De ‘CONVIVÊNCIAS’, de Norberto Presta
Fragmento do romance inédito Convivências
Do diário de Raul.
Um domingo de abril.
Coloquei o braço para fora da janela querendo virar à esquerda, mas a cidade não reagiu, diante de nós um muro de concreto anunciava o impacto. Me senti sozinho. Fechei a janela e liguei a televisão, o noticiário traçou uma linha vermelha que me deslumbrou, quando fechei os olhos em meu cérebro um grito sem eco me paralisou. Foi então que decidi ligar para você.
Sua voz não foi de consolo… “Os supostos líderes do mundo se distraem assistindo a si mesmos na televisão e o reality show os confunde, portanto, quem cura mata, quem tinha que proteger rouba, quem ensinava ficou em silêncio…” E você disse também que “…muitos órfãos não encontram seus pais, pois os pais não terminam de abandonar a infância e até os avós andam pela Disneylândia comprando lembranças para esquecer “.
Me distraí ouvindo um anúncio de desodorante e quando voltei ao telefone você não estava lá, fiquei um tempo ouvindo tuutuuutuuutuuu, me sentindo culpado. Eu teria gostado de filosofar com você, acho que teria nos feito bem.
Quando levantei a cabeça, encontrei-me com o muro na minha frente, sempre esperando. O muro e eu sabíamos que não valia a pena fazer sinais, que a cidade não respondia e o muro continuaria naturalmente imutável.
A cidade mergulhada na sua própria confusão permaneceu surda, cegada por tanta luz supérflua, não teria percebido nenhum apelo à prudência, era inútil tentar nos salvar, o muro sabia disso e eu também. A impotência se transformou em culpa. Consequentemente a raiva me tirou do sofá.
Foi então que uma história de Efraim Kishón veio em meu auxílio. Deixei o telefone e abri a janela, gritei com todas as minhas forças: “Filhos da puta”. Senti alívio imediato. Em questão de segundos janelas que se abriam e fechavam e insultos de todo tipo se espalhavam pela cidade, num crescendo divertido e assustador. Até onde iria essa catarse coletiva?
Lembrei-me de tua frase; “… A civilização não deixou de ser primitiva, por isso ainda precisamos de políticos, analistas e sex shops…” Se você estivesse aqui, teria cantado da janela Imagine de John Lennon como mais uma tentativa patética de canalizar tanta violência desperdiçada.
Apesar da nostalgia, fiquei satisfeito com minha ação e decidi celebrar a memória de Efraim Kishón e seus colegas. Eu tinha uma garrafa de uísque ainda virgem ficando entediada na geladeira vazia. Quando fui abrir o aparelho doméstico inútil, me deparei com cerca de vinte anúncios oferecendo entregas de comida: “Por que não?” Eu pensei. Em todo o fim de semana comi um pacote de batatas fritas, um pacote de cereais e cinco bananas, merecia terminar diferente. Decidi por um mix jumbo de trinta e seis unidades. Com o cartão de crédito liberadoeu podia me dar esse luxo.
Você já me explicou que “… a única coisa que merece ser esquecida é o futuro …”. Você também me confessou uma vez que começou a usar drogas para consegui-lo.
Eu adoraria compartilhar o meu jantar com você, ligar e ouvir você enquanto me intoxicava com peixe cru e uísque barato, mas sabia que só podia fazer um telefonema por semana. No entanto, se eles tivessem me deixado falar com você novamente, você teria me punido por minha distração com seu silêncio. Um “Desculpa” me escapou em voz alta, minha única palavra em dois dias.
Liguei para o delivery, resignado a comer em silêncio.
Enquanto eu esperava a comida chegar, a ponto de acabar a primeira dose de uísque olhando para o muro, a cidade tinha parado de gritar e tinha voltado ao seu barulho monótono.
Eu adoraria ouvir você dizer coisas como… “Tenho uma coleção de palitos de dentes de diferentes sabores, eles me ajudam a lembrar das nossas refeições e assim eu posso te reconhecer quando você entrar no meu quarto.”
Eu gostaria que a esquizofrenia fosse contagiosa, mas não é. Eu gostaria de delirar com você, junto com você, internado no mesmo quarto, lambendo seus palitos de dentes para lembrar nossas noites ouvindo o ulular das sirenes sem rumo.
Norberto Presta é ator, diretor, pedagogo e escritor teatral ítalo-argentino, fundador do Centro di Produzione Teatrale “Via Rosse” (Itália). Iniciou sua atividade teatral em 1971, estudou na Escola Municipal de Arte Dramática e no Conservatório Nacional de Buenos Aires, em 1981 participou do International School of Theatre Anthropology dirigido por Eugenio Barba. Desde 1981, trabalha na Europa, Argentina e Brasil. Escreveu, dirigiu e interpretou numerosos espetáculos, participando de festivais em diversos países. No Brasil merecem destaque suas atividades junto à Unicamp como pesquisador convidado dirigindo os espetáculos “O que seria de nos sem as coisas que não existem”, do Grupo Lume Teatro; “Fuga!”, do Núcleo Fuga em parceria com Lume Teatro; “EXTRANJIS”, com o ator Ieltxu Martinez Ortueta (SP); “Clariarce” e “Cá entre nós”, com Jussara Miller (SP); e “Esther Williams não quer mais nadar”, com Andrea Elias (RJ). É co-fundador da “Trânsito Produções Culturais” com a qual realiza os projetos “O Corpo Entre a Dança e o Teatro” (Ocupação do Teatro Cacilda Becker) e “Arte – Pedagogia – Politica: Ações Cooperativas” (Funarte de Residências Artísticas 2010).
