De ‘SAL’, de Mar Becker
De “Sal”, lançamento de Mar Becker pela editora Assírio Alvim,
publicamos o poema “Annes” e a apresentação de Lawrence Flores Pereira.
A palavra em desabrigo: algumas notas sobre Sal, de Mar Becker
Lawrence Flores Pereira*
Diante de Sal (Assírio & Alvim, 2022) e da poesia de Mar Becker: é como, depois de uma longa viagem, ver o chão faltar. O olhar se perde na imensidão e, por instantes, o fundo tormentoso cintila, mas sem revelar o adjacente inteiro de seu engenho, que ficará em sigilo sempre.
Sob a superfície árida dos poemas deste livro, boa para a cristalização mineral, toca-se numa umidade de resguardo – escura, musgosa. Por ali, sobem intrincados de raízes e nos engancham nos pés como gavinhas; de súbito, nos tiram o chão.
.
Há uma autoridade sensível na ideia de desabrigo que inicia Sal. “Em desabrigo venho”, escreve Mar, e nisso se coloca exposta, nua. É uma experiência também de humilitas, de humildade e humus (do que vem da terra), no sentido etimológico de voltar-se ao pequeno, porque sobre isso tudo Mar tem domínio.
Estar em desabrigo é também estar em sabedoria sensível máxima, com os poros nunca cauterizados no alheamento, pois é fato: o abrigo, quando se torna algo dado, nos faz deslembrar do nosso desabrigo antecedente. E Mar parece estar em contato com ele desde sempre, uma área de imagens moldadas no vivido.
Aqui, o desabrigo ou a sensação de sua iminência abortam a normalidade e a substituem pelo estarrecimento ante coisas quase imperceptíveis: o farelo na mesa da cozinha; o rosto (a boca) que se perde em meio à névoa “d’água de arroz”; o estojo de esmaltes da mãe, tomado de assalto pela filha (ou pelas filhas, porque é da natureza de meninas que venham assim, “em horda”, mesmo quando é uma só); a desolada cidade, que não alcança a casa, não chega a tocar nas mulheres da casa – surge de longe, com notícias vagas (a correspondência posta pela soleira da porta, o ímã de uma distribuidora de gás grudado na maçaneta).
Esse olhar sobre o pequeno é um dos cernes da poesia de Mar, de sua fragilidade pujante, poderosa. Firme. E tais qualidades surgem ubíquas e produzem no leitor vibrações sublimes, estranhas, particularmente quando imagens de esterilidade e erotismo se entrelaçam no imprevisível modo que só a grande poesia sabe expressar.
.
Em Sal, temos a síntese, a apreensão daquelas camadas interiores mais difíceis de captar em poesia, as sensações caladas para as quais há o toque de beleza do sinistro.
Nisso estão rigor e disciplina da imaginação – pois a imaginação tem lá o seu modo rigoroso de fazer emergir o estético; funciona pelo recurso de uma segunda inteligência que não é nem lógica nem ilógica, tem suas leis sutis, suas nuanças, e as Mar domina com soberania.
.
Esterilidade, o corpo anoréxico, a peregrinação da filha de Jefté (que seria sacrificada pelo pai), de quem se ouve “aqui, nenhum fruto”. A possibilidade de reter o tempo, mineralizar-se. A sugestão de uma morte na virgindade, nesse caso numa figura bíblica – mas já presente em A Mulher Submersa, pela imagem de Ofélia.
Tudo isso vem com os cânticos ambíguos dessa condição que traz consigo a cicatriz da infância de menina.
.
Mar nos oferece a chave já no título. Sal diz daquilo que permanece do ressecamento do suor, do líquido, talvez do mar – a cristalização da vida, a petrificação da mulher que, como a esposa de Lot, é incapaz de deixar de olhar para trás; estátua salina comendo com o olhar as chamas da cidade castigada.
Há nessa figura quase final uma beleza quase hierática, terrível, que se desloca para a sombra tanática do retorno de uma morta, embora a poeta jamais pareça falar de outra existente. Fala tão somente de um ente invisível, como se buscasse circundá-lo como a água circunda uma ilha que sonha em ser península. Se chega a trazer alguma loa à sua existência, nunca o faz sem deixar cintilar atrás certa escuridão sinistra.
Este é um livro de que se depreende um esboço trágico, notas esparsas de uma presença sem corpo, algo não pronunciado. Nome emudecido, sustentado por uma artesania obscura, única. Por trás de suas impressionantes analogias arrancadas à realidade banal, está algo que todos potencialmente poderiam ter vivido, uma espécie de reserva subjetiva universal que só Mar é capaz de conjurar com a palavra.
.
Por outra via, o sal pode ser o sal da vida. Ele é aqui o próprio amor, o lugar de amar, refúgio, casa; uma trincheira para o ferido de morte, esconderijo da infância, retorno.
O amor é antes de tudo algo que a boca articula, essa fenda que fala e beija, ferida que não cicatriza.
Mar reverbera desde o íntimo sua língua, uma língua própria, e ela se espraia de dentro para fora. Quando penso nisso, nos caminhos que ela trilha, sua recusa do fácil, seu compromisso com a verdade da poesia, eu, grato, me inclino.
* Lawrence Flores Pereira é tradutor, poeta e professor
na Universidade Federal de Santa Maria (RS).

ANNES
I
num dia, as janelas se erguem ─ descomunais. parecem imensas quando amanhecem embaçadas
.
o fogo se extinguiu há tempo, e o que resiste agora é esta paixão sem pele
.
passo fundo, vila annes:
bem cedo da manhã, éramos nós irmãs e a mãe circulando pela casa; a hora alta, e as feições surgiam avulsas, ainda enormes de sono
.
até o ponto de adoecê-las: assim olhar as coisas
.
morar é questão de se tornar uma mulher cega entre outras mulheres cegas, e com elas ir tateando o ar
II
entre o término de agosto e parte de setembro vivíamos o período úmido. eram dias de chuva finíssima, que se alongavam numa semana, às vezes duas, até quatro, continuamente. íamos sendo mudadas pela exposição a essa água em forma de garoa, e a mansidão desse período, nós a partir de uma altura começávamos a estranhá-la. lá pelo décimo dia, a casa já havia entorpecido, já não a reconhecíamos mais
.
(no limite, passávamos a sentir medo de que a primavera não fosse vingar a tempo. antes disso, a água avançaria, desceria às raízes, apodreceria boa parte dos bulbos. se chegasse a irromper, e chegaria, seria outra primavera, erguida magra, aleijada)
III
também nesses dias de garoa a roupa pra lavar se acumulava. tínhamos por hábito esperar que fossem quando muito duas semanas, um erro. (a água é traíra, e a água que se afeiçoa à lentidão mais ainda). quase todo ano a umidade se estendia ao insuportável, e o cesto começava a transbordar no banheiro e nos víamos de uma hora pra outra sem ter o que vestir de limpo, o guarda-roupa vazio
aí nascia entre nós uma rotina de reuso. era tão asquerosa quanto arrogante, rude ─ as duas coisas juntas. consistia em deixar as peças usadas respirando à noite, penduradas pelo quarto, e depois vesti-las novamente na manhã seguinte. isso com todas elas, inclusive as calcinhas. dormíamos sem nada, e quando íamos pôr outra vez as calcinhas o muco já havia ressecado nos fundilhos ─
era uma crosta então, árida crosta de meninas
IV
(na casa, vivem as tais mulheres paradas, que andam paradas; nesse mundo, andar é só outra performance da imobilidade)
V
digo que aquela era mesmo nossa porção do dilúvio ─ mesmo que parecesse inofensiva, só uma garoa. quem disse que o dilúvio precisa fazer alarde? acho a propósito que esses aquietados perigam mais fundo, porque tendem a se alongar e se infiltram, prometem a alegria da incivilidade, vêm chancelados pela ideia de se poder faltar a dias seguidos de aula, riso e cheiro de sopa, riso e janelas embaçadas, estar inoticiável ─
“ninguém nos alcançará”: a correspondência, posta por baixo da porta; o ímã da liquigás, grudado na maçaneta. “ninguém avançará porta adentro, somos inalcançáveis”
VI
no fim, esse sentimento diluvial era também o que nos conduzia a lavar roupa, porque não dava pra ficar à espera, “não terminará logo”. ia então toda a roupa suja acumulada num só dia: bater quatro maquinadas, da manhã à noite, e estender distribuindo uma boa quantidade de peças pela própria casa, já que não havia varal o suficiente
.
que visão aquela, que tínhamos da sala no dia depois. as calças de moletinho penduradas nas quinas das estantes. as blusas nos encostos das cadeiras, em torno da mesa de jantar (onde aliás não se janta nunca, não tem essa serventia em casa de gente como era a nossa). os sutiãs e as calcinhas pendendo dos puxadores das janelas, das maçanetas das portas, caindo-imóveis-dos braços-do-sofá
havia todo um alongar-se nos sutiãs quando os víamos na sala dispostos assim; os meus e os de minha irmã especialmente, porque nem bojo tinham
que ímpeto de esgarçamento se abatia na casa; descobri-la nesses animais compridos
VII
até que tudo secasse, convivíamos com essas peças, caminhávamos no meio delas
com a passagem dos dias se tornavam figuras pausadas de tecido, e nisso cruzavam em mim com as visões da edícula, os guardados de uma antiga loja de confecções da mãe
eu chegava a ir até lá outra vez, via as manequins, sem uso. nunca mudavam em nada no resto do ano, mas em setembro surgiam aos meus olhos sugerindo que
talvez já tivessem sido outra coisa, gente como nós, mulheres. poderiam ter sido mulheres de carne e osso, vivas, numa casa viva igual à nossa
quem sabe a edícula já tivesse sido ela mesma uma moradia e agora era isto
lugar de presságio, promessa que viria a se cumprir dentro de pouco tempo, que narrava o que seríamos nós. como as manequins, nos converteríamos em silhuetas paradas no meio do caminho, como elas teríamos as pétalas lassas em cada olho
nossos dedos, dedos acrílicos detidos no ar
VIII
a essa luz, cultivei desde nova o amor
.
uma canção derruída: essa é toda a notícia que há do fogo
.
se adoeciam as meninas, era tempo de lhes pôr paninhos embebidos com álcool nas axilas. na vila annes, baixava-se assim a febre dos corpos mais pequenos da casa
.
o que arde dentro da garoa, o sal como conjuro. a cegueira, as mãos
.
num dia as janelas se erguem, tudo é delírio
IX
na cozinha, éramos nós duas irmãs à volta
olhávamos a mãe pelo fogão, o rosto perdendo-se na névoa que subia, à fervura
.
ralo como água de arroz
o leite das mulheres
para a fome dos homens

Mar Becker (Marceli Andresa Becker) nasceu em Passo Fundo/RS. Tem formação em Filosofia e Especialização em Metafísica e Epistemologia. Em poesia, publicou duas plaquetes, uma pelo Centro Cultural São Paulo, Coleção Poesia Viva (2013), e outra pela Editora Quelônio, Coleção Vozes Versos (2017). Com A mulher submersa (Urutau, 2020) venceu o Prêmio Minuano de Literatura em 2021 e foi finalista do prêmio Jabuti na categoria poesia. Sal está sendo lançado no Brasil e em Portugal pela editora Assírio Alvim.
