vou trazer é nescau.

– Isso, Lurdinha, traz nescau. Depois você se entende com o médico, quando ele for ver o meu açúcar alto de novo no exame de sangue.

– Ai! Isso! Vou passar no postinho e marcar a sua consulta. Pode ser que eu demore. A senhora se importa?

– Eu vou me importar se você não passar na banca do Guto…

– O bicheiro? Tá brincando? De novo?

– Aposta cinco no jacaré, que o Agnaldo saiu de casaco verde, cinco na cobra, que a Luíza tava espreitando, dez no touro e dez na cabra, que o Joca e a Divina me cumprimentaram quando voltaram do motel…

– Dona Cândida!

– … e bota quinze na vaca, que a Nicota vem de tarde, tomar chimarrão.

– Jesus…

– Pergunta pro Guto como é que está a aposta da rua.

– Isso, ainda, Dona Cândida? Que coisa!

– Depois que o Maurício voltou do hospital, deve ter mais gente que apostou. Nessa rua, todo mundo deve ser imortal, ninguém morre, é uma coisa de louco! Como é que eu vou ganhar essa fezinha? Põe dois pila em cada um e cinco no Agnaldo que um dia ele vai ser assaltado naquela fila da lotérica, você vai ver.

– Deus tá vendo, Dona Cândida, Deus tá vendo.

– Mas não tá ajudando.

– É uma bolada de dinheiro.

– Quando sair o resultado, a gente faz uma janta e convida os outros. Quem morrer primeiro, paga, é a regra! Vai milha filha, vai.

– Tá, mais alguma coisa?

– Sim. Leva a sombrinha, que o Cléo Kuhn disse que não vai chover.

Ela ri e vai indo, isso mesmo, vai indo, Lurdes, não esquece de nada que eu te falei.

Olho para a rua, que vai se aquietando. Meia manhã. Passa o ônibus do bairro, zunindo, acelerando – não disse que estava atrasado? –, passa Maria das Dores com o nenê novo, Suzi volta para casa depois de deixar os três filhos no colégio, as mãos cheias de sacolas de compras. Passam uns desconhecidos para cá e para lá, gente apressada de cabeça baixa e o nariz enfiado no celular. Bons tempos eram aqueles em que as pessoas andavam de cabeça erguida e todo mundo se conhecia, todo mundo tinha tempo para se visitar, até porque não tinha outra coisa para fazer. Na outra calçada, o Alaor volta de mansinho, olhando para os lados. Dá para ver pela beca que arrumou uma amante nova. A Rosinha vai chorar de desgosto, mas o Alaor, o viúvo mais cobiçado das redondezas, não quer saber de compromisso…

– Candoca… não sai dessa janela, não?

Olho pela porta da cozinha que devia estar fechada, e agora está aberta. O relógio bate dez horas. De novo? Ninguém avisou esse homem que assombração não vem de dia claro?

– Vai embora, Dorival.

– Só se você vier comigo.

– E perder a minha aposta? Nem morta!

– Então, vou ficar aqui, esperando por você.

Eu espio ele de novo, o fantasma sentado no ar. Coisa mais ridícula de ver. Mas ele continua bonitão, o Dorival, que nem no dia em que a gente casou. Meu coração bate forte, toda vez que eu vejo ele. Vivo ou morto. Coração bate forte, mas eu não conto. Dói um pouco, mas eu faço que não sinto. O braço dormente, é novidade. Fecho os olhos e cochilo, o cheiro dele parece o de um cravo de jardim.

Depois é um céu que se abre em azul. Tem luz esse céu, feito os olhos do Dorival. Olhos azuis e riso de menino. A gente envelhece, mas não esquece: ficar perto de quem se gosta é a mais pura alegria. Tem alguém me chamando, longe, longe, parece a Lurdinha. Mas eu não estou querendo voltar. O céu é azul demais, a luz é um clarão que vem de dentro e nos leva para longe, quente e leve como o sol de verão.

O Cléo Kuhn não acerta uma. Não foi ele quem disse que ia ter nuvens o dia inteiro?

Simone Sauressig nasceu em Campo Bom (RS), em 1964. Estreou na Literatura em 1987. Tem vários títulos publicados dentro do gênero do Fantástico como “A Noite da Grande Magia Branca” (2007), “A Estrela de Iemanjá” (2009), “A Máquina Fantabulástica” (1997), e o livro de contos “Contos do Sul” (2012) bem como a saga “Os Sóis da América” (2013-2014). Participou de diferentes antologias, como “Duplo Fantasia Heroica 3” (2012), “Autores Fantásticos” (2012) e “Ficção de Polpa: Aventura!” (2012). 

FICÇÃO

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