EM QUAL COHAB MORA A TUA TRANSCENDÊNCIA?, por Vitor Eduardo Simon
A aliteração é uma das características marcantes da poesia de Everton Cidade e isso se mantém, como uma tradição, no seu novo livro “Cohab Goya”. Mas concentrar-se nisso seria, no mínimo, preguiça de quem está lendo. Há muito mais por trás dos fonemas que se aproximam e se buscam numa brincadeira sem fim. Brincadeira de gente grande, que já conhece bem as dores do mundo, suas paranoias, bem como os seus paliativos.
O livro está bem fundamentado por três pilares, divididos de forma bastante clara. O primeiro, “Paliativos Psíquicos”, faz o livro engrenar aos poucos através de poemas curtos, mas nem por isso menos intensos e viscerais, característica sempre presente na obra de Cidade.
O segundo, “Poemas Simples Sem Açúcar/Com Saudade” remete claramente à infância e adolescência do poeta, entre perrengues, crises de asma, bailinhos e amassos, descobertas e abandonos nas periferias e esquinas de uma vida nem sempre doce, mas muitas vezes sim. Cidade nos conduz, como um artífice-anfitrião-simpático-e-sombrio, por versos que podem ser intensamente sensoriais e visuais, como em “Só pela dor / Como odor de fósforo. / Se vai aos poucos / Os olhos feridos de cloro / Enquanto / O sol acarinha / A dourada trança”. Eu, que acredito muito no caráter visual da poesia, sou levado a comemorar quando leio algo assim.
“Santão” é a terceira e final parte do livro, escrita em poema único de dez páginas, num só fôlego, carregando o leitor pelo colarinho e o fazendo rodopiar a dois palmos do chão em experiências e percepções do poeta. Aliás, esse aspecto testemunhal, também muito presente na segunda parte do livro é, a meu ver, o que pode ser encontrado de melhor na poesia contemporânea. Há muito disso em Marco de Menezes, um dos melhores gaúchos das últimas décadas e há, por supuesto, em Everton Cidade. É como tento escrever também, talvez sem tanta fluência, colocando no texto a forma como o poeta se vê e como interage com o mundo que ele habita. Isso basta. Não há verdades absolutas a descortinar. Há apenas alguém entre socos e beijos com a vida. O que pode ser mais verdadeiro do que isso?
Enfim, um livro, como o próprio autor o definiria, povoado de “Catástrofes de dor e alívio / De fascínio e fastio”. Vale a leitura atenta.
4.
Santo disfuncional
Natural catalizador das doenças
Faca de crânio alien para caça
A voz das vísceras no berço dos cosmos
Entrei com navalhas em seu coração
Estamos de passagem
Pela coreografia da paisagem.

8.
Carnificina de domingo
Carnificina em família
A amplidão nos dá o cárcere
Sagrada infâmia.
Um exorcista exilado
Da graça devastadora
Da dopamina diluída no dilúvio.
As oferendas foram aceitas
Reconectadas e desfeitas.

1/.
Cohab, que tão pouco
Se sabe os segredos
Fui serpente desde cedo
Fui o louco, a mãe do medo
O menino afiando os dedos
Roubando carros
Com dor de dente
Trampando
Onde meu pai era gerente
Filho de loba mamando
Tetas das gentes
Que a tristeza segue
Bancando
Como cabelos
Presos num pente.

16/.
Na nossa casa de reparos
Durmo no acalanto de
Acalântis
Deusa dos pássaros
Eu antes lírio tigre
Adoçador das colmeias
Perdi o eixo dos seixos
E o aço das açucenas.
Vitor Eduardo Simon é gaúcho, publicitário e acadêmico de Filosofia. Estudou poesia na oficina de Orlando Fonseca e conto na de Luiz Antonio de Assis Brasil. Já publicou dois livros de contos: Bravos contos breves, em 2014, e Moedas soltas no bolso, em 2018. Fez a sua estreia como poeta com Cata-vento imóvel, em 2020, edição do autor.
Everton Luiz Cidade nasceu em Novo Hamburgo. Renasceu e se criou na Cohab Feitoria de São Leopoldo-RS. É músico experimental e escritor. Atua no underground desde os anos 90 com shows de suas bandas, leituras de poesia improvisadas e publicando zines. Publicou os livros Santo Pó/p (MAKBO Editora), QuiÓ (oVo e GoDie), Bonde Transmutóide (Vibe Tronxa Comix), ApareCida (Meu Santo Vendedor) e Cohab Goya (Folheando). Divulga seu trabalho e o de outros artistas locais na Glingy, um importante ponto de cultura da cidade de São Leopoldo.