CERCO A JOHN HOWELL, por Flávio Ilha
“Há uma margem para a aventura
e para o acaso, como o senhor quiser”, disse o homem alto.
Instruções a John Howell, de Júlio Cortazar
Atravessou o rio, ofegante. Os passos que até a pouco ecoavam como marteladas na pedra sumiram, encobertos pela neblina que tomava a rua, o chão, tornava a fuga baça, confusa, a fuga que já não tinha motivo aparente, era absurda por si só, ridícula.
Os dois apitos alternados cessaram repentinamente. “Teriam pego Howell”, exasperou-se Rice. Olhou em volta e viu vultos enormes com formas abstratas; estava ainda no rio, sentia o cheiro de óleo salgado que vinha do leste. Howell devia estar sendo interrogado agora, quem sabe com alguma violência, talvez um de nós consiga fugir, lembrou Rice, Howell dissera essa frase um segundo apenas antes de sumir entre os fardos, cansado já pela fuga, pela absurda fuga que empreenderam desde o teatro, “mas o teatro não é mais que um pacto com o absurdo, seu exercício eficaz e luxuoso”, pensou Rice já a bordo do trem que o levaria aos campos de New Castle, e continuou com a frase na cabeça, impertinente, até adormecer em frente à lareira depois da caminhada entre os pastos altos, já anoitecendo novamente, quando fez a pergunta, a pergunta que o levou de volta a Londres, ao Aldwych, ao homem alto, a Howell: “fugir para quê”?
O rumor surdo das chamas devorando a lenha lhe consumiu a noite inteira. A xícara de chá esfriava ao lado, na pequena mesa redonda com os pés de ferro retorcidos para fora. Mesmo que tentasse, não conseguiria resistir: deixou pender a cabeça na poltrona que ficava bem à frente da lareira, de costas para a rua, e adormeceu. Antes, porém, teve o cuidado de fechar as cortinas. Olhou para fora, para a escuridão da noite, e não viu absolutamente nada. Enrolou-se na manta de lã e repassou mentalmente a cena absurda, o homem de cinzento lhe indicando o caminho dos bastidores e pedindo – polidamente – que o acompanhasse no intervalo da peça, depois o homem alto lhe explicando, como uma máquina, o papel que deveria desempenhar naquela comédia, o inusitado da situação, até começar a embaralhar os pensamentos em sua cabeça, até a visão ficar confusa, até as vozes se alternarem como num coro primitivo e finalmente cessarem por completo. O tropel do sono se expressava num zumbido intenso e fino.
Quando acordou, ouviu pancadas breves na porta da casa. Continuava exausto, parecia que dormira alguns minutos – e efetivamente não se surpreenderia se houvesse realmente dormido tão pouco, o tempo desconexo em sua cabeça. Forçou a memória e lembrou que estava em New Castle, na casa de campo, e que haviam batido à porta com pancadas curtas, “pancadas de gente estranha”, lembrou da frase da avó, mas não lembrava a hora em que havia chegado, sabia apenas que era noite, que estava frio e que não havia estrelas. Olhou o rastro de luz sob a cortina e soube que era dia, que fazia um sol tímido no norte, que o Tâmisa ficara longe, mas que alguém talvez estivesse à sua procura entre os campos verdes da Escócia, alguém que Rice não gostaria de encontrar, mas que talvez conhecesse de uma noite atrasada, quando entrou num dos tantos teatros da Picadilly apenas porque se entediava num fim de semana da Londres outonal. Afastou levemente a cortina e viu John Howell parado à sua porta, a cabeça baixa, os cabelos vermelhos não lhe deixavam dúvida, o ar tranquilo reforçava a percepção de que aquele homem o encontrara na casa de campo e que gostaria de falar-lhe, talvez alguma informação que pudesse esclarecer a morte de Eva, o apelo de Eva a seu ouvido, não deixes que me matem, a convulsiva fuga e a dispersão de uma noite veloz. Como demorava a atender, bateu de novo à porta. Mas não, Rice não podia abrir a porta assim. Julgava que estivesse em segurança na casa de campo, esperava apenas ter tempo para juntar os fatos e reconstruir o quebra-cabeça que havia se desmanchado quando botou os pés no Aldwych, não, na verdade quando terminou o primeiro ato da comédia e o homem de cinzento, sim, o homem de cinzento o convidara para acompanhá-lo aos camarins. Temeu recomeçar toda a cena confusa de duas noites atrás, mas pensou que se Howell o encontrara não haveria razão para impedir que os outros também o achassem. “Assim como o teatro, a literatura não é mais que arbitrariedade”, raciocinou. Abriu então a porta e deixou Howell – que já se impacientava – invadir seu esconderijo.
Vinha sozinho, mas logo tratou de esclarecer que não havia escapado. O ar de preocupação, antes ausente, agora descia vagarosamente sobre o rosto do homem. Ficou com a expressão carregada para dizer que o homem alto, o homem de cinzento, todos enfim sabiam de seu paradeiro. Era apenas um emissário incumbido de facilitar uma reunião com os protagonistas. Rice continuava perplexo, sem saber como aquele homem pudera ter chegado tão longe somente algumas horas depois dele, como o homem alto e sua turma puderam segui-lo até o norte se ele prestou atenção nos mínimos detalhes, se esgueirou-se por todas as paredes pelas quais passou, se escondeu-se o quanto pôde na estação, comprou o bilhete por uma terceira pessoa, viajou sozinho numa cabine, apesar do preço exorbitante, apesar do sono cuidou para não dormir um segundo que fosse para não se deixar surpreender, depois atravessou os campos apagando os rastros, evitando ser visto, olhando para trás sempre que podia para se certificar de que não havia ninguém em seu encalço. E, efetivamente, não havia ninguém em seu encalço. Agora, sem explicação, o mesmo Howell estava parado de frente para a sua janela, a cortina em suas costas, propondo a continuação de uma farsa que certamente custaria a vida de Rice.
Acompanhou o seu olhar e viu, do lado de fora, o Simca parado na estrada que passava logo abaixo da casa, o homem alto, o homem de cinzento, Vitória, Michael, todos encostados na lataria do carro, os braços cruzados de alguns (dos homens), envoltos em enormes casacos escuros, esperando um sinal de Howell. “Eles apenas nos observam para analisar nosso papel”, esclareceu. “Isso é apenas um ensaio para as cenas finais. Vitória e Michael estão ansiosos por suas falas. Eva não veio, mas está bem”, balbuciou. Rice não esboçou reação alguma. Ficou olhando as pessoas encostadas no Simca lá embaixo, ele um pouco atrás de Howell, os rostos alinhados à mesma altura, o homem de cinzento esfregando o pé direito na terra, cavoucando algo com indiferença, o homem alto olhando para o céu, não se surpreenderia nem se visse Eva entre eles, Eva que implorou para que Rice impedisse seu assassinato, que implorou para que não a deixassem sozinha.
Rice continuava sem entender por que não conseguia se livrar do emaranhado de personagens que o narrador lhe empurrava goela abaixo. As situações esdrúxulas que criava tinham apenas a intenção de provocá-lo e deixá-lo embaraçado, justamente perante os protagonistas da história? Queria dizer a eles que não era, Rice, um personagem, mas que havia caído numa cilada apenas para provar que o narrador estava com a razão, ele sempre tinha razão, apesar de todos perceberem que não tinha, apesar das licenciosidades da trama, das imperfeições; queria dizer isso mas não conseguia um modo eficaz de representação. Era um mero espectador, envolvido de forma constrangedora com o grupo de atores. Imbuiu-se de um espírito decidido e sentenciou: “Vamos até eles”.
Quando abriram a porta, o grupo havia sumido. Foram até a estrada, Rice com os passos apressados, pesquisaram marcas no chão, mas nada indicava que um carro pudesse ter estado ali nas últimas horas. Não havia rastro, não havia sinal, por mais tênue que fosse, do Simca do homem alto. Olhou Howell como quem busca uma explicação, com um ar de dúvida, mas seu visitante não lhe fitava; apenas estava com a visão fixa em algum lugar da estrada, como se visse algo, uma nuvem de poeira, um ruído distante de motor, algo que identificasse a presença dos visitantes alguns segundos atrás. “Eles não estavam aqui?”, perguntou Rice a um Howell resignado, que apenas deu de ombros. Olhou em volta, com a mão em concha sobre a testa para enxergar mais longe, e viu um homem caminhando em direção à estrada principal, como se saísse da casa de campo, como se estivesse o tempo todo na casa de campo, aliás, como se fosse ele, Rice, com suas roupas usadas de dois dias, o sobretudo cinzento jogado sobre o corpo como ele mesmo fazia, os ombros largos, os passos decididos e firmes, não tinha dúvida agora, era ele mesmo que caminhava em direção à estrada, sem olhar para trás, sem nada nas mãos, com uma calma que não experimentava há muito tempo, “um passeio pelos campos de New Castle”, lembrava-se agora, “como isso podia ser divertido”. Olhou desesperado para Howell, que já o tinha visto caminhando em direção à estrada principal. Seu visitante deu um leve sorriso ao vê-lo se distanciando, e riu mais alto quando o homem sumiu na estrada, quando pôde ver apenas o leito de terra vazio, uma poeira fina voando em círculos, o silêncio do campo. Segurou Rice pelo braço quando ele tentou seguir o homem na estrada. “Não vá, é apenas um truque. Não está vendo?”, disse Howell. “Esqueça-o. Não é você”. Rice tentou se livrar das mãos de Howell, mas ele o segurava com firmeza. Parecia querer grudá-lo à sua história recente, que Rice gostaria de riscar da sua biografia. Queria esquecer o absurdo em que estivera metido, de preferência ter a impressão de que não o vivera, não estivera onde se lembrava que estivera, mas Howell estava ali para perpetrá-lo no tempo, para explicá-lo, para fazê-lo produto das arbitrariedades do homem alto, de Vitória, Eva, Michael. Howell era sua ligação com a turma do Aldwych, com a atmosfera carregada do teatro em que entrara por acaso numa noite outonal de Londres em que se entediava. Precisava se livrar do visitante, assim como o homem alto tentara se livrar dele quando empreendeu a fuga pelos becos escuros de Chancery Lane, em busca de uma ponte segura, com o suor pegajoso lhe molhando a camisa, ultrapassando o sobretudo cinzento e deixando-o vulnerável porque o suor empapava sua roupa toda, até o casaco inexpugnável que deveria protegê-lo do frio, vulnerável porque seria descoberto com muita facilidade, um homem suando daquele jeito era certo que empreendia uma fuga, e uma fuga é sempre uma fuga porque quem foge nunca tem razão, está sempre em busca de tempo, de explicações para atos que não são suficientemente claros para persistirem sozinhos. Rice lembrou-se que, se fosse perguntado por que fugia, por que evitava o homem alto e sua turma, não saberia responder. Talvez porque o acusassem da morte de Eva, mas nem disso tinha certeza. Eva, afinal, não estaria morta, mas bem, apenas não pudera vir. “Não sou eu que fujo”, ensaiou mentalmente. “Eles é que me perseguem. E porque eles me perseguem, eu fujo”, continuou, à guisa de explicação. Mas não se convenceu.
Seu alvo, então, teria de ser Howell. Era sua ligação, já percebera, e tinha de cortá-la de alguma maneira, tinha de interromper aquela percepção estranha que havia de realidade, da sua realidade que não era mais sua, mas feita pelos gestos extravagantes da turma do teatro, de perseguições que não havia, de sustos patéticos. Howell ainda estava a seu lado, remexendo em pequenas coisas que tirava dos bolsos. Tinha os cabelos ruivos, tirava os óculos seguidamente (seria um tique nervoso?), havia matado Eva em pleno Aldwych, depois que entornara a xícara de chá no vestido da esposa, Rice havia visto a mulher estender o corpo molemente após o incidente que não tinha importância, mas que passara a ser relevante na medida em que resultara no desfalecimento da personagem e na fuga convulsa de Howell e Rice, que se confundiam desde então. Eles haviam plantado Howell em sua vida, era isso, haviam grudado aquele homem a seu destino como uma consciência que registrava todas as cenas do ponto de vista de um estranho, que lhe julgava e lhe obrigava a tomar rumos diferentes do que tomaria se fosse apenas ele, apenas Rice. Tinha de se livrar do homem que agora tomava chá, pateticamente, na casa de campo, depois de mentir sobre a presença da turma do Aldwych, depois de confundi-lo ao dizer que ele, Rice, se distanciava no campo quando podia ser qualquer pessoa, menos ele, que estava à frente de Howell na casa de New Castle e não se distanciara, continuava ali, lutando por uma explicação que satisfizesse em parte a pergunta que o martelava desde então, desde que desafortunadamente colocara os pés no teatro: “fugir para quê”? Puxou com força o sobretudo do cabide, onde Howell o havia deixado, mas não se livrou de sua interferência maligna. O visitante olhava-o com uma calma irritante, “fique, fique aqui e espere os outros, eles estão chegando, eles já vêm”, disse Howell mais uma vez, largando a xícara sobre a mesa, Rice lembrou-se do movimento de Howell na última cena da peça, quando entornou o chá sobre o vestido de Eva e precipitou as ações, a morte da esposa, a fuga pelos bastidores da direita e depois pelo vão central do Aldwych, Rice finalmente deixando Howell à vontade agora, talvez quisesse mesmo eliminá-lo, e talvez pedisse isso inconscientemente, para também Rice se livrar daquele pesadelo que não tinha saída: na verdade, queria apenas desaparecer dali, mas não se movia, estava parado e não sabia para aonde poderia ir, apenas teve a certeza de que, assim como fizeram com Eva, poderia ser agora a sua vez de morrer, apenas porque fazia parte da peça e os papéis eram trocados de acordo com a disponibilidade dos atores. Howell deveria matar Eva, mas como não havia Eva ele mataria Rice, porque estava escrito e porque está escrito deve ser feito, não há como recusar a representação da comédia, todas as noites o mesmo cenário de fancaria, não deixes que me matem balbuciou para Howell, e percebeu que era a fala de Eva, ele disse a fala de Eva que só foi ouvida por ele no Aldwych, e depois chegou o criado com a bandeja, o telefonema que Howell atendeu com uma compostura perfeita, as xícaras passando de mão em mão e o chá se derramando sobre o vestido cinza enquanto as luzes diminuíam inexplicavelmente, o corpo deslizando até quase ficar deitado no sofá, a exclamação escandalizada da dama de vermelho, a fuga pela passagem central após o salto de Howell pelo vão da direita, na sequência do movimento que deveria anunciar alguma coisa a Eva. Logo eles estariam na casa de campo, por isso não haveria tempo, logo estariam ensaiando outras cenas, passando diálogos e situações, combinando pontos, e Rice estaria com eles porque perdera a oportunidade de se livrar da turma do Aldwych, perdera a oportunidade de se livrar de si mesmo, voltara inexplicavelmente ao ponto de partida e agora precisava ir-se novamente, não havia mais tempo, Howell já alcançara a rua, era preciso novamente empreender a corrida desabalada até a ponte de Blackfriars, onde estaria a salvo, quando percebeu então que era incapaz de responder à pergunta que o martelava desde então, a pergunta que se fez mais de uma vez e que não saía de sua cabeça, e que apesar de não respondida continuava lhe motivando a ignorá-la: “fugir para quê?” Parou para se situar no espaço, na noite escura de New Castle, e para estabelecer um ponto de partida à fuga. O silêncio logo foi substituído por um vozerio de homens que aumentava, primeiro desconexo, depois concentrado na trilha que vinha do vilarejo, Rice tentou achar Howell mas não o viu mais desde então, olhou para os pastos altos e tomou o caminho do rio, fora da trilha. Não sabia por quê, mas acreditava que estaria a salvo apenas se conseguisse cruzar o rio. Era seu ponto de partida, talvez por isso. Porque sempre haverá um ponto de partida, mesmo que não haja mais tempo, sempre será possível voltar ao ponto de partida, apesar das pontes, dos rios, dos becos escuros, das enormes cidades do mundo, sempre haverá uma forma de regressar, não importa onde se esteja, não importa com quem, sempre será possível voltar, sempre será possível, sempre.
Flávio Ilha é jornalista, escritor e editor. Autor de Longe daqui, aqui mesmo (2018) e Ralé (2019).
