De ‘VENEZA SALVA’ (Simone Weil), por Gabriela Porto Alegre
“Há muitos livros ou artigos que dão a impressão de que o autor, antes mesmo de começar a escrevê-los, e, posteriormente, logo antes de enviar a obra para o prelo, pergunta-se com verdadeira ansiedade: ‘Eu estou na verdade?’ Há muitos leitores que, antes de abrir um livro, perguntam-se com verdadeira ansiedade: ‘Encontrarei aqui alguma verdade?’ Se propuséssemos a todos profissionais do pensamento, sacerdotes, pastores, filósofos, escritores, intelectuais, a escolha, a partir de agora, entre dois destinos: ter o seu trabalho imediatamente e definitivamente rotulado como idiota, no sentido literal, com direito a todas as humilhações que tal desmoronamento provoca, mas guardando lucidez suficiente para superar todo desgosto; ou, por outro lado, ter um súbito e prodigioso desenvolvimento das faculdades intelectuais, que o assegure imediata fama mundial e glória após a morte por milhares de anos, mas com o inconveninente de que seu pensamento permanecesse, para sempre, alguns centímetros fora da verdade, chegaríamos a cogitar que muitos deles sentiriam, perante essa escolha, uma leve hesitação?”32 (WEIL, 1949, p. 141)
“Simone Weil existe” é um podcast de 6 episódios disponível no Spotify e produzido por Gabriela Porto Alegre e Rafael Bublitz.
TRADUZIR SIMONE WEIL
Simone Weil chegou até mim de forma diferente do que para a maioria de seus pesquisadores e tradutores: pela poesia. Mais especificamente, uma querida professora da UFRGS, Dalva Carmem Tonato, apresentou-me a autora para complementar uma pesquisa. Veneza Salva foi-me apresentada pelo editor desta tradução, Roberto Schmitt Prym, e, a partir deste momento, deparei-me com a desafiadora tarefa de interpretar, absorver e traduzir a poesia e prosa de Simone Weil. O que não previ é o aprofundamento na obra e na vida da autora que tal tarefa repercutiu. Ao pesquisar sobre os temas concernentes ao conteúdo desta obra em específico, encontrei referências de sua biografia e teoria, como, por exemplo, o seu aprofundamento nas culturas helênica e oriental, os seus diários de fábrica e o desenvolvimento em sua obra filosófica dos conceitos da força, graça, sofrimento e enraizamento.
O livro que inspirou Venise Sauvée, escrito no século XVII pelo abade Saint-Réal, suscitou muitos questionamentos, sendo uma obra com um fator de veracidade controverso, que tem em seu conteúdo muitas afirmações não atestadas por meio de documentos ou testemunhos. Algumas cartas trocadas entre oficiais espanhóis e venezianos constam nos apêndices finais do livro[33], entretanto, não seriam suficientes para comprovar a história nele relatada. Apesar de tal verificação não ser essencial para a compreensão da peça weiliana, toda a polêmica em que vem embrulhada a Conjuration des Espagnols contre la Republique de Venise se tornou muito interessante, inclusive para a visualização de como a história era (e é até hoje) tratada: não só como uma ciência ou um saber, mas como agenda. A conjuntura de fatos que levou ao conflito na Praça de São Marcos, à fuga de oficiais do governo vêneto e à condenação à morte de três franceses foi objeto de discórdia entre as culturas espanhola e a veneziana, na medida em que seus interesses políticos interferiam na disputa pela dominação da narrativa desse evento histórico. Pesquisando sobre a vida e obra de Saint-Réal, a época em que viveu e a dúvida sobre sua qualificação como historiador ou romancista, deparei-me com a bela peça de Otway, Venice Preservei, e lembrei que, independente da veracidade ou da comprovabilidade da conjuração de Veneza, a peça de Simone Weil, assim como a de Otway, tomam como anteparo o relato de Saint-Réal para projetar luz sobre algo que transcende esse fato histórico específico: a natureza contraditória do ser humano. De acordo com Simone, “a história é uma tessitura de baixezas e de crueldades onde, de longe em longe, brilham algumas gotas de pureza.” (2014, p. 195)

A porta
trad. Gabriela Porto Alegre
Abram a porta e nós veremos os pomares,
beberemos sua água fria onde a lua perde o traço.
A longa estrada queima, inimiga dos estrangeiros
vagueamos sem saber, encontramos lugar nenhum
Queremos ver o floreio. Aqui a sede nos permeia;
eis-nos perante a porta, sofrendo e esperando;
se preciso for, partiremos essa porta aos murros,
empurramos e forçamos, mas a barreira é maciça.
Devemos definhar, esperar e vãmente olhar;
nós olhamos a porta, está fechada, inabalável.
Sobre ela fixamos os olhos, choramos um tormento,
e por ainda enxergá-la, o peso do tempo nos esmaga.
A porta está diante de nós; e de que nos serve o querer?
É melhor partir em abandono à esperança.
Jamais entraremos. Estamos fartos de vê-la.
Ao abrir, a porta deixou passar tanto silêncio,
que não apareceram os pomares, nem houve floreio,
somente o espaço imenso onde estão o vazio e a luz
ocupou súbito de ponta a ponta, encheu o coração;
e lavou os olhos, quase cegos, cobertos de poeira.
Executar os ajustes que Simone programou para si mesma foi um impulso que me acompanhou desde o momento em que li as anotações de seus cadernos. Não cedendo a essa natural vontade, concentrei-me em retratar fielmente suas orientações, não só em conteúdo, mas em seu local no texto, da forma com que entranham o todo, sendo diferenciadas pela grafia em itálico e causando a hipnótica sensação de estarmos sendo acompanhados pela dramaturga na íntima arquitetação de sua peça. Simone empresta-nos alguns instantes dentro de seu pensamento criativo. Em alguns deles, se é transportado para as coxias da peça, em outros, para a ebulição da engenhosidade da autora no ato de escrever. A capacidade intelectiva da escrita literária de Simone Weil se evidencia não só na camada finalizada da peça, mas na sua preocupação com a métrica dos poemas, na construção de personagens coerentes e nas maneiras de gerar sensações na plateia com elementos como o movimento, o silêncio, a exaltação e a rítmica das falas. Simone não adiciona tão somente notas de organização própria, por exemplo, na escolha da quantidade de sílabas poéticas e figuras de linguagem, mas também rubricas de ação e de intenção que compõem o sentido e a poética da cena, orientando o comportamento físico e emocional dos atores nos diálogos. Outrossim, há observações que apontam para falas que não estão escritas, mas que precisam ser integradas no correr da cena: “Pierre faz uma descrição curta de Renaud.”[34]. Dessa forma, abrem-se brechas para que a equipe dramática possa criar e adaptar os pormenores de acordo com as circunstâncias específicas com que trabalham e com as suas interpretações. No início do segundo ato há, inclusive, a menção à música que deverá ser tocada na entrada de Violetta na cena, de Claudio Monteverdi, um dos maiores madrigalistas italianos, que nasceu sob o regime da República de Veneza e, na data da conjuração, vivia em Veneza, como mestre de capela da Basílica de São Marcos. Nesta e em outras passagens, faz-se evidente o detalhismo e a paixão da dramaturga em sua criação e para com a história que sua escrita anima.
Uma de suas mais interessantes aspirações para a energia da peça foi “construir nas cenas a maturação lenta de um ato que está cercado pelo universo e, depois, a sua transformação em ato lançado no mundo”[35]. Este limiar entre a ação abstratamente considerada e o ato concretizado e, logo, irreversível, é um dos maiores expoentes da trama que Simone delineia para Veneza Salva.
A sensação de apreensão por não resolver as lacunas deixadas[36] por Weil mistura-se, então, com a certeza de que sua obra é um grande ato lançado ao mundo. A indefinitividade da obra permite que seu leitor, adaptador ou diretor descubra como adicionar a sua própria perspectiva à peça. Não é possível saber como Simone executaria seus planos, então, cabe a nós nos questionarmos como os executaríamos.
Traduzir a literatura weiliana é deparar-se com uma riqueza de referências ao repertório da autora: a sua formação clássica, o seu aprofundamento na cultura e mitologia gregas, os estudos do Antigo Testamento, a influência de Platão, o aprofundamento espiritual a partir do veda Bhagavad-Gítã e etc.
Para identificar a origem e o sentido de alguns termos utilizados, foi necessário atentar especialmente ao pano de fundo das obras e vivências que fizeram parte da formação da autora. A título de exemplo, no poema Versos lidos na festa de Saint-Char-Lemagne, a autora faz menção à “Joyeuse”, palavra que, traduzida para o português significa “feliz”, “alegre”, entretanto, no contexto, “Joyeuse” faz alusão à espada utilizada por Carlos Magno na canção de gesta Chanson de Roland (TUROLD, séc. XI, estrofe CLXXXIII). Para manter esse significado, optei por transliterar o vocábulo do francês e explicar em nota de rodapé o seu significado. Afinal, é possível que o leitor também esteja ciente do nome da espada de Carlos Magno. A transmissão dos conceitos significantes e de origem específica em sua poesia exige uma capilaridade de conhecimentos que não necessariamente se conectam com a trajetória da autora, mas com o espectro dos temas nos quais a mesma se interessou intelectualmente. Nesse sentido, agradeço ao Rafael Bublitz, graduado em direito na UFRGS, por todo o auxílio referencial e teórico, no que tange o amplo espectro de conhecimentos específicos, históricos, religiosos e culturais, diligentemente oferecido para a composição desta tradução. A consequência inesperada e profícua dessa ajuda foi a criação conjunta de um projeto de estudos revestido de produção em mídia: o Podcast “Simone Existe”, no qual se discutem variados temas referentes à Simone Weil, com a participação de convidados dotados de conhecimentos específicos sobre a autora e a sua contribuição para diferentes áreas do saber.
Como a linguagem poética weiliana frequentemente sugere ao invés de descrever, preferi permitir o maior número de interpretações ou a quantidade de interpretações mais próxima às quais um leitor nativo teria. Claramente, a transposição entre línguas invariavelmente imprime novas formas, ritmos e signos ao texto, logo, devo informar que priorizei a emersão da voz weiliana na língua portuguesa brasileira, considerando a transposição cultural. Devo reconhecer que a minha abordagem de fidelidade ao conteúdo e ao componente lírico não pode, ao mesmo tempo, refletir a métrica presente na versão original. Ainda, busquei estabelecer um equilíbrio entre o dever de equivalência e a ênfase na autenticidade da autora. Uma tentativa, que não se encerra nesta edição, de não desfiar nenhum ponto da corda que Simone nos lança, considerando que a linguagem é viva e, o poema, logo, uma cápsula orgânica de pensamentos de um determinado autor, temporal, social, económica e politicamente situado. Assim, para fazer jus à potência visceral e ao quanto os versos weilianos expressam sobre a sua vida, as suas angústias, as suas convicções e os seus desejos, concentrei-me em capturar em seu texto o que Simone chama de espírito da verdade:
“A palavra grega que traduzimos para espírito significa literalmente sopro ígneo, sopro misturado com fogo, e designava, na Antiguidade, a noção que a ciência hoje designa como energia. A energia da verdade, a verdade como força motriz.”[37](l949, p. 167).
Em Écrits de Londres et dernières lettres, Simone pede em cartas a seus pais que sejam feitas alterações nos poemas e na peça: “Novo final de ‘Astros’ (definitivamente definitiva dessa vez, creio!)”[38] (1957, p. 206). Assim como sua escrita filosófica e suas correspondências, a criação literária weiliana constituiu uma importante e reveladora via de expressão. A produção exorbitante da autora ao longo da vida denota que a palavra foi sua grande ferramenta de trabalho, de relações pessoais e de criação. O rastro poético de Simone é sucinto em relação à massividade de sua obra filosófica, e, ao mesmo tempo, carrega uma copiosa dose de reflexos de sua vida interna. Por outro lado, Veneza Salva é uma moldura que destaca o grande drama dos desenraizados em conflito com o nacionalismo e as relações que surgem em uma dinâmica em que, por decisão do homem, a terra não é para todos. A terra é poder, não só um poder territorial, mas histórico, político e narrativo.
Articuladora de múltiplas referências, disciplinas e tradições, Simone não deixou de fazer um breve comentário sobre a criação poética em O Enraizamento:
“A composição simultânea em vários planos é a lei da criação artística e da razão de ser de sua dificuldade.
Um poeta, na disposição das palavras e na opção por cada uma delas, deve ter em conta simultaneamente pelo menos cinco ou seis planos de composição: as regras de versificação – número de sílabas e rimas – de forma de poema que adotou; a coordenação gramatical das palavras; a sequência puramente musical dos sons contidos nas sílabas; o ritmo material, por assim dizer, constituído pelos cortes, pelas pausas, pela duração de cada sílaba e de cada grupo de sílabas; a atmosfera que criam em torno de cada palavra as possibilidades de sugestão que ela encerra, e a passagem de uma atmosfera para a outra à medida que as palavras se sucedem; o ritmo psicológico constituído pela duração das palavras que correspondem a determinada atmosfera ou a determinado movimento do pensamento; os efeitos da repetição e da novidade; muitas outras coisas ainda, sem dúvida, e uma intuição única da beleza que dá unidade a tudo isso.” (2014, p. 183)
A partir da consciência do detalhismo cirúrgico da escrita weiliana, das notas de seus cadernos e de uma compreensão da vida de Simone Weil, a não finalização da peça torna-se o preenchimento de uma noção ampla sobre o ser em Simone. A dinâmica da força humana como cadência do pensamento, e não dos movimentos repetidos, como relatou em seu Journal d’Usine (1951). O ser que inicia pela vontade e nela decalca sem fim. Uma escritora que repete muito em suas obras a palavra “chair”, isto é, “carne”. A sua tentativa de aclarar o sofrimento pela comunhão interna do ser humano com uma dimensão superior de si mesmo. A construção do forte, do ingénuo, do místico, da esperança, da justiça, do companheirismo, da traição, da doçura, da contradição e do malheur em cena. A vulnerabilidade pontiaguda de seus versos imponentes. Poeta-tributo. Centelha. A não finalização de muitas de suas obras se deve ao fato de que o trabalho de Simone não teve fim, nem se prestava a ter. Além disso, na sua época, as autorrevisões que ela inseria entre as falas e versos, poderiam não terem sido consideradas partes importantes da obra final. Mas, hoje em dia, em meio às experimentações contemporâneas na literatura, a liberdade de formas expandiu-se, inclusive para Simone Weil, autora de enorme estatura que tem o maior volume de suas obras reconstituídas de cartas. É por esse “percalço” que ler a peça Veneza Salva também é tatear as raízes do seu drama.
[32] No original: “Y a-t-il beaucoup de livres ou d’articles qui donnent íimpression que l’auteur, d’abord avant de commencer à écrire, puis avant de livrer la copie à íimpression, s’est demandé avec une réelle anxiété : « Est-ce que je suis dans la véri- té ? » Y a-t-il beaucoup de lecteurs qui, avant d’ouvrir un livre, se demandent avec une réelle anxiété : « Est-ce que je vais trouver là de la vérité ? » Si l’on proposait à tous ceux qui ont pour profession de penser, prêtres, pasteurs, philosophes, écri- vains, savants, professeurs de toute espèce, le choix, à partir de l’instant présent, entre deux destinées : ou sombrer immédiatement et définitivement dans l’idio- tie, au sens littéral, avec toutes les humiliations qu’un tel effondrement entraíne, et en gardant seulement assez de lucidité pour en éprouver toute l’amertume; ou un développement soudain et prodigieux des facultés intellectuelles, qui leur assure une célébrité mondiale immédiate et la gloire après leur mort pendant des millé- naires, mais avec cet inconvénient que leur pensée séjournerait toujours un peu en dehors de la vérité; peut-on croire que beaucoup d’entre eux éprouveraient pour un tel choix même une légère hésitation ?” (tradução livre).
[33] O apêndice n° i é constituído por uma seleção de cartas de comunicação do Conselho de Segurança na data de 17 de outubro de 1618, acerca de Jacques Pierre e a suposta delação. O apêndice n° 2 trata-se só do interrogatório de Renaud (um dos conjurados) e da audiência de julgamento do Marquês de Bedmar, em que foram apresentadas diversas cartas acerca da conjuração e seu planejamento. O n° 3 apêndice trata-se da peça Venice Preserved, de Otway.
[34] Trecho nas notas dos cadernos de Simone que precede o corpo da peça.
[35] Trecho nas notas dos cadernos de Simone que precede o corpo da peça.
[36] P ex. “Apresentação/exposição. (A ordem desta exposição não é definitiva”; “nessa cena, fazer uma alusão à história das seis meninas nobres?”; “conferir as falas de Renaud no quarto VI.”
[37] No original:” Le mot grec qu’on traduit par esprit signifie littéralement souffle igné, souffle mélangé à du feu, et il désignait, dans l’Antiquité, la notion que la science désigne aujourd’hui par le mot d’énergie. Ce que nous traduisons « esprit de vérité » signifie l’énergie de la vérité, la vérité comme force agissante.” (minha tradução).
[38] No original: “Nouvelle fin des « Astres » (définitivement définitive, cette fois- ci, je crois !)” (tradução livre).
Gabriela Porto Alegre Gabriela Porto Alegre é tradutora de literatura francófona, revisora, estudante, praticante de yoga, neta, filha, irmã, amiga e poeta. Atualmente licencianda em Letras na FURG, trabalha junto ao projeto “Troca de Livros”, pertencente ao programa “Socializando a leitura”, coordena o Diretório Acadêmico das Letras e é ativa em grupos de estudo sobre tradução. Publicou, pela editora Bestiário, a tradução “Veneza Salva – Poesia e dramaturgia em Simone Weil” em 2021 e “Mas meu vestido não ficou amassado”, de Corinne Hoex, com apoio do apoio internacional da instituição belga Passaporta. Compartilha textos e extratos de vida em seu Instagram @portoalegregabi. Acredita que a revolta é a arte da ruptura com o que nos destrói. Quer reconstrução, tradução e utilizar a literatura como mobilizadora de afetos e transformações.
