ANSIOGENESIS PERFECTA, por Luciano Prado

Eu lembro da barba cinza do Capitão Espiritual e de seus polegares gordos a baterem um contra o outro bem na frente do meu rosto. A manobra, estranha e nitidamente ligada à clara intenção de amedrontar-me pelo gestual, era mais um de seus traços neuróticos e, por que não, uma roda a mais na engrenagem oligofrênica que regia o meio em que eu havia nascido. Para meu total azar, não bastando ter sido aleatoriamente trazido à vida num período tão conturbado do mundo, cismei de ancorar quase que todas as minhas vãs expectativas no fato de que bastariam vontade e esforço intelectual constantes para escapar do mar de ignorância a que fui exposto desde nascença. Tal engano foi-me jogado na cara como as avaliações de ensino religioso que eu fazia mensalmente na escola: de forma agressiva e traumática. O fato das minhas notas serem repetidamente baixas (não por deficiência mental, mas sim por uma total afronta argumentativa que eu decidira encampar no campo de respostas para cada patética questão acerca dos devaneios que, pasmem, os Capitães tomavam por verdade incontestável) não ajudava em nada.

Bem, eu não queria que ajudassem, você vê… no instante em que se decide implodir o sistema por dentro o desejo, na trincheira de cá, acima de toda a diplomacia e parcimônia oferecidas pelo lado de lá em múltiplos cavalos de Tróia, é de guilhotina e sangue. Para a tristeza incontornável de meus detratores, óbvio, tudo devidamente empacotado num prato saboroso de metáforas e sentidos figurados para a fácil digestão dos que pregam, assim como eu, a evolução via não-revolução. Confesso, porém, envergonhado, que nem mesmo a possibilidade de ir à forra contra os que me oprimiram sacia um gosto amargo que me assola sempre o canto dos lábios quando sorvem a vingança servida fria num prato (grã)fino. Um sabor ácido simbolizando tudo que poderia ter sido evitado e tanta energia boa e útil que foi desperdiçada para combater um mísero pedaço de madeira usado para apoiar a marcha cambaleante de todos os moradores de Nova Belém. Outrora dizimados por defenderem o heliocentrismo ou por se oporem à supremacia surda de ditaduras, os agora transgressores comedidos como eu eram caçados por um polido combate à bengala.

Sim, você não leu errado, embora o séquito alienado, que proclamou-se guia definitivo da moral e dos bons costumes na cidade, insista em chamar o pedaço de madeira ou de outro material que, apoiado ao solo, garante estabilidade aos corpos andantes, de Cajado Supremo.

Balela… da grossa. Mas nem por isso inócua. Cajadinhos em miniatura são presenteados às crianças já nas maternidades, alguns bebês tem alta para casa carregando no pescoço um pingente simbolizando a maldita bengalinha. Dali se vão alguns meses de real liberdade, quando puros e inocentes os infantes saboreiam os poucos dias livres de toda a castração psíquica que os assolará invariavelmente no momento em que firmarem um pouco o tronco e a cabeça e tentarem projetar no solo seus primeiros e cambaleantes passos. A comunidade, com os pais e toda a patrulha religiosa, então, triunfará através de um ritual patético que antecipa o luto definitivo da personalidade e da livre escolha, embora, como vem a calhar em todas as religiões, os arautos de todo negacionismo espiritual argumentem praticar o contrário.

Infelizmente eu fazia parte deste desatino coletivo e, por isso, entrara na sala do Capitão apoiado em meu Cajado Supremo da marca Sanscrytus, uma das melhores do mercado. As bengalas também serviam para isso, um delimitador de ostentação social poderoso que dividia as famílias abastadas das humildes.

Isso tudo girava em minha calota craniana num clamor por elaboração e potencialização do meu armamento contra os que me oprimiam, principalmente o Capitão à minha frente, os olhos azuis a fuzilarem meu rosto mudo e inerte por fora. Por dentro minha massa cinzenta gargalhava com júbilo e imaginava o homem gordo e ofegante como um animal que eu estava prestes a abater. Ele me olhava como um urso observa um coelho indefeso no meio da mata, eu encarava de volta imaginando-o estendido sobre a relva com meu joelho pressionando-lhe a bochecha sobre o chão enquanto minha boca luzia num sorriso imbecil para as câmeras.

Não que eu possa admitir sem titubeio que tudo sempre foi tão claro e tão fácil. Confesso que desfrutei de uma alegria besta ao tocar os pés inseguros no piso de casa pela primeira vez e ouvir minha mãe chorosa afirmar que graças a Deus era chegada a hora de eu assumir o meu lugar como pessoa de fé. A alegria dela e a percepção de que as expectativas de meus pais haviam sido atingidas me exultou. Ela então chamou meu pai, que prontamente agarrou um Cajado-Estrela, o mais utilizado para crianças pequenas, e o posicionou firme entre meus diminutos e trêmulos dedos. Lembro deles se ajoelharem na minha frente numa reverência esquisita a uma criança de um ano e pouco, mas convenhamos: não consistia surpresa alguma em meio ao rol de idiotices pregadas pela comunidade e, outra coisa, eu não era uma criança comum. Que ser daquele tamanho, sem um mísero dente na boca, lembraria de todo esse diálogo e da reação dos pais? Anos mais tarde minha mãe confessaria, num tom de crítica e para completo orgulho da minha parte, que inclusive eu teria franzido a testa num desacordo tácito no instante em que a bengala fora colocada em minha mão. Aceito todos os elogios e explicações para minha particular condição de bebê à frente de seu tempo, só não me venham com a palavra “abençoado”. A verdade é que no modus operandi típico daqueles que visam à doutrinação mais um ritual era criado e, dessa vez, ele era como o golpe perfeito já que procurava implantar em cérebros recém formados e ávidos por conhecimento a idéia de que éramos todos filhos humildes e incompletos de um ser superior, ou seja, servos perenes de um pai exigente e inflexível. A história do mundo resumida ali pra mim num rasante que subtraía sexo e dinheiro. O tripé no qual se baseia a existência humana no fim das contas: trepar, lucrar, rezar.

Numa das infindáveis discussões que travara com meus pais, onde ambos bizarramente confessaram um pesado arrependimento em terem me fornecido educação e acesso irrestrito a livros, um deles zombou de toda essa minha posição dizendo que eu era um Gandhi de colete à prova de balas e com um punhal entre os dentes pronto para atacar o oponente. Retruquei num riso franco de quem sofre uma clara tentativa de ataque num campo que é seu habitat natural. Se analogias e figuras de linguagem eram canhões e baionetas de brinquedo naquela guerra de elocubrações eu era um soldado russo encasacado em meio às frias planícies e meus pais eram Napoleão Bonaparte.

– Pai, – lembro de ter respondido após conter o riso. – um dia eu serei um Gandhi halterofilista e faixa preta. Sem armas, sem proteção. Não porque eu pense em um dia agredir, mas porque eu saberei que nada nem ninguém ousará tentar me atacar.

A manifestação jocosa então mudou de lado e eles riram descaradamente. Nenhuma surpresa, claro, o que era cômico para mim em todas as bobagens que ouvira tinha que ser igualmente hilário quando saíam da minha boca e penetravam os ouvidos doutrinados de todos os adultos que me circundavam.

De volta ao Capitão, os olhos fixos em minha face tranquila e estática. Ele tinha uma papada mole que pendia sob o queixo lustroso e as narinas logo acima exibiam uns pelos escuros e graúdos asquerosos, vez que outra parava de estalar os dedos na minha cara e levava uma das mãos ao nariz para coça-los freneticamente. O cabelo era obsessivamente repartido de forma que uma parte da franja ficasse grudada na testa em direção à parte superior da orelha, tudo muito certinho, muito emplastrado com um gel ou algo parecido. O rigor milimétrico da estética refletindo toda a chatice típica de um Capitão Espiritual convicto. Para sua infelicidade eu era um rebelde de carteirinha e o coitado não sabia. Pudera, nem os meus pais sabiam. Do contrário não teriam bolado a estratégia suprema para piorar o que já era ruim: colocar-me cara a cara com um sujeito daqueles. Prosseguíamos numa guerra de nervos muda e constante. Eu já previa um arroubo qualquer ou uma frase de efeito gasta e pré-fabricada, típica dos defensores da Nova Ordem e Progresso. Tudo convergia para um assexuado clímax, um conluio sorrateiro que começara com o assédio moral a uma criança de 12 anos (eu) e prosseguira conforme a cartilha do Index local, culminando no gran finale sonhado pelo homem obeso e sudorético que me encarava há longos minutos: um pedido de perdão sinceramente proferido pelos meus ingênuos lábios seguido de uma benevolente concessão relutante por parte do Capitão. Tudo arrematado num discurso final pretensamente edificante e carregado de ensinamentos religiosos, talvez até uma penitência imputada a mim com muito pesar e pouca pena.

Não naquele dia. Naquele instante específico em que meros segundos de existência separam-se de fragmentos de tempo que serão lembrados pra sempre eu decidi ser Galilei munido de uma AR-15. Eu seria o asiático que para em frente ao tanque e o detona soltando raios de energia pelo globo ocular. Restrito àquela sala com cheiro de madeira antiga e uísque eu ansiava por qualquer nova provocação do Capitão que me permitisse incorporar o obstetra que fez o parto de Hitler para atirar sem remorso um bebê pela janela do prédio.

O Capitão fitava o espaço entre meus olhos como quem tenta materializar uma bala de prata benzida na água benta e que pudesse penetrar-me a pele do rosto atravessando a extensão de todo o mau pensamento e zunindo pela nuca afora num pulverizado vermelho que expiaria todos os meus pecados de uma vez por todas. Tal cena me fez rir com discrição, ainda não era o momento de transformar as conjecturas em provocações e estas em movimentos hostis. O riso, porém, veio sincero e debochado e o simples fato de eu tentar controla-lo a todo custo dentro da boca só gerou em meu oponente uma revolta ainda mais intensa e carregada de empáfia, afinal, que desrespeito era aquele frente a uma autoridade religiosa?

– Tu acha que eu não sei mas eu sei qual é o teu problema. – exclamou o Capitão com os dentes cerrados, as feições rubicundas de uma panela de pressão em forma de cabeça humana com o vapor a escapar num silvo breve entre os dentes a cada pausa na respiração.

Mentalmente eu implorei para que ele não me viesse com nenhum dos clichês pasteurizados do Index que ostentava à minha frente na mesa, numa capa de couro marrom com o título em dourado virado para quem estivesse sendo interrogado. Sabia que se me acusasse de ser depravado pelas mídias sociais, influenciado pelos amigos ou professores comunistas e desvirtuado por influência dos jogos eletrônicos a gargalhada que suprimia com tanto afinco rangendo a mandíbula como uma gaiola que detém um rebelde prestes a aprontar voaria num rompante cheio de som e saliva. E o tal tiro na testa, metafórico antes nas minhas ideias, talvez visse a luz do dia mais cedo do que desejava.

Para minha surpresa ele completou a frase com uma conclusão trivial:

– Tu lê demais.

O que só foi chocante pela desconexão entre a ameaça velada das primeiras palavras e o arremate pífio vocalizado já que de surpreendente não havia nada na maneira como as engrenagens mecanizadas da cabeça daquele energúmeno puderam gerar tal conclusão. Eu tampouco podia discordar, era isso mesmo. Cada livro lido, cada linha cimentada em minha memória como algo digno de registro e, principalmente, não relacionada a nenhum dos conteúdos do Index ou de qualquer outra fonte advinda das doutrinações textuais da comunidade era motivo de orgulho. Um orgulho que eu guardava quieto e seguro dentro do peito, até aquele dia.

Além disso, me irritava o fato de ele demonstrar com irrefutável clareza que, se estimulado propriamente, até mesmo a cabeça doutrinada de um Capitão podia conectar um par de neurônios e gerar um pensamento lógico como o que ele acabara de conceber. Na maior parte do tempo, entretanto, a busca pela solução mágica para negar a realidade e se eximir de uma vergonha auto imposta por sermos tão humanos (e por isso imperfeitos) sobrepujava o intelecto racional básico e toda aquela salada de seres etéreos, energias místicas e fábulas imbecilizantes impregnava a mente dos que detinham a autoridade moral do seu bando local. Sim, porque não se pode chamar de povo a um grupo de pessoas que se sujeita sem questionamentos ao conjunto de regras e mandamentos imputados pelos Capitães da minha cidade. Eu fazia parte de um bando inerte e acéfalo e estava disposto a confrontar tudo de vez. Só não sabia que ficar frente a frente com o principal Capitão Espiritual de Nova Belém me daria a oportunidade de não só disparar o estopim há muito desejado pelos que ansiavam a real liberdade como também mergulhar nas entranhas de todo o pensamento retrógado e preconceituoso de quem supostamente deveria zelar pela população.

Havia muito já desistira de entender os reais motivos que levam um vilarejo próspero e intelectualizado a se jogar nos braços de um neocurandeirismo. Atravessei as fases do luto moral que permeiam toda epifania advinda da refuta à religião e da observação desta como um conto-de-fadas para adultos. Comecei tendo pena dos que se deixaram doutrinar, principalmente meus pais. Passei então para a decepção ao ver que, por mais que o status quo forçasse o comportamento de manada para uma melhor aceitação no grupo social, meus progenitores tinham todas as ferramentas para não se deixar levar pelas mentiras pré-fabricadas registradas num livro lapidado para a lavagem cerebral. O que antecedeu a fase final de minha galgada ao despertar, a insurreição, foi um momento de questionamento existencial: por que raios uma sociedade que já tinha um número variado de religiões e crenças, com seus respectivos livros sagrados e liturgias, precisava de um novo processo de controle e de um novo código de condutas? Simples. Porque a pandemia de 2020 deixara uma brecha para a repaginação da tacada mais que certeira feita pelo homem ao longo dos séculos: o uso da culpa e da supressão dos instintos que nos inundam por dentro para controle das populações.

Assim como os romanos tempos atrás e muitos outros antes e depois deles a elite religiosa de Nova Belém viu no confinamento da cidade e no isolamento dos moradores em relação ao resto do mundo a chance de moralizar e domar os ímpetos pretensamente impuros de cada cidadão.

Pode parecer inverossímil que eu pensasse em toda essa balbúrdia filosófica parado em frente ao Capitão, mas acreditem, o que ponho registrado aqui me passou à jato pela cabeça nos minutos em que fiquei sentado em frente ao semblante patético da autoridade máxima da Ordem Primordial para Salvação do Planeta, a nossa boa e velha OPSP.

O pôr-do-sol começava a invadir as frestas da janela logo atrás do Capitão quando ele se pôs de pé num rompante, em mais uma clara tentativa de me oprimir e assustar com o gestual sonoro típico da cartilha dos líderes religiosos que decidiam os rumos da comunidade. Ele abriu uma porta da cristaleira ao lado da mesa e tirou dali uma garrafa de uísque bonita, o vidro esverdeado a exibir um rótulo extravagante típico dos pequenos luxos e pecados aos quais somente os Capitães podiam se permitir vez que outra. Neste instante cheguei ao ápice de minha evolução, juntei todas as teorias fragmentadas que se balançavam soltas na minha cabeça e liguei os pontos de uma forma definitiva. O Capitão sorvia sua bebida de forma irônica, parecia ter desistido da conversa ou ter apenas dado um tempo para voltar à carga de um jeito mais agudo. Perpassei todas as fases de geração e implementação da nova religião ali discutida e defendida. Desde a simples adição de novos ritos de passagens como a Década da Comunhão, que fazia com que a cada dez anos o indivíduo precisasse trocar o seu Cajado dando mais dinheiro à igreja e mais poder aos Capitães, até a própria submissão completa, obtida com a presença maciça dos professores e guias religiosos dentro e fora da escola, num movimento arquitetado para rejeitar todas as outras manifestações de fé.

Não satisfeitos os líderes da nova seita vigente, havia um derradeiro pulo-do-gato, uma solução final que deveria ser implantada para o total êxito da doutrinação proposta. Dei-me conta desta parte mais importante da estratégia de domínio ao olhar pela janela lateral do recinto as pessoas que caminhavam pela calçada em frente ao prédio da OPSP. Todas cambaleantes a deslocarem-se apoiadas em seus respectivos cajados, cada instrumento de acordo com a faixa etária de cada habitante, mas todos, absolutamente todos eles caminhando trôpegos com o pescoço encurvado em direção ao solo e a mão apoiada na bengala abençoada.

Eureka!”, exclamei de um modo assumidamente debochado, o que fez com que o Capitão cuspisse um tanto do uísque pelo canto da boca, levando em seguida o punho do casaco à mesma para ajeitar um pouco o estrago.

– Tu sabe que essa é uma das expressões proibidas pelo Index, rapaz! – esbravejou o gordo homem, as feições coléricas agora já mal administradas.

–  Mas como não seria? – retruquei jogando a última lenha verbal naquela fogueira de argumentos que já me impacientava ¾ Obviamente a expressão usada por um pensador grego da mais nobre estirpe não poderia ser permitida pelos que defendem a cega aceitação de dogmas e postulados.

O Capitão espiritual bateu forte na mesa com o punho cerrado e o rosto tomado por uma vermelhidão intensa:

–  Tu se acha tão esperto rapaz, pensa que é o primeiro que tenta me afrontar? Que tipo de descoberta tu acha que teve de tão valiosa que vai botar em xeque os preceitos valorosos de toda uma comunidade? Hein?

Calculei as minhas próximas palavras como num jogo de xadrez. Não havia mais motivos nem paciência para seguir com o embate ali firmado e, para ser sincero, o que eu mais desejava já não era uma quebra total dos paradigmas ou uma irrestrita liberação mental da população de Nova Belém. Eu daria o meu reino de certezas naquele momento por uma chance de tirar o pino da granada, jogá-la no colo do Capitão e dar as costas para tomar um café na esquina mais próxima da OPSP.

–  Vocês adaptaram, para não dizer copiaram, tudo desta tal nova religião das antigas crendices ao qual o mundo já se submete há milênios. Devo admitir: adaptaram com maestria, inclusive.

Agora era eu quem se erguia apoiado à cadeira e levava a mão suavemente à janela ao lado da mesa. Desloquei a esquadria luxuosa de vidro e metal dourado fazendo com que uma leve brisa massageasse meu cansado rosto. Ao fechar os olhos lentamente para reoxigenar os pensamentos continuei meu raciocínio, para desespero de meu algoz:

– Tínhamos o batismo e a primeira comunhão, vocês ainda fazem o batismo e inventaram a Comunhão a cada dez anos. Costumávamos ter lições de religião nas escolas, vocês foram além: suprimiram o estudo das demais crenças e triplicaram a doutrinação baseada nos mandamentos da OPSP.

Passei a caminhar de um lado para o outro na sala, mancando de forma compassada devido à ausência de meu cajado. Meu tom professoral e presunçoso era direcionado com gosto ao Capitão que, agora novamente sentado, observava-me num misto de revolta e estafa.

–  A Bíblia já não funcionava como antes, – continuei com uma das mãos girando no ar e a outra colocada para trás da cintura de forma performática – afinal a pandemia sacudiu o que havia de mais sólido na esperança de salvação dos fiéis em relação ao vírus. Então vocês criaram o Index e, com ele, chegaram ao toque final, esse sim um conceito definidor. A manobra divisora de águas e que só me chegou agora por inteiro na cabeça, somente na fase derradeira deste nosso infrutífero encontro é que vislumbrei a maestria que foi terem implantado o uso das bengalas para controle do séquito.

–  Bengala não! Cajado! – berrou o Capitão.

–  Cajado, crucifixo, barba, turbante… tudo a mesma merda. – retruquei numa afronta declarada e já sem volta. – A cereja do bolo baseou-se num princípio clássico de todas as doutrinações religiosas: a invenção de uma limitação física dos crentes para um maior controle comportamental.

–  Tu sabe que não é verdade, – o Capitão parecia disposto a abandonar toda a diplomacia, por mais dissimulada que fosse – Só o criador é perfeito, somos todos impuros e frágeis e precisamos da proteção dele para viver. Tire o Cajado de qualquer pessoa e ela não consegue andar.

–  Não consegue porque foi ensinada assim! – respondi batendo a mão espalmada na mesa que tremeu deslocando o copo de uísque – Outras religiões cortam pedaços de pele, algumas exigem que seus fiéis se ajoelhem numa penitência que maltrata as articulações, todas são formas de registrar através de um dano físico algo que, por artificial e falho, deve ser incutido de maneira perene e repetitiva: ninguém é completo, só o supremo criador e protetor de nossas frágeis existências. Isso me dá náuseas. Ensine um homem a pescar e ele terá comida para o resto da vida. Faça um homem acreditar que não pode caminhar sem apoio e no instante em que lhe fornecer uma bengala ele será eternamente submisso à entidade suprema que gerou tamanha benevolência.

O Capitão então cruzou os braços. Os olhos grandes e esbugalhados piscavam muito pouco e o cabelo, agora desgrenhado, dançava levemente com o vento que entrava pela janela.

–  Tu quer me dizer que consegue andar sem o Cajado? – questionou com inédita parcimônia.

–  Mas é claro! – respondi com entusiasmo – Este, inclusive, foi o motivo pelo qual me trouxeram aqui. Minha desfaçatez, o gesto que afrontou meu pais e revoltou meus professores, foi a simples afirmação de que eu não preciso de bengala, muleta ou qualquer outra porcaria que vocês inventarem para viver pleno e dono do meu nariz. O livre arbítrio sempre foi o calcanhar de Aquiles de toda religião.

–  Me prova. – sentenciou o Capitão.

Sorri com gosto, pela primeira vez naquela longa tarde não emiti riso ou gargalhada pois era me dada a chance do confronto final. Um sorriso mudo e sarcástico era tudo que eu precisava para aceitar o desafio e ganhar a luta por nocaute. Estendi os braços ao lado do corpo e firmei o olhar no fundo da sala, aonde um armário com livros e quadros religiosos se misturavam numa orgia da escuridão com a clarividência. A perna direita, a que ao longo da minha breve vida fora sempre mais frágil e cambaleante, tremeu logo acima do joelho espalhando um choque que subiu pela coxa e me atingiu o quadril num espasmo dolorido.

Ao notar a mudança em meu semblante o Capitão devolveu o sorriso de maneira ainda mais irônica.

–  Tu não consegue. – disse ele com os olhos fixos na região abaixo de minha cintura, numa verdadeira torcida para que eu me alçasse ao deslocamento e me espatifasse vergonhosamente no chão.

Respirei fundo já sentindo um suor frio a descer pela frente da orelha. Tentei me convencer de toda a dificuldade que era realizar tal movimento para uma pessoa que, desde o nascimento, fora ensinada a andar apoiada em algo que não precisava. Pensava que admitir a dificuldade era o primeiro passo para ter sucesso, mas lamentei não ter me preparado antes para algo tão importante na minha luta contra a submissão e a obediência cega a um grupo de imbecis que nada mais eram do que um novo lado da mesma moeda. Pelo direito das mulheres ao aborto eu precisava caminhar, pela busca por prazer ou felicidade desprovida de julgamentos eu tinha que dar nem que fossem dois ou três passos. Para provar ao arauto da lavagem cerebral à minha frente que as pessoas podem ser e fazer o que quiserem. Deslocar-me uns poucos centímetros naquela sala tão carregada de sombra e maus pensamentos seria como jogar água em todas as fogueiras da Idade Média, seria como romper as cordas preparadas para enforcar gays ou qualquer outro opositor ao regime de controle social vigente.

A perna, entretanto, não colaborava. O pé, lá embaixo colado ao piso numa insegurança atroz, devolvia o meu olhar aflito que, rapidamente, comparava o seu comportamento ao resto da perna, como se aquelas partes do corpo não me pertencessem. O fato do Capitão ficar repetindo “Tu não consegue”, claro, não ajudava em nada.

Fechei os olhos numa última concentração antes da tentativa final, as mãos fechadas e tensas coladas ao corpo, controladas para não se apoiarem em nada, o que contrariaria todo o meu argumento.

–  Teu Cajado tá logo ali, rapaz. – disse o Capitão num deboche – Deixa de besteira e pega ele ali. É um Cajado nobre, bonito, teus pais devem ter gastado um bom dinheiro nele quando tu fez dez anos.

Rangi os dentes numa dor que se espalhou pela mandíbula e aliviou um pouco a sofreguidão que acometia minha perna direita. O imbecil que me desafiava seguia discursando numa clara intenção de me desestabilizar, repetia que aquilo era uma idiotice da minha parte, que eu deveria pedir perdão ao criador e aos meus pais e seguir com a minha antiga vida.

“Desiste, rapaz” foi o que eu ouvi antes do meu pé finalmente levantar do chão e voar leve em direção à janela da sala. Era um pequeno passo para um homem de doze anos de idade, mas um enorme passo em direção ao fim da ditadura dos costumes, da vil subserviência implementada. Ao tocar novamente o solo o pé esquerdo então levantou e repetiu o movimento do parceiro de marcha. Eu experimentava uma sensação de liberdade e frescor, não isenta de dores ou estranhezas, mas definitivamente transgressora e inédita. Era o contrário dos programas de tevê que mostravam cadeirantes que subiam ao palco debilitados e, após uma benção, saíam com seus próprios passos e pernas. Eu me despia de todas as bênçãos, eu fuzilava todo o conteúdo do Index, eu refutava o que me despejava a OPSP para, enfim, viver livre.

–  Eu consigo! – exultei ao completar o terceiro passo e chegar à janela que dava para a rua cheia de Cajados a baterem com vigor nas calçadas emitindo um som análogo ao de um rebanho que toca as patas no solo ao ser levado para o abate. A real chance de libertação para os que não queriam mais ser gado nas terras da OPSP estava simbolizada naqueles poucos passos cambaleantes.

“Eu consigo, Capitão” foi o que repeti segundos antes do homem gordo e arrogante por mim derrotado sacar da gaveta da mesa uma pistola prateada e me alvejar a cintura com dois projéteis que me levaram ao solo no primeiro momento pelo impacto, mas no instante seguinte por uma perda total das forças nas pernas. No momento em que toquei o piso de madeira com a testa contorcida de dor e notei as primeiras raias de sangue a correrem soltas pelo tablado escuro percebi que não movia mais nada que ficasse abaixo da minha cintura. Na verdade não sentia mais nada do abdômen pra baixo. Não sei se por causa da perda de sangue ou pela sensação de relaxamento completo, mas um calor fraco foi subindo pelo pescoço e a minha boca formigou num amolecimento gradual e incontido. –  Eu consigo… – balbuciei uma última vez com os cabelos já encharcados de um líquido quente e o olhar vidrado no Cajado que deixara apoiado ao lado da porta.

Luciano Prado é porto-alegrense, autor do (ainda inédito) Confissões, Visões e o Desterro.

FICÇÃO

1 comentário Deixe um comentário

  1. Excelente conto. Reflete sobre o valor dado às religiões e sobre o futuro distópico que está reservado a toda a sociedade se não for dado um “basta” a tanta manipulação executada pelos representantes religiosos e governantes que concordam com essas aberrações.

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