De ‘NADA SERÁ COMO ANTES’, de Andreia Schefer

Lançado em outubro de 2022, o romance “Nada será como antes”
concorre ao 7º Prêmio Kindle de Literatura.
O e-book está disponível na Amazon
no link: https://abre.ai/nadaseracomoantes

Ela exige uma resposta. Todos os dias insiste no assunto, repetindo sempre a mesma pergunta no café da manhã. Todos os dias a sua voz persistente martela em minha cabeça atrapalhando os meus sentidos. Há mesmo necessidade? Por que mexer em fatos tão bem enterrados? Eu me questiono, enquanto olho pela janela, tentando fugir do seu olhar inquisidor: não consigo encarar os olhos de minha filha.

— Será que hoje podemos resolver esse assunto? — ela cruza os braços e bate o pé esquerdo no piso. — Ou a senhora vai continuar me enrolando?

Olho de soslaio para Rodrigo e percebo que ele também espera uma decisão.

— Não sei se já estou preparada para isso.

— Há meses eu escuto a mesma desculpa. Estou cansada! Meu pai vai comigo. Se a senhora não quiser ir, fique em casa.

Meu marido confirma as palavras de Maria Clara com um gesto de cabeça: é um complô contra mim. Eu estou em uma encruzilhada e preciso me decidir.

— E então, Vitória, o que tu vai fazer? — Rodrigo segura as minhas mãos com delicadeza. — Maria Clara tem razão. Tu, melhor do que ninguém, sabe que ela tem razão.

— Mas tem que ser hoje? — meu tom de voz entrega a minha insegurança.

— Se não for hoje, quando será? Maria Clara já esperou demais.

O primeiro ímpeto de curiosidade aconteceu quando minha filha tinha oito anos de idade. Desde então, ela nunca mais me deixou em paz. Sem saber, naquele dia Maria Clara me arrancou da minha zona de conforto. Sem querer, ela passou a desenterrar os destroços de uma vida esquecida entre as lembranças de um passado remoto. Um passado do qual eu preferia não me lembrar, embora estivesse comigo todos os dias. O pretérito imperfeito que ainda me causava calafrios.

Naquele final de tarde, com uma tarefa da escola nas mãos, minha filha iniciou o interrogatório:

— Quem são os meus avós maternos? Avós maternos são os pais da mãe… — ela parou por um instante, tentando organizar os seus pensamentos. — Mamãe, quem são os teus pais?

Maria Clara convivia com os avós paternos. Durante os seus primeiros anos de vida, moramos na casa deles e laços fortes foram construídos entre avós e neta. Da minha família, ela nada sabia. Sequer imaginava que eu pudesse ter parentes distantes. Eu nunca havia mencionado nada a respeito da minha história em sua presença. E não teria tocado no assunto se pudesse evitá-lo por mais um tempo.

 Quando entrei no carro há tantos anos, levando comigo apenas o documento carcomido por traças e as roupas do corpo, tinha a certeza de que nunca mais voltaria àquele lugar. A certidão de nascimento amarelada e dobrada em quatro partes, única herança de um mundo desconhecido, simbolizava evidências de uma vida de mentiras. Aquela fuga não premeditada era uma etapa que se fechava na certeza de que nada mais seria como antes.

Uma parte de mim havia se deteriorado. Outra parte, ainda intacta, pedia-me uma segunda chance, um recomeço. Mas eu não sabia como retornar. As marcas deixadas em minha alma ainda me machucavam. Eu nunca consegui esquecer.

Com as mãos na cintura, Maria Clara ainda me encara:

— Vai ficar aí, sem dizer nada? Mais uma vez tu vai fugir?

Não. Eu não estou fugindo. Estou buscando forças para dar a resposta que ela tanto espera. Rodrigo também continua me olhando. Ao contrário de mim, parece não dar importância a coisas tão antigas. Talvez tenha perdoado — não sei.

— Tu quer fazer com Maria Clara o mesmo que fizeram contigo? — Ele me instiga.

Não. Eu não quero e não vou cometer com a minha filha os mesmos erros que cometeram comigo. — Levanto da mesa sem dizer nenhuma palavra.  Dou uma volta pela casa, seco as minhas lágrimas e tomo a decisão que dará um fim a mais um ciclo.

Abril de 1985

A casa cheia anunciava mais um tradicional churrasco de domingo. Os homens mais velhos, dividindo o sofá com os jovens, revezavam-se entre a churrasqueira e a sala de estar. Esbarrando nas portas, tropeçavam nas mesas e cadeiras: moviam-se apressados. Contemplavam a transmissão colorida do novo aparelho de televisão de Emílio: dali surgiria uma boa ou má notícia, capaz de alterar os seus ânimos naquele dia. De vez em quando um deles subia em cima do telhado para direcionar melhor a antena. A escada de madeira, escorada na parede externa da casa, aguardava eventuais necessidades – ninguém queria assistir a uma imagem chuviscada.

Na cozinha, entre as mulheres, o assunto era o mesmo: as visitantes invejavam a nova aquisição da anfitriã. Sem convite algum, ofereciam-se para acompanhá-la nos horários das novelas. Envaidecida, Nair se exibia: enfim, poderia ver as cores das roupas das celebridades e copiar-lhe os modelos em sua máquina de costuras. Em meio aos risos, às vezes mudavam o rumo da conversa e se dedicavam a relatar atividades domésticas e problemas familiares. Como se estivessem em uma sessão de terapia, cada uma narrava suas rotinas e cansaços, enquanto as demais se intrometiam com opiniões e soluções nem sempre viáveis.

As crianças, no pátio, tinham uma única preocupação: escolher uma brincadeira do agrado de todos. Divertiam-se correndo, pulando e gritando pelo vasto terreno, longe dos adultos. De Vitória, a mais velha, era cobrado ser o exemplo para os menores. Restava a ela cuidar dos pequenos e apartar possíveis desavenças daqueles a quem chamava de primos – na verdade, nem primos eram, mas ela os chamava assim. Aos adultos que frequentavam a sua casa, chamava de tios. Não entendia, ao certo, o seu grau de parentesco com aquelas pessoas, mas foi assim que lhe ensinaram a se dirigir a eles.

Vitória morava com os avós. Diferente das outras crianças da família, ela não convivia com os pais. Quase nada sabia sobre eles. Quando perguntava a respeito, só ouvia dizer: “Estão viajando”. Há muito tempo não os via e já nem se lembrava dos seus rostos, ou das coisas que faziam juntos. Mesmo assim, esperava por eles, sentada em frente à porta, em todos os finais de tarde.

O almoço de domingo demorava a ficar pronto. As crianças, com seus estômagos famintos, não conseguiam esperar. De fininho, aproximavam-se da cozinha para roubar um pedaço de ovo ou batata cozida da maionese. Algumas eram ligeiras e fugiam sem serem vistas. Outras fingiam ouvir as conversas das mulheres, demorando-se por lá. Vitória fazia parte do segundo grupo. Aproveitava-se de sua pequena estatura e, silenciosa, escorava-se à mesa, sem ser percebida.

— Não tiveram retorno da polícia? — a voz era de uma senhora parruda; a avó de Vitória chamava-a de “irmã”.

— Não. Desde aquele dia nunca mais foram vistos. — Nair, antes tão divertida, colocava água no arroz, agora, com os olhos umedecidos.

— É uma pena terem se metido com aquela gente! — a fala de uma outra parente encerrava o assunto. — Esses comunistas! Não fazem nada além de atentar contra os cidadãos de bem.

Vitória não sabia quem eram os comunistas, mas tinha medo deles. Os adultos diziam que eram pessoas más: não queria ouvir sobre eles. Assim que conseguiu confiscar uma batata inteira, correu ao fundo do quintal. Lá estava a churrasqueira montada com sobras de tijolos de construção. Enquanto viravam os espetos, os assadores cortavam pequenas lascas de carne assada para as crianças. Também serviam salsichão com farinha de mandioca e sempre pediam a algum dos pequenos para levar o prato para as mulheres. A competição era grande. Todos queriam cumprir essa tarefa, mesmo sabendo que as mulheres reclamariam do prato chegando até elas quase vazio. Vitória sempre era a escolhida para a incumbência, mas, dessa vez, preferiu não voltar à cozinha, passando para outra criança a sua responsabilidade.

A conversa entre os homens parecia animada. De vez em quando, um deles vinha da sala, com o copo de caipirinha, comentando o entretenimento na televisão.

— Não está fácil, mas parece que ele vai conseguir.  — o irmão mais velho de Emílio só desgrudava os olhos da tela para buscar um pedaço de carne na churrasqueira. — A chuva está atrapalhando.

— O Brasil precisa dessa vitória.  — Emílio mordia um salsichão.  — Uma alegria faria bem ao povo.

— Falando em povo: e o homem aquele? Será que vai sair dessa? As notícias não são boas.

— Parece que está a cada dia pior. Ouvi dizer até que já está morto e estão escondendo a verdade.

— Mas se isso acontecer, o vice assume.

— Pois é. E o vice traiu o Figueiredo. Entregaram de vez o Brasil para os comunistas. Acho que não tem mais volta.

Vitória ouvia a fala do avô, confirmando mais uma vez — comunistas eram maus. Mas quem era o “homem aquele” de quem falavam? Seria o piloto da corrida que assistiam na televisão? O piloto também era comunista? Mas porque queriam tanto que ele ganhasse?

Vitória tentava juntar as peças, quando se assustou com um berro vindo da sala:

— O Brasil venceu! Ayrton Senna chegou em primeiro lugar!

Em meio aos gritos de felicidade dos adultos, Vitória embaralhou novamente todas as peças do seu quebra-cabeça imaginário e comemorou com eles:

— Quem é Ayrton Senna? — ela quis saber. Em meio à zoeira dos adultos, a sua pergunta ficou sem resposta.

Andréia Schefer nasceu e vive em Novo Hamburgo/RS. Publicou o romance “Para onde vão as borboletas à noite” (Edição da autora, 2020)  e participou das antologias “Prêmio Literário Literatura Mínima” (Entre Capas, 2021) e “Poemas do Eu” (Ed. Persona- 2022). Recebeu menção honrosa no Prêmio Voo Livre de Literatura, na categoria conto. Publica, periodicamente, os seus textos na Revista Paranhana Literário, no perfil Literatura Mínima no Instagram e no Blog Etudes Lusophones.

FICÇÃO

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