COMO NUM VELHO FILME ESPANHOL, por Luís Augusto Farinatti

Fecho a porta deixando para trás o apartamento vazio e caminho pelo corredor do prédio com a mochila no ombro. Passei a noite em claro. Desta vez foi porque precisava terminar um artigo. Coisa para uma hora ou duas, no máximo. Atravessei a madrugada mas só comecei a trabalhar nele quando já era bem tarde. A finalização ficou apressada. Mesmo assim enviei para a revista. Acho que ficou um horror, depois penso que não está tão ruim. Que seja, estou cansado demais para ficar me lamentando.

Pego um taxi e chego à rodoviária quando já está amanhecendo. Um dia nublado, prometendo chuva. O ônibus sai às sete, preciso estar em Pelotas a tempo de almoçar e participar do congresso. Minha fala vai começar às duas da tarde. Cinco horas de viagem entre Santa Maria e Pelotas. Tempo demais para cobrir trezentos quilômetros. Acontece que o ônibus para muitas vezes no caminho. Não existe linha direta até lá. Me acomodo no banco e fecho os olhos. Escuto outros passageiros passando ao meu lado no corredor. Vou caindo no sono assim que o ônibus começa a rodar. No início ainda sinto ao longe o movimento das rodas, uma curva à direita e o embalo do motor quando entra na estrada. Então desapareço por completo.

Quando acordo, meu relógio indica que se passaram mais de duas horas. Acho pouco. Pego a mochila e percebo que esqueci o celular. Quase não acredito. Pela janela a neblina mal deixa ver os cerros cobertos por campos cinzentos. Há poucas árvores e elas são pequenas. Tudo está encharcado e parece que vai recomeçar a chover em breve. Uma mulher em algum lugar reclama das horas que teve que esperar no consultório médico. Nem era plano de saúde, era particular. No outro lado do corredor um menino, com o pai e a mãe. O menino resmunga, a mãe enfia a mão na sacola. Tira um queijo, corta um naco. O menino se acomoda. Olho o pedaço de queijo que a criança segura nas mãos. Eu pequeno, comendo queijo com goiabada sentado sobre a caixa de lenha, ao lado do fogão da minha avó. O ônibus vai rodando sempre no mesmo ritmo, como se ondulasse.

Paramos na rodoviária de uma cidade pequena. Em pé junto à porta, logo à frente dos guichês, um gaúcho velho de bigodes compridos olha longe.  Espera alguém num ônibus que ainda não chegou. Quem sabe aguarde uma encomenda. O gaúcho de bombacha escura, de guaiaca com fivela de osso, não se move. Uma mulher e uma menina passam por ele e vêm devagar em direção ao ônibus. Seguram cestas com mandolates e doces secos que tentam vender às pessoas na plataforma. O ônibus inicia uma marcha ré e parece que é a estação, a mulher, a menina e o gaúcho que estão se movendo, todos juntos, para trás. Somos devolvidos ao asfalto. Em uma das paradas do ônibus ao longo da estrada, o menininho que comia o queijo, seu pai e sua mãe descem, entram no campo e desaparecem na paisagem. Na beira da estrada, uma tenda onde se vende tapetes em couro de guasca. Uma mulher toma conta, com a cuia de mate nas mãos. Perto dela, um menino brinca com um cachorro.

O ônibus volta a rodar e seguimos por muito tempo sem que se perceba a presença de carros ou caminhões. Passamos um potreiro com ovelhas, uma cerca de pedras e um carro antigo que não dá para saber se ainda funciona ou se foi abandonado no meio do campo. Mais adiante um hotel mal cuidado oferece cabanas para veraneio. Não há qualquer sinal de balneário, lago ou rio. Finalmente, começamos a descer ladeiras acentuadas, uma após a outra e o ônibus ganha velocidade. A paisagem mudou. Agora quase florestas, mato denso, árvores verdes apesar do inverno. A descida dura pouco mais de meia-hora, até que atingimos a planície e chegamos a Pelotas como quem deságua em um lago. Já parou de chover, mas as proximidades da rodoviária estão convertidas em um charco, com capim amarelo queimado pelo frio e poças de água encrespadas pelo vento.

Pego um taxi até o restaurante onde combinei de almoçar com os organizadores do simpósio. O tema do evento apenas tangencia minha área de estudo. Mesmo assim me convidaram para participar na mesa da tarde, junto com dois colegas. Chego ao restaurante no centro da cidade. Eu não conheço o professor que me espera. Olho em algumas mesas e vejo um sujeito sozinho, mexendo num celular. Ele levanta a cabeça, me vê, fala meu nome. Confirmo. Ele se apresenta. Mais alguns minutos e chega outra professora, esta sim minha conhecida, mas não íntima, nem mesmo amiga. Ela me trata com exagerada simpatia, quase com condescendência, como se costuma tratar uma criança pequena a quem mal conhecemos. Almoçamos, falamos mal da viagem, do tempo, do governo, da trabalheira que dá organizar um congresso. Vamos de carro até o local do evento. Debatemos durante três horas. Ao final uma estudante pede que eu autografe um livro. Eu digo que ela não devia ter comprado, que o preço é indecente. Por esse valor, digo, dá para comprar um livro de Hemingway, Kafka, Freud ou Poe, em traduções razoáveis. Ela ri, eu também.

Meus colegas me convidam para um café. Caminhamos pelas ruas retas de Pelotas. Imagino que logo voltará a chover. Meu colega carioca fala que nunca tinha estado na cidade. Digo que mesmo sendo gaúcho só estive ali duas vezes, mas gosto do lugar. Tomamos café em uma confeitaria. Quando me levanto para ir embora, eles perguntam se não vou ficar para o restante do evento. Respondo que não, que tenho várias pendências para resolver. Eles insistem. É uma viagem de louco, alguém diz, todas essas horas de ônibus para passar só um tempinho aqui. Penso em ficar. Que mal faria? Olho para eles e digo que não tem jeito, preciso voltar hoje.

Saio para a calçada e vou andando sob as marquises, procurando um taxi. Voltou a chover. Esbarro nas pessoas, nas sacolas, nos guarda-chuvas molhados. Está anoitecendo. As fachadas antigas, as luzes dos carros e dos letreiros refletidas na atmosfera líquida. Eu na calçada naquele mundo meio Dom Pedro II, meio Blade Runner. Consigo um taxi. O taxista tem mais de sessenta anos. Afirma que eu tive sorte. Os taxis somem de Pelotas quando chove porque a cidade alaga rápido e não querem fundir os motores. Conta que é de Rio Grande.  Foi para Pelotas depois que se aposentou. Fala dos netos, pergunta se eu tenho filhos. Gosta quando eu digo que estou com pressa. Dirige de modo suicida, atirando-se à frente de todos para ir mais rápido na cidade inundada. Parece feliz. Segue dirigindo e olha para trás enquanto diz que eu preciso ir ao Cassino durante o inverno. Parece loucura, eu sei – ele vai falando – mas tem que ir no inverno mesmo. A maior praia do mundo. Eu respondo que sei disso, já estive lá. Mas não é só, ele insiste. Se andar um pouco verá um navio naufragado há décadas e que ainda resiste na beira do mar, diz com orgulho, logo que estaciona o táxi na rodoviária. Eu concordo, enquanto conto o dinheiro.  Uma praia sem fim e um navio que não quer morrer, um lugar onde há todo o espaço e nenhum tempo, eu penso.

Ônibus atrasado na rodoviária. Vai demorar, saiu tarde de Rio Grande, me informa a moça atrás do balcão. Uma mulher aflita próxima a mim. Tenta ligar do celular, não consegue sinal. Esbraveja. Caminha de um lado a outro, volta para perto. Finalmente consegue a ligação, fala com o marido, diz que vai atrasar, que ele não se preocupe, que não esqueça de dar o remédio para a filha. Pede para falar com a menina. Garante que quando ela acordar a mãe já vai estar em casa.

Se eu tivesse que ligar precisaria usar um telefone público. Eles ainda existem? Só por curiosidade, passo os olhos por todos os lados da rodoviária. Não encontro nenhum. Caminho pelas plataformas. Enveredo por um corredor lateral e finalmente vejo dois telefones azuis. Um deles está quebrado. Lá fora a chuva aumenta. Entro numa das lanchonetes da rodoviária. O vento frio passa pela porta. Numa mesa próxima, uma garota com um menininho. Uma mãe jovem ou uma irmã mais velha. Ela mexe numa mochila. O menino fala o tempo todo. A garota mal responde, organiza as coisas. Ele mostra tudo com o dedo, conversa, pergunta. Ela tira um lencinho da bolsa e limpa o nariz do menino. Olha para os lados. Vai até o balcão. Ela comprando pastel e guaraná para o menino. Ele bem-comportado, segurando o pastel enorme com as duas mãos. Vejo um conhaque de má qualidade em uma prateleira sobre a máquina de café. Penso no ônibus, sei que a viagem vai se estender por muito tempo. E nem haverá paisagem para olhar lá fora. Peço o conhaque e vou tomando devagar. É forte, é ruim demais, mas aos poucos vai me esquentando.

O menino mostra o restinho de pastel nas mãos. Faltou só aquilo. Pode deixar, diz a garota. Ele deposita a sobra no prato de vidro. Ela pega um guardanapo de papel, limpa os dedos do menino. Vai juntando as coisas. São parecidos, nos traços, no jeito de mexer o corpo, dá para ver que se entendem mesmo quando não estão conversando. Compartilham esses gestos que são como idiomas próprios de cada família. Ele vai terminando os últimos goles do refrigerante. A garota olha para fora da lanchonete, pela primeira vez um olhar sem nenhum sentido prático. Ela agora me parece muito mais velha. São mãe e filho, já não tenho dúvidas.

O ônibus finalmente chega. O motorista vai recebendo as passagens. Motorista Ávila, diz no crachá. Subo as escadas. Há pouca gente. Ninguém no banco ao meu lado. O ônibus tem cheiro de tecido úmido. Eu não sei se é a bebida ou o cansaço ou o fato de estar em outra cidade, mas meu corpo se solta completamente na poltrona. Chuva açoitando o ônibus, sou embalado pelo ronronar do motor a diesel. Começo a sonhar com aquela tarde, com as ruas inundadas de Pelotas, com imagens que passam rápido como o ônibus, que ganha velocidade. Ultimamente tem sido assim. Quando consigo dormir tenho sonhos vivos, mas todos eles feitos com instantâneos do agora ou com materiais muito antigos. Dos últimos anos, nada.

Ao acordar, sinto como se tivesse viajado por séculos. Meus olhos estão ardendo. Chegamos a Santa Maria às cinco da manhã. Desço do ônibus com as pernas enfraquecidas, meio tonto. Vou até o banheiro, lavo o rosto e escovo os dentes. Penso no dia de hoje e preciso fazer força para caminhar. Sigo em passo lento. Entro em um taxi. Me acomodo no banco do carona, a mochila sobre as pernas. Quando digo o endereço, a voz que escuto nem parece a minha.

Luís Augusto Farinatti é escritor e professor na Universidade Federal de Santa Maria. Publicou Verão no fim do mundo – Contos (Modelo de Nuvem / Belas Letras, 2018). O livro recebeu o prêmio “AGES Livro do Ano – 2019” da Associação Gaúcha de Escritores, na categoria narrativa curta. Email: lafarinatti@gmail.com

FICÇÃO

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