COMO SE COMPORTAR COM AZEITONAS, por Gustavo Melo Czekster
Anos depois, ela diria que foram os olhos castanhos do recém chegado que a fisgaram tão logo se conheceram na residência do embaixador. Conversando com os amigos na biblioteca, envolto pela fumaça dos charutos, o homem colocaria as duas mãos na frente do próprio peito, pretextando abundância para mostrar aquilo que primeiro chamara a sua atenção. Cercada pelas amigas na sala de estar, ela lembraria as mãos fortes que a seguraram pelos cotovelos quando tropeçou na dança, o sorriso tímido e aberto, as rugas de preocupação vincando a testa do outro enquanto perguntava se estava tudo bem, se tinha se machucado. Bebericando o uísque, pés sobre a mesa de centro, ele contaria de como a outra fingiu cair nos seus braços quando estavam dançando, enquanto as mãos dele seguravam a sua cintura, o calor da pele embaixo do vestido preto, o perfume subindo pelo pescoço feminino como uma cobra plena de angústia. Os amigos do casal diriam que um nasceu para o outro e eles sorririam, mas nunca diriam a verdade. Sim, tinham se visto na entrada da festa. Foram apresentados e esqueceram-se os nomes assim que se afastaram. Ele não falaria que estava de olho nos lábios vermelhos da amiga que a acompanhava. Ela jamais confessaria que estava pensando no namorado para quem dissera que ia ficar em casa. Ele a achou chata; ela o achou esnobe. E poderiam nunca mais lembrar um do outro se não fosse a bandeja de azeitonas que, caprichosa, estava sobre o tampo da mesa do bar quando ambos se aproximaram para pegar uma bebida. Trocaram um sorriso polido de quem não quer conversar e, enquanto esperavam que o barman se virasse, o homem pegou uma azeitona e jogou na boca. Quase quebrou os dentes com a mordida violenta, que diabos, não tiraram os caroços, e deixou escapar um gemido de dor. Ela fisgou uma azeitona com um palito e, em um gesto cheio de delicadeza, levou-a até a boca. Mordiscou uma extremidade até o limite do caroço, os dentes brancos estabelecendo o perímetro de segurança da mordida. Feito isto, deixou-a mergulhar na sua boca, e o homem viu as bochechas rosadas mexendo-se, os lábios contraídos entregues à tarefa de destrinchar a invasora; adivinhou os dentes rasgando a azeitona com lentidão, retirando o caroço de dentro do invólucro verde que lhe cercava, a língua sinuosa separando o mole do duro, ao mesmo tempo em que o amargor tomava posse enciumada da boca de lábios finos. De tão absorto nos gestos da loura, esqueceu que estava com um caroço revolteando no céu da própria boca e o engoliu. Seus olhos se arregalaram; o corpo endireitou-se na vã esperança de fazer o imponderável escorregar mais fácil pelos canais apropriados. A mulher percebeu melhor o homem ao lado, observando como era silencioso, o sorriso de quem engoliu um segredo, os olhos perdidos entre as cores das garrafas de bebidas. O homem pensou em pigarrear e cuspir longe o caroço que deslizava pela sua garganta, abrindo caminhos delicados com a sua aspereza, mas não podia cuspir, não diante daquela mulher, então ficou com os olhos cheios de lágrimas e aguentou até o fim a sensação insuportável de engolir o indesejado. A mulher o encarava com súbito interesse, tentando lembrar o seu nome, enquanto a língua acariciava o caroço, jogando-o de um lado para o outro da boca, e o homem sentiu a energia voltar ao perceber que sua língua poderia estar brincando com a dela daquele jeito. Ansiou em descobrir como ficaria o gosto de leve amargo daquela boca, como os dentes dela travariam contato com os seus, se teriam cuidado ou se seriam afoitos, como a respiração dela estaria impregnada do cheiro de uma única azeitona, que se entremearia com o seu hálito, com o seu cheiro, com o seu gosto doce. O homem sentiu a boca seca, e não sabia se era o caroço engolido ou os olhos negros da outra, e acenou para o barman, sem sucesso. A mulher sorriu e colocou a mão no braço dele, um gesto leve, mas que estabeleceu tudo. Com um pestanejar lento, virou o rosto e o homem viu a boca dela se mexer com decisão, as bochechas inflarem, o nariz estremecer, e o caroço partiu como uma bala de canhão, acertando o barman nas costas. Ele se virou e a mulher deu um passo defensivo para trás, mas, na sua frente, entrou o homem com a cara de quem tinha acabado de engolir um inferno rugoso e ansiava para descarregar a sua raiva. O barman mudou de ideia e aproximou-se para lhes servir. Só depois de brindarem o homem notou que a mulher ainda segurava o seu braço, e ela notou que desejava continuar segurando, e daí para trocarem sorrisos e nomes e danças e toques e arrepios e beijos foi somente um passo antes de chegarem ao altar. E, se hoje omitem a verdade para os seus amigos, é por que nem eles sabem que ambos odeiam azeitonas e que todas as histórias – mesmo as de amor – necessitam de uma mentira para virem ao mundo.
Gustavo Melo Czekster é formado em Direito pela PUC-RS, mestre em Letras (Literatura Comparada) pela UFRGS e doutor em Escrita Criativa pela PUC-RS. É palestrante de temas ligados à literatura, resenhista de sites e ministrante de oficinas literárias. É escritor, autor de dois livros de contos: “O homem despedaçado” (2013) e “Não há amanhã” (2017) e de um romance: “A nota amarela: seguida de “sobre a escrita: um ensaio à moda de Montaigne” (2021). Com o segundo livro, foi vencedor do prêmio Açorianos 2017 (categoria Contos), do prêmio AGES de Literatura (categoria Contos e categoria Livro do Ano) e do prêmio Minuano de Literatura (categoria Contos), tendo sido finalista do Prêmio Jabuti 2018 (categoria Contos). Com o terceiro, é finalista nos prêmios Minuano e Oceanos de 2022.
