EUGENIO MONTALE, por Thomaz Albornoz Neves

O verbete que segue está incluído em 24 Verbetes -Ocidente-,
de Thomaz Albornoz Neves, publicado pela TAN Editorial,
em Sant’Ana do Livramento em 2022.

EUGENIO RICCI MONTALE (Gênova, 1896–Milão, 1981) foi o quinto filho de um pai viúvo, sócio de uma próspera empresa importadora de resinas genovesa. Por motivos de saúde abrevia seus estudos secundários. Termina um curso de contabilidade e passa a cultivar suas vocações. Tem voz de barítono, estuda canto, frequenta as aulas particulares de filosofia e arte da sua irmã Marianna, matriculada em Letras Clássicas. Sua educação é autodidata, eclética e livre de condicionamentos. Dante, Petrarca, Leopardi e D’Annunzio são as referências obrigatórias.

Os verões na casa da família em Monterrosso al Mare serão determinantes para a atmosfera da sua poesia. Áspera e essencial, é a sua terra durante os primeiros anos, época em que prevalecem os sentimentos privados e a contemplação do que o rodeia: a natureza solar mediterrânea, as plantas e os bichos da Ligúria. Contemplação de Meriggiare pallido e assorto, escrito em 1916, o mais antigo entre os poemas do seu livro de estreia, Ossi di Seppia, publicado em Turim no ano de 1925.

            Meriggiare pallido e assorto
            presso un rovente muro d’orto,
            ascoltare tra i pruni e gli sterpi
            schiocchi di merli, frusci di serpi.
            Nelle crepe del suolo o su la veccia
            spiar le file di rosse formiche
            ch’ora si rompono ed ora si intrecciano
            a sommo di minuscole biche.
            Osservare tra frondi il palpitare
            lontano di scaglie di mare
            mentre si levano tremuli scricchi
            di cicale dai calvi picchi.
            E andando nel sole che abbaglia
            sentire con triste meraviglia
            com’è tutta la vita e il suo travaglio
            in questo seguitare una muraglia
            che ha in cima cocci aguzzi di bottiglia.


            Sestear pálido e absorto
            junto ao ardente muro de um horto
            ouvir entre arbustos e sarçais
            pios de melros, silvos das corais
            Nas gretas do solo ou pela urze
            espiar filas de rubinas formigas
            que ora se rompem, ora se cruzam
            em cima de minúsculas espigas
            Olhar entre a folhagem o palpitar
            distante das escamas do mar
            enquanto estrila o canto alto
            das cigarras do monte calvo
            E andando ao sol que abafa
            sentir com triste maravilha
            a vida que existe e que trabalha
            seguindo esta trilha da muralha
            que em cima tem agudos cacos de garrafa

O melancólico idílio da sua juventude na intacta paisagem da Riviera de Cinque Terre é interrompido pela guerra. Após quatro exames médicos, Montale é declarado apto e ingressa na Infantaria em Novara. Durante o curso para suboficial em Parma faz amizade com o poeta Sergio Solmi. Obtém o posto de segundo-tenente e requisita ser enviado ao front. Em uma carta enviada de Parma à Marianna escreve sobre o limbo em que se encontra naquele parêntese da sua vida:

Eu sou amigo do invisível e não levo em conta o que se sente e não se vê, e não acredito e não posso acreditar em tudo aquilo que se toca e que se vê.

Em Vallarsa participa de diversas ações de reconhecimento. A descrição que mais tarde fará do seu estado diante da iminência da batalha reafirma a mesma sensibilidade amortecida.

Não tenho memória dessa guerra. Acredito que a intervenção foi um erro. O que fiz ainda está confuso: foi o que tentei explicar a Parise. Segundo ele, quem vai para a guerra não deve atirar. Mas quem está em uma batalha não tem nenhum sentido de violência, não a percebe, não sabe o que está fazendo.

Depois da ofensiva austríaca, os italianos reagem pelos planaltos de Folgaria e Lavarone na fronteira com o império Austro-húngaro. Em abril de 1917, Montale está acampado em uma gruta encravada no rochedo sobre o rio Leno, à espera da passagem do 72.º regimento de infantaria, a chamada Brigata Puglie, que lidera o contra-ataque.

Abaixo havia um rio, o Leno; o vale chamava-se Valmorbia, mas estávamos na metade da encosta, entre as rochas, porque o fundo era inabitável. Atiravam naquele abismo um pouco de tudo: destroços, bombas, cadáveres, mulas. As recordações mais inesquecíveis são as de certas noites, com bom tempo, que passei deitado na entrada da minha gruta. Com a lua parecia que o vale zarpava. Eu ouvia o Leno resmungando com a voz rouca. Um foguete era lançado e lacrimava no ar. E de vez em quando, chegavam pisadas desconhecidas, cheirava acre: eram raposas de visita. Então, sem que se percebesse, amanhecia.

Reestruturado em três quartetos, este depoimento seria a única menção aos tempos da guerra entre os poemas de Ossi di Seppia.

            Valmorbia, discorrevano il tuo fondo
            fioriti nuvoli di piante agli àsoli.
            Nasceva in noi, volti dal cieco caso,
            oblio del mondo.

            Tacevano gli spari, nel grembo solitario
            non dava suono che il Leno roco.
            Sbocciava un razzo su lo stelo, fioco
            lacrimava nell’aria.

            Le notti chiare erano tutte un’alba
            e portavano volpi alla mia grotta.
            Valmorbia, un nome – e ora nella scialba
            memoria, terra dove non annotta.


            Valmorbia, passavam em teu fundo
            floridas nuvens de plantas na ventania
            Na ronda do cego acaso, em nós nascia
            o esquecimento do mundo

            Silenciavam os tiros, no colo ermo
            se ouvia apenas o rouco Leno
            Da varinha sumia no ar a estrela
            lacrimosa de um cometa

            Cada noite era um céu que alvorece
            e trazia raposas à minha gruta
            Valmorbia, um nome – e na muda
            memória agora, terra onde não escurece

Foi dispensado em 1920 e vive entre Monterrosso al Mare e Gênova. Frequenta tertúlias e cafés literários onde convive com Camilo Sbarbaro cuja poesia melódica e crepuscular, mas reativa à retórica de Carducci e D’Annunzio, lhe influencia. São anos em que Montale frequenta bibliotecas públicas e aprende idiomas. Contudo, o convívio intelectual na provinciana Gênova não o resgata do desânimo. Seu estado de angústia e debilidade emocional lhe parece permanente. Cabe mencionar que o poeta não teve um emprego formal antes dos 30 anos e que graças à opressão desse ócio existencial pôde lapidar obras-primas como a que segue.

            Spesso il male di vivere ho incontrato
            era il rivo strozzato che gorgoglia
            era l’incartocciarsi della foglia
            riarsa, era il cavallo stramazzato.

            Bene non seppi, fuori del prodigio
            che schiude la divina Indifferenza:
            era la statua nella sonnolenza
            del meriggio, e la nuvola, e il falco alto levato.


            Tanto tive o mal da vida ao lado
            era o arroio estancado que borbulha
            era a folha que se embrulha
            requeimada, era o cavalo estatelado

            Do Bem não soube, além do prodígio
            que revela a divina Indiferença
            era a estátua na sonolência
            do meio-dia, e a nuvem, e alto o falcão içado

Em carta da época a Solmi, Montale lamenta a sua condição:

A insônia, constituição débil, e psicologia em nada envolvida na vida diária, é o que me aflige faz anos, tornando-me incapaz para a vida prática e para a vida intelectual. Em setembro vou procurar emprego em Gênova (em algum banco), esperando não ficar lá toda a vida. Não sei se resistiria uma vidinha do gênero, posso até duvidar, o que não posso mais fazer é permanecer decorosamente desocupado. Concretamente, ando no fio da navalha: nem literato, nem homem prático.

Que a vida não tenha sentido nem a identidade unidade são certezas confirmadas naqueles dias pela leitura de Giuseppe Renzi, o excêntrico e cético filósofo veronês. Já a sua estranheza em relação ao mundo e a intuição poética da realidade fragmentada estavam respaldadas pela leitura de Schopenhauer. Em uma das respostas na sua Entrevista Imaginária, publicada na revista La Rassegna Letteraria (n.1, janeiro 1946), complementa:

Vivia em uma redoma de vidro sentindo que estava perto de algo essencial. Um véu sutil, um fio me separava do quid definitivo. A expressão absoluta teria sido a quebra desse véu, desse fio: uma explosão, o fim do engano do mundo como representação.

Montale acusa o momento em que cai a cortina da representação e a realidade falseia em Forse un mattino, poema de julho de 1923. O vislumbre, entretanto, não é exclusivo. Dez anos antes, em Harvard, Eliot descreve a mesma experiência de atemporalidade como a communion with the Divine or you may call it temporary crystallization of the mind e escreve os versos de Silence1, poema que só seria publicado em uma reunião de inéditos de juventude em 1996. Ou em Vacillation IV2, Yeats situa por volta de 1915 uma revelação parecida, no seu caso de natureza solar.

            Forse un mattino andando in un’aria di vetro,
            arida, rivolgendomi, vedrò compirsi il miracolo:
            il nulla alle mie spalle, il vuoto dietro
            di me, con un terrore di ubriaco.

            Poi come s’uno schermo, s’accamperanno di gitto
            Alberi case colli per l’inganno consueto.
            Ma sarà troppo tardi; ed io me n’andrò zitto
            Tra gli uomini che non si voltano, col mio segreto.


            Talvez de manhã andando em um ar de vidro
            árido, voltando-me, eu veja o milagre feito
            às minhas costas, o vazio desfeito
            em nada, com um terror de entorpecido

            Então, como em um painel, de repente
            árvores casas montes retomam seu enredo
            Mas já será tarde e eu irei silente
            entre os que não se voltam, com meu segredo

O título Ossos de Sépia alude a um pequeno molusco que deixa de rastro na água sua tinta secretada. A mancha diluindo evoca a fragilidade do poeta e a fugacidade do que ele faz. É improvável que ao buscar um sentido para si e para aquele conturbado período do pós-guerra, Montale pretendesse premeditar uma das mais vigorosas respostas que a poesia daria ao seu tempo. Apesar disso, a voz do poema Non chiederci la parola responde com intensidade pela sua geração.

            Non chiederci la parola che squadri da ogni lato
            l’animo nostro informe, e a lettere di fuoco
            lo dichiari e risplenda come un croco
            perduto in mezzo a un polveroso prato.

            Ah l’uomo che se ne va sicuro,
            agli altri ed a se stesso amico,
            e l’ombra sua non cura che la canicola
            stampa sopra uno scalcinato muro!

            Non domandarci la formula che mondi possa aprirti,
            sì qualche storta sillaba e secca come un ramo.
            Codesto solo oggi possiamo dirti,
            ciò che non siamo, ciò che non vogliamo.


            Não nos peças a palavra que moldure cada lado
            do nosso ânimo informe, e com letras de fogo
            o declare e fulgure como o açafrão
            perdido no meio do campo empoeirado

            Ah, o homem que parte seguro
            dos outros e de si amigo,
            e não cuida que o mormaço grava
            a sua sombra no descascado muro

            Não nos peças a fórmula que te abra mundos
            sim alguma sílaba torta e seca como um ramo
            Só podemos hoje dizer-te a fundo
            o que não somos, o que não desejamos

Estes impressionantes primeiros poemas projetam um tempo imóvel onde a realidade é um simulacro. A atmosfera solar, litorânea, enquadra a angústia e cria uma harmonia entre opostos. Montale, como de resto os demais poetas destes verbetes, escreve sobre a experiência imediata e dela extrai as imagens de um mundo que só tem sentido no universo criado por seus versos.

            Gloria del disteso mezzogiorno
            quand’ombra non rendono gli alberi,
            e più e più si mostrano d’attorno
            per troppa luce, le parvenze, falbe.

            Il sole, in alto, – e un secco greto.
            Il mio giorno non è dunque passato:
            l’ora più bella è di là dal muretto
            che rinchiude in un occaso scialbato.

            L’arsura, in giro; un martin pescatore
            volteggia s’una reliquia di vita.
            La buona pioggia è di là dallo squallore,
            ma in attendere è gioia più compita.


            Glória do vasto meio-dia
            quando a sombra some do arvoredo
            e por tanta luz tudo se via
            em torno mais e mais dourado

            O sol a pino – e um leito seco
            Meu dia, portanto, não é passado
            a hora mais bela está além do beco
            que encerra um poente caiado

            Mormaço, um martim-pescador na altura
            ronda uma relíquia de vida
            A boa chuva está além da desventura
            mas na espera a alegria é mais viva

Ossi di Seppia possui a continuidade subjetiva de uma narrativa moderna ligada, senão à história do autor, ao olhar que o autor tem sobre os acontecimentos do seu cotidiano. Do mergulho de uma jovem no mar o poeta constrói uma elegia -hoje clássica- sobre a tensão entre a exuberância da cena e o seu olhar platônico. A musa é Esterina Rossi, genovesa que Montale conhece durante o verão de 1923 também em Monterroso. O poema é Falsete.

            Falsetto

            Esterina, i vent’anni ti minacciano,
            grigiorosea nube
            che a poco a poco in sé ti chiude.
            Ciò intendi e non paventi.
            Sommersa ti vedremo
            nella fumea che il vento
            lacera o addensa, violento.
            Poi dal fiotto di cenere uscirai
            adusta più che mai,
            proteso a un’avventura più lontana
            l’intento viso che assembra l’arciera Diana.
            Salgono i venti autunni,
            t’avviluppano andate primavere;
            ecco per te rintocca
            un presagio nell’elisie sfere.
            Un suono non ti renda
            qual d’incrinata brocca percossa!;
            io prego sia
            per te concerto ineffabile
            di sonagliere.

            La dubbia dimane non t’impaura.
            Leggiadra ti distendi
            sullo scoglio lucente di sale
            e al sole bruci le membra.
            Ricordi la lucertola
            ferma sul masso brullo;
            te insidia giovinezza,
            quella il lacciòlo d’erba del fanciullo.
            L’acqua è la forza che ti tempra,
            nell’acqua ti ritrovi e ti rinnovi:
            noi ti pensiamo come un’alga, un ciottolo,
            come un’equorea creatura
            che la salsedine non intacca
            ma torna al lito più pura.

            Hai ben ragione tu! Non turbare
            di
ubbie il sorridente presente.
            La tua gaiezza impegna già il futuro
            ed un crollar di spalle
            irocca i fortilizi
            del tuo domani oscuro.
            T’alzi e t’avanzi sul ponticello
            esiguo, sopra il gorgo che stride:
            il tuo profilo s’incide
            contro uno sfondo di perla.
            Esiti a sommo del tremulo asse,
            poi ridi, e come spiccata da un vento
            t’abbatti fra le braccia
            del tuo divino amico che t’afferra.

            Ti guardiamo noi, della razza
            di chi rimane a terra.


            Falsete

            Esterina, os vinte anos te ameaçam
            rósea-plúmbea nuvem
            que pouco a pouco te encerra
            Tu o entendes e não temes
            Imersa te veremos
            na bruma que o vento
            açoita ou adensa, violento
            Da lufada de cinzas sairás
            mais ardente que nunca,
            disposta a uma ventura mais distante
            a face audaz que lembra a arqueira Diana
            Vinte outonos emergem
            te envolvem passadas primaveras
            e eis que por ti ressoa
            um presságio nas elísias esferas
            Não te ressoe
            como um trincado cântaro percutido
            Antes seja
            para ti inefável concerto
            de guizos

            O duvidoso amanhã não te intimida.
            Com graça te alongas
            na rocha brilhante de sal
            e ao sol bronzeias a pele
            Lembras o lagarto
            imóvel na pedra árida
            a ti, embosca a juventude
            a ela, o laço de pasto do menino

            A água é a força que te molda
            na água te reencontras e renovas
            em ti pensamos como um seixo, alga
            equórea criatura
            que a maresia não impregna
            e à orla torna mais pura

            Tens toda a razão! Não turvar
            com caprichos o sorridente presente
            A tua alegria já penhora o futuro
            e um dar de ombros
            derruba as fortalezas
            do teu amanhã obscuro
            Te ergues e avanças pelo estreito
            pontilhão, sobre a voragem que estronda
            o teu perfil se incrusta
            em um fundo de pérola
            No alto da trêmula prancha hesitas
            então sorrindo, como que descolada pelo vento
            te deixas cair nos braços
            do teu divino amigo que te aferra

            Te olhamos nós, da raça
            de quem fica na terra

Há em Ossi si Seppia poemas dirigidos a um interlocutor genérico, um “tu” que tanto pode ser o próprio autor interpelando a si mesmo quanto o eventual leitor. A densidade das composições é moderada pelo rigor formal e pela concisão expressiva que se tornariam marcas da aridez montaliana.

            Parli e non riconosci i tuoi accenti.
            La memoria ti appare dilavata.
            Sei passata e pur senti
            la tua vita consumata.

            Ora, che avviene?, tu riprovi il peso
            di te, improvvise gravano
            sui cardini le cose che oscillavano,
            e l’incanto è sospeso.

            Ah qui restiamo, non siamo diversi.
            Immobili così. Nessuno ascolta
            la nostra voce più. Così sommersi
            in un gorgo d’azzurro che s’infolta.


            Falas e desconheces teus acentos
            A memória te parece diluída
            Passaste e sentes, por momentos
            a tua vida consumida

            Agora, o que virá? Provas teu peso
            outra vez, de repente entrava
            nos eixos tudo o que oscilava
            e o encanto está suspenso

            Aqui ficamos. Não somos diversos
            Imóveis assim. Mais ninguém pensa
            o que dizemos. Assim imersos
            numa voragem de azul que se adensa

Além do prestígio por Ossi di Seppia, seu artigo Homenagem a Italo Svevo tem o mérito de resgatar do ostracismo o escritor triestino. É o momento da afirmação de Mussolini. E apesar de ter assinado Il Antimanifesto promovido por Benedetto Croce contra o regime em 1925, Montale foi desde o começo rotulado de ser um antifascista existencial, aristocrático e esnobe. Na realidade, o conceito que tem do seu ofício é mais mundano. Considera que o poeta deve viver entre os demais e subsistir, se possível, fora do seu meio. Na citada Entrevista Imaginária dirá:

A poesia é uma das tantas realidades da vida, Não acredito que um poeta se encontre acima de outro homem que exista verdadeiramente, que seja alguém… A arte é uma forma de vida de quem, na verdade, não vive: uma compensação ou uma suplência. Isto, contudo, não justifica nenhuma torre de marfim: um poeta não deve renunciar à vida. É a vida que se encarrega de escapar dele.

Gênova fica pequena. Em 1926, transfere-se à Florença empregado pelo editor Bemporad e em 29 assume como diretor do Gabinetto Vieusseux, o instituto de cultura municipal.

Procurava viver em Florença apartado, como um estrangeiro, um Browning, mas não contava com as manobras da autoridade feudal por parte de quem me empregava. De resto, eu seguia dentro da mesma redoma de vidro, com a diferença que agora eu sabia que ela jamais seria quebrada; e temia que as minhas antigas questões dualistas entre lírica e comentário, escrever poesia e viver para provocar o impulso poético (contraste que, com presunção juvenil, tinha percebido também em Leopardi) persistia seriamente em mim.

No início da década de 1930, a poeta e conferencista norte-americana Irma Brandeis, leitora de Ossi di Seppia, encontra Montale durante uma visita de verão à Toscana. Irma se tornaria a Clizia dos livros Le Occasioni e La Bufera e Altro, musa de poemas como La frangia dei Capelli, Mottetti, Due nel Crepusculo, entre muitos outros.

O romance termina quando Montale desiste de emigrar para os eua no início da guerra. Em carta à Irma, alega ter sido impedido de partir por duas tentativas de suicídio de Drusilla Tanzi, sua amante desde o final dos anos 20. Drusilla é a Mosca de Xênia e Satura, companheira de toda a vida e onze anos mais velha, com quem Montale se casaria em 1962 depois que ela viuvou do crítico de arte Matteo Marangoni.

O poeta é vagaroso, diz escrever somente quando visitado. O fato é que reelabora cada verso até esgotar as suas variações. Seu segundo livro, Le Occasioni, seria publicado somente em 1939, um ano depois que a recusa em filiar-se no pnf provocasse a sua demissão do Gabinetto Visseaux. A partir de então mantém-se com traduções e colaborações em revistas literárias como Campo di Marte e Prospettive.

Le Occasioni repete o fio narrativo de Ossi di Seppia com a diferença de que aqui o destinatário do discurso é a presença coletiva ameaçada pela história. No lugar da atmosfera solar, o leitor encontra a sombra do fascismo. À oscura primavera Montale oferece Epicuro, Epiteto e Marco Aurélio. Todo o fatalismo estoico que a época exige está envolto em uma linguagem enigmática que se fecha para reagir à censura e ao controle da cultura. Em oposição ao discurso direto do futurismo, da propaganda nacionalista e da doutrinação ideológica, os poetas herméticos oferecem uma densidade original.

            La canna che dispiuma
            mollemente il suo rosso
            flabello a primavera;
            la rèdola nel fosso, su la nera
            correntìa sorvolata di libellule;
            e il cane trafelato che rincasa
            col suo fardello in bocca,

            oggi qui non mi tocca riconoscere;
            ma là dove il riverbero più cuoce
            e il nuvolo s’abbassa, oltre le sue
            pupille ormai remote, solo due
            fasci di luce in croce.
            E il tempo passa.


            O bambu que despluma
            suavemente o seu rubro
            leque na primavera
            a senda no fosso, sobre a negra
            correnteza sobrevoada por libélulas
            e o cão ofegante que volta à casa
            com seu fardo na boca

            hoje aqui não me toca reconhecer
            mas lá onde o revérbero efervesce
            e a nuvem descende, além das suas
            pupilas já remotas, apenas duas
            faixas de luz em cruz
            E o tempo passa

A estética de Le Occasioni é imediatamente compreendida e celebrada. De acordo com Gianfranco Contini, em Montale não-poesia e poesia, ou seja, os fatos e a sua estetização, não são contíguos, mas interdependentes. Os collages poéticos são elaborados com recordações, uma fotografia (as pernas de Dora Markus), cenas instantâneas de paisagens da Ligúria e inserções de referências soltas decifráveis apenas pelo próprio poeta. Cada elemento objetivo, os pedregais, o mar, o cais, uma pulseira ou o som estridente no espaço servem para recriar a sua dimensão subjetiva, emocional e misteriosa. Em outros poemas, como a série dos chamados Motetos, Montale se apoia na estrutura musical de peças breves de Debussy ou de Ravel. O universo é claustrofóbico, mas intensamente poético.

            De Mottetti


            Lo sai: debbo riperderti e non posso.
            Come un tiro aggiustato mi sommuove
            ogni opera, ogni grido e anche lo spiro
            salino che straripa
            dai moli e fa l’oscura primavera
            di Sottoripa.

            Paese di ferrame e alberature
            a selva nella polvere del vespro.
            Un ronzìo lungo viene dall’aperto,
            strazia com’unghia i vetri. Cerco il segno
            smarrito, il pegno solo ch’ebbi in grazia
            da te.
            E l’inferno è certo.


            Il saliscendi bianco e nero dei
            balestrucci dal palo
            del telegrafo al mare
            non conforta i tuoi crucci su lo scalo
            né ti riporta dove più non sei.

            Già profuma il sambuco fitto su
            lo sterrato; il piovasco si dilegua.
            Se il chiarore è una tregua
            la tua cara minaccia la consuma.

            De Motetos


            Tu sabes: devo perder-te outra vez e não posso
            Como um tiro certo me estremece
            cada obra, cada grito, e também o sopro
            salino que transborda
            o quebra-mar e torna escura a primavera
            de Sottoripa

            Lugar de entulho e de mastreações
            agrestes na poeira do poente
            Um longo zunido vem do aberto
            e estraçalha como unha no vidro. Busco o sinal
            perdido, único penhor do apreço que tive
            de ti
            E o inferno é certo


            O sobe e desce branco e preto
            dos postes de madeira
            do telégrafo à beira-mar
            não conforta no cais o teu pesar
            nem te devolve a não sei mais onde

            Já perfuma o denso sabugueiro
            no aterro; o aguaceiro passa
            Se a claridade é uma trégua
            a consome tua afável ameaça

Em Le Occasioni, Irma Brandeis, a Clizia, é retratada como um pássaro migratório ou na forma de um lobo querido pelo autor. Outras vezes, transcende a condição humana para tornar-se uma deusa primitiva dotada de intensos poderes eróticos. Ou, como  em La frangia dei capelli, está associada a um anjo visitante capaz de prometer um sentido à vida do poeta. Promete, mas não entrega.

            La frangia dei capelli

            La frangia dei capelli che ti vela
            la fronte puerile, tu distrarla
            con la mano non devi. Anch’essa parla
            di te, sulla mia strada è tutto il cielo,
            la sola luce con le giade ch’ài
            accerchiate sul polso, nel tumulto
            del sonno la cortina che gl’indulti
            tuoi distendono, l’ala onde tu vai,
            trasmigratrice Artemide ed illesa,
            tra le guerre dei nati-morti; e s’ora
            d’aeree lanugini s’infiora
            quel fondo, a marezzarlo sei tu, scesa
            d’un balzo, e irrequieta la tua fronte
            si confonde con l’alba, la nasconde.


            A franja do cabelo

            A franja do cabelo que encobre
            a face pueril, tu afastá-la
            com a mão não deves. Também ela fala
            de ti, no meu caminho está o céu inteiro
            a luz única dos jades com que
            rodeaste teu pulso, no tumulto
            do sono a cortina que os indultos
            teus estendem, a asa com que vais
            migrante Artemisa, ilesa entre
            as guerras dos natimortos, e se agora
            de aéreas penugens se enflora
            tal fundo, a jaspeá-lo estás tu, descendo
            de um salto, tua face inquieta onde
            se funde com a aurora, a esconde

Como em Dante e seu dolce stil novo, a poesia amorosa aqui também possui uma dimensão espiritual. É, porém, uma poesia que remete ao clássico para subvertê-lo. Sua densidade ecoa a leitura de Browning, de Baudelaire e de Eliot. O universo transita entre a realidade e o sonho, sem durar nem em um, nem no outro. Ou, nos próprios termos do poeta, um universo que paira entre a imanência e a transcendência.

            Due nel crepusculo

            Fluisce fra te e me sul belvedere
            un chiarore subacqueo che deforma
            col profilo dei colli anche il tuo viso. Sta
            in un fondo sfuggevole, recisoda te
            ogni gesto tuo; entra senz’orma, e
            sparisce, nel mezzo che ricolma ogni
            solco e si chiude sul tuo passo:
            con me tu qui, dentro quest’aria
            scesa a sigillare
            il torpore dei massi.
            Ed io riverso
            nel potere che grava attorno, cedo
            al sortilegio di non riconoscere
            di me più nulla fuor di me; s’io levo
            appena il braccio, mi si fa diverso
            ratto, si spezza su un cristallo, ignota
            e impallidita sua memoria, e il gesto
            già più non m ‘appartiene;
            se parlo, ascolto quella voce attonito,
            scendere alla sua gamma più remota
            o spenta all’aria che non la sostiene.

            Tale nel punto che resiste all’ultima
            consunzione del giorno
            dura lo smarrimento; poi un soffio
            risolleva le valli in un frenetico
            moto e deriva dalle fronde un tinnulo
            suono che si disperde
            tra rapide fumate e i primi lumi
            disegnano gli scali.
            … le parole
            tra noi leggere cadono. Ti guardo
            in un molle riverbero. Non so
            se ti conosco; so che mai diviso
            fui da te come accade in questo tardo
            ritorno. Pochi istanti hanno bruciato
            tutto di noi: fuorché due volti, due
            maschere che s’incidono, sforzate, di
            un sorriso.


            Dois no crepúsculo

            Entre nós flui no mirante
            uma submersa claridade que distorce
            o perfil dos montes e a tua face
            Contra um fundo fugidio, cada gesto teu
            de ti se separa; surge sem molde
            e some, no meio que preenche cada
            sulco e se fecha a tua passagem
            tu aqui comigo, neste ar
            que desce a selar
            o torpor das rochas
            E eu derramado
            no poder que pesa em torno, cedo
            ao sortilégio de não reconhecer
            nada mais de mim fora de mim, se ergo
            o braço apenas, o gesto se faz outro
            estilhaçado cristal, tão ignota
            e esvaída a sua memória, e o gesto
            já não me pertence
            se falo, ouço aquela voz atônito
            descer a sua escala mais remota
            ou apagada no ar que não a retém
            Até o instante em que resiste o último
            exaurir do dia
            dura a perplexidade, depois um sopro
            reergue o vale em um frenético
            movimento e das folhagens retine
            um som que se dispersa
            entre breves baforadas e as primeiras luzes
            desenham as docas
            as palavras
            caem leves entre nós. Em um macio
            resplandecer te olho. Não sei
            se te conheço, sei que jamais estive
            tão separado de ti como neste tardio
            retorno. Poucos instantes queimaram
            tudo de nós, salvo dois rostos, duas
            máscaras que se entalham, forçadas
            um sorriso

Dispensado do serviço militar por um médico admirador de Ossi di Seppia que atestou sua baixa por “neurastenia constitucional”, permanece em Florença durante a Segunda Guerra e escreve os quinze poemas de Finisterre, coleção que, para escapar da censura, Contini contrabandeou para a Suíça e publicou em duas edições sucessivas de modestas tiragens em Lugano.

Serenata indiana pertence a Finisterre, exploração estilística considerada por Montale petrarquesca:

            Serenata indiana

            E’ pur nostro il disfarsi delle sere.
            E per noi è la stria che dal mare
            sale al parco e ferisce gli aloè.

            Puoi condurmi per mano, se tu fingi
            di crederti con me, se ho la follia
            di seguirti lontano e ciò che stringi,

            ciò che dici, mi appare in tuo potere.


            Fosse tua vita quella che mi tiene
            sulle soglie – e potrei prestarti un volto,
            vaneggiarti figura. Ma non è,

            non è così. Il polipo che insinua
            tentacoli d’inchiostro tra gli scogli
            può servirsi di te. Tu gli appartieni

            e non lo sai. Sei lui, ti credi te.


            Serenata indiana

            O poente das tardes é nosso ainda
            E para nós é a estria que do mar
            sobe ao parque e fere os aloés

            Podes levar-me pela mão, se finges
            crer que estás comigo, se desatino
            em seguir-te longe e o que cinges

            o que dizes, parece em teu poder


            Fosse a tua vida o que me mantêm
            nos umbrais – e pudesse dar-te um rosto
            divagar tua figura. Mas não é

            não é assim. O polvo que insinua
            tentáculos de tinta entre os escolhos
            pode servir-se de ti. Tu lhe pertences

            sem saber. És ele, e te crês tu

Depois da guerra, Drusilla Tanzi recupera-se de uma grave doença óssea. Montale se inscreve-se no Azione, partido político socialista liberal, e participa do Comitê para a Cultura e a Arte. Mas o partido se dissolve em 1947. Dedica-se durante uma temporada à pintura. Em 48, parte para Milão convidado para fazer a crítica musical do Il Corrieri d’Informazione e passa a escrever sobre literatura anglo-americana na terceira página do Il Corriere de la Sera. Graças ao jornalismo reuniria material para a publicação de dois livros de prosa, Farfalla di Dinard (1956), com memórias de infância e juventude, e Fuori di Casa (1969), com artigos sobre as viagens ao Oriente Médio, Grécia, Portugal, Espanha, Inglaterra, França e Estados Unidos feitos sob encomenda para o jornal. Montale também teria a oportunidade de cobrir o Teatro alla Scala e espetáculos musicais nas principais salas de concertos da Europa.

Milão e Il Corriere de la Sera possibilitam que seus escritos alcancem gradativamente uma audiência nacional. No final dos anos 50, o poeta é já uma figura célebre em toda a Itália. Nomeado Doutor Honoris Causa em Roma, Milão e Cambridge, recebe o prestigioso prêmio Feltrinelli da Academia de Lincei, o primeiro dos tantos reconhecimentos que receberia pelos seus sete livros de poemas. Finisterre é uma das pedras angulares do terceiro deles, La bufera e Altro (A Tormenta e Outros Poemas), publicado em 1956. Sobre a relação de La bufera e Altro com a Segunda Guerra declarou:

A tormenta é a da guerra depois daquela ditadura… Mas é também a guerra cósmica, de sempre e de todos. […] O tema da minha poesia é o da condição huumana considerada em si mesma; não este ou aquele acontecimento histórico. O que não significa distanciar-se do que ocorre no mundo, significa a consciência e a vontade de não substituir o essencial pelo transitório.

            La bufera

                        Les princes n’ont point dýeux pour voir ces grand’s
                        merveilles, leurs mains ne servent plus q’uà nous persecuter.
                        Agripe D’Aubigné, À Dieu

            La bufera che sgronda sulle foglie
            dure della magnolia i lunghi tuoni
            marzolini e la grandine,
            (i suoni di cristallo nel tuo nido
            notturno ti sorprendono, dell’oro
            che s’è spento sui mogani, sul taglio
            dei libri rilegati, brucia ancora
            una grana di zucchero nel guscio
            delle tue papebre)

            il lampo che candisce
            alberi e muro e li sorprende in quella
            eternità d’istante – marmo manna
            e distruzione – ch’entro te scolpita
            porti per tua condanna e che ti lega
            più che l’amore a me, strana sorella, –
            e poi lo schianto rude, i sistri, il fremere
            dei tamburelli sulla fossa fuia,
            lo scalpicciare del fandango, e sopra
            qualche gesto che annaspa…
            Come quando
            ti rivolgesti e con la mano, sgombra
            la fronte dalla nube dei capelli

            mi salutasti – per entrar nel buio.


            A tormenta

                        Les princes n’ont point dýeux pour voir ces grand’s
                        merveilles, leurs mains ne servent plus q’uà nous persecuter.
                        Agripe D’Aubigné, À Dieu

            A tormenta que entorna sobre as folhas
            duras da magnólia os trovões
            de março e o granizo
            (os sons de cristal no teu ninho
            noturno te surpreendem, do ouro
            que se apagou dos mognos, no entalhe
            dos livros encadernados, arde ainda
            um grão de açúcar na concha
            das tuas pálpebras)

            o relâmpago que incandesce
            árvores e muros e os surpreende naquela
            eternidade de instante – mármore maná
            e destruição – que levas esculpida em ti
            para tua punição e que te une
            mais que o amor a mim, estranha irmã –
            e depois o rude estrondo, os sistros, a percussão
            dos tamborins na fossa obscura
            o sapateio do fandango, sobre o qual
            algum gesto se debate
            Como quando
            te voltaste e com a mão, livre
            a face da nuvem dos cabelos

            me acenaste – para entrar no escuro

Em La bufera e Altro Irma Brandeis será a ausência essencial pela última vez. Também chamada de Iride (Arco-íris) por unir o céu e a terra, o universo onírico e sua dimensão mística. Irma é a musa a quem Montale transmite devoção e abandono nos versos de Beira-Mar e Rumo a Finistère.

            Lungomare

            Il soffio cresce, il buio è rotto a squarci,
            e l’ombra che tu mandi sulla fragile
            palizzata s’arriccia. Troppo tardi

            se vuoi esser te stessa! Dalla palma
            tonfa il sorcio, il baleno è sulla miccia,
            sui lunghissimi cigli del tuo sguardo.


            Beira-mar

            A brisa sopra, rasga o escuro em farrapos
            e a sombra que lanças sobre a frágil
            cerca encrespa. Tarde demais

            se queres ser tu mesma! Da palmeira
            escorre o rato, o relâmpago no pavio
            sobre os longuíssimos cílios do teu olhar


            Verso finistère

            Col bramire dei cervi nella piova
            d’Armor l’arco del tuo ciglio s’è spento
            al primo buio per filtrare poi
            sull’intonaco albale dove prillano
            ruote di cicli, fusi, razzi, frange
            d’alberi scossi. Forse non ho altra prova
            che Dio mi vede e che le tue pupille
            d’acquamarina guardano per lui.


           Rumo à finistère

            Com o bramido de cervos na chuva
            de Armor o arco do teu cílio se apagou
            ao primeiro breu para depois filtrar
            no alvor caiado onde giram
            rodas de bicicletas, piões, foguetes, franjas
            de árvores fustigadas. Talvez não tenha outra prova
            que Deus me vê e que as tuas pupilas
            de água-marinha olham por ele

Em Pequeno Testamento, que integra a parte final de La bufera e Altro, já há sinais da transição para a linguagem coloquial da segunda fase montaliana, a da série Xênia, de 1966.

            Piccolo testamento

            Questo che a notte balugina
            nella calotta del mio pensiero,
            traccia madreperlacea di lumaca
            o smeriglio di vetro calpestato,
            non è lume di chiesa o d’officina
            che alimenti
            chierico rosso, o nero.
            Solo quest’iride posso
            lasciarti a testimonianza
            d’una fede che fu combattuta,
            d’una speranza che bruciò più lenta
            di un duro ceppo nel focolare.
            Conservane la cipria nello specchietto
            quando spenta ogni lampada
            la sardana si farà infernale
            e un ombroso Lucifero scenderà su una prora
            del Tamigi, dell’Hudson, della Senna
            scuotendo l’ali di bitume semi-
            mozze dalla fatica, a dirti: è l’ora.
            Non è un’eredità, un portafortuna
            che può reggere all’urto dei monsoni
            sul fil di ragno della memoria,
            ma una storia non dura che nella cenere
            e persistenza è solo l’estinzione.
            Giusto era il segno: chi l’ha ravvisato
            non può fallire nel ritrovarti.
            Ognuno riconosce i suoi: l’orgoglio
            non era fuga, l’umiltà non era
            vile, il tenue bagliore strofinato
            laggiù non era quello di un fiammifero.


            Pequeno testamento

            Isto que de noite é lusco-fusco
            no estojo domeu pensamento
            rastro madrepérola de lesma
            ou esmerilho de vidro pisoteado
            não é penumbra de igreja ou da oficina
            que alimente
            clérigo vermelho ou negro
            Somente este arco-íris posso
            deixar-te por testemunho
            de uma fé que foi combatida
            de uma esperança que ardeu mais lenta
            que a dura tora na lareira
            Conserva o pó de arroz no espelhinho
            quando todas as luzes apaguem
            a sardana será infernal
            e um Lúcifer sombrio descerá na orla
            do Tâmisa, do Hudson, do Sena
            batendo asas de betume, alquebradas
            de cansaço, para dizer-te: é hora
            Não é herança, um talismã
            que possa resistir ao choque das monções
            na teia de aranha da memória
            mas uma história que só nas cinzas sobrevive
            e persistência é tão só a extinção
            O sinal era claro, quem o decifrou
            não fracassará em reencontrar-te
            Todos reconhecem os seus, o orgulho
            não era fuga, a humildade não era
            covardia, o tênue fulgor lá embaixo
            não era o de um fósforo riscado

A nomeação, em 1967, a senador vitalício pelo presidente G. Saragat, lhe traz certa estabilidade financeira. Em 1971, publica pela Mondadori sua quinta reunião de poesia, Satura. Nesta coleção, que inclui sua produção da década anterior, os poemas mantêm a ambiguidade característica, incluindo os variados modelos estilísticos e as digressões meditativas próprias da sua voz inconfundível. As variações passam da rima ao verso livre em uma mesma estrofe, facetando o estilo ao mesmo tempo em que o renova. São poemas de maturidade, céticos, que desdenham da religião, do comunismo e alertam sobre o risco que o próprio poeta corre de recair em um solipsismo já rotulado de aristocrático. Seja como for, não abre mão do verso elíptico, sua marca de origem, relaxado agora pela sátira e pela oralidade. A morte de Drusilla modula esta etapa tardia. Sua falta é onipresente na atmosfera íntima e enlutada criada pelo poeta ao falar do que só ele e a mulher compartilharam em uma espécie de monólogo poético a dois.

            Xenia i
            4
            Avevamo studiato per l’aldila
            un fischio, un segno di riconoscimento.
            Mi provo a modularlo nella speranza
            che tutti siamo gia morti senza saperlo.

            5
            Non ho mai capito se io fossi
            il tuo cane fedele e incimurrito
            o tu lo fossi per me.
            Per gli altri no, eri un insetto miope
            smarrito nel blabla
            dell’alta societa. Erano ingenui
            quei furbi e non sapevano
            di essere loro il tuo zimbello:
            di esser visti anche al buio e smascherati
            da un tuo senso infallibile, dal tuo
            radar di pipistrello.


            Xênia i
            4
            Havíamos combinado para o além
            um assobio, sinal de reconhecimento
            Tento afiná-lo na esperança
            de já estarmos sem saber todos mortos

            5
            Nunca cheguei a saber se eu era
            o teu cão fiel e encatarrado
            ou tu o meu
            Aos outros, não, eras um inseto míope
            perdido no diz-que-diz da alta
            sociedade. Eram ingênuos
            os espertos e ignoravam
            serem eles o teu brinquedo
            de serem vistos no escuro e desmascarados
            por teu senso infalível, por teu
            radar de morcego


            Xenia ii
            3
            L’abbiamo rimpianto a lungo l’infilascarpe,
            il cornetto di latta arrugginito ch’era
            sempre con noi. Pareva un’indecenza portare
            tra i similori e gli stucchi un tale orrore.
            Dev’essere al Danieli che ho scordato
            di riporlo in valigia o nel sacchetto.
            Hedia la cameriera lo buttò certo
            nel Canalazzo. E come avrei potuto
            scrivere che cercassero quel pezzaccio di latta?
            C’era un prestigio (il nostro) da salvare
            e Hedia, la fedele, l’aveva fatto.

            13
            Ho appeso alla mia stanza il dagherròtipo
            di tuo padre bambino: ha più di un secolo.
            In mancanza del mio, così confuso,
            cerco di ricostruire, ma invano, il tuo pedigree.
            Non siamo stati cavalli, i dati dei nostri ascendenti
            non sono negli almanacchi. Coloro che hanno presunto
            di saperne non erano essi stessi esistenti,
            né noi per loro. E allora? Eppure resta
            che qualcosa è accaduto, forse un niente
            che è tutto.


            Xênia ii
            3
            Tanta falta sentíamos da calçadeira
            a latinha enferrujada que estava
            conosco sempre. Parecia absurdo levar
            entre os pertences tal pavoroso objeto
            Deve ter sido no Danieli que esqueci
            de guardá-lo na mala ou na bolsinha
            Hedia, a camareira, o jogou certamente
            ao Canallazzo. E como poderia eu escrever
            que buscassem aquele pedaço de lata?
            Havia um prestígio (o nosso) a ser salvo
            e Hedia, a fiel, o havia salvo

            13
            Pendurei no quarto o daguerreótipo
            de teu pai menino: de mais de um século
            Na falta do meu, tão confuso
            tento refazer teu pedigree, mas é em vão
            Não somos cavalos, os dados dos nossos antepassados
            não estão no almanaque. Aqueles que os
            conheceram não existiam ainda
            nem nós para eles. E então? Mesmo assim parece
            que algo ocorreu, talvez um nada
            que é tudo

Em Satura, e no livro que o continua, Diário de 71 e de 72, Montale está atento à história e discute a função do poeta denunciando a tendência ao unilateralismo político, ironizando as novas vanguardas, satirizando os costumes, a ideia de progresso e a vaidade que habita no conhecimento.

            La storia

            i

            La storia non si snoda
            come una catena
            di anelli ininterrotta.
            In ogni caso
            molti anelli non tengono.
            La storia non contiene
            il prima e il dopo,
            nulla che in lei borbotti
            a lento fuoco.
            La storia non è prodotta
            da chi la pensa e neppure
            da chi l’ignora. La storia
            non si fa strada, si ostina,
            detesta il poco a poco, non procede
            né recede, si sposta di binario
            e la sua direzione
            non è nell’orario.
            La storia non giustifica
            e non deplora,
            la storia non è intrinseca
            perché è fuori.
            La storia non somministra
            carezze o colpi di frusta.
            L
a storia non è magistra
            di niente che ci riguardi.
            Accorgersene non serve
            a farla più vera e più giusta.

            ii
            La storia non è poi
            la devastante ruspa che si dice.
            Lascia sottopassaggi, cripte, buche
            e nascondigli. C’è chi sopravvive.
            La storia è anche benevola: distrugge
            quanto più può: se esagerasse, certo
            sarebbe meglio, ma la storia è a corto
            di notizie, non compie tutte le sue vendette.
            La storia gratta il fondo
            come una rete a strascico
            con qualche strappo e più di un pesce sfugge.
            Qualche volta s’incontra l’ectoplasma
            d’uno scampato e non sembra particolarmente felice.
            Ignora di essere fuori, nessuno glie n’ha parlato.
            Gli altri, nel sacco, si credono
            più liberi di lui.


            A história

            i
            A história não se desfaz
            como uma corrente
            de anéis ininterrupta
            Em todo caso
            muitos anéis não anelam
            A história não contém
            o antes e o depois
            nada que nela crepite
            a fogo lento
            A história não é feita
            por quem a pensa nem
            por quem a ignora. A história
            não abre caminho, se obstina
            detesta o pouco a pouco, não avança
            ou retrocede, muda de lado
            e a sua direção
            não tem horário
            A história não justifica
            e não deplora
            a história não é intrínseca
            porque está de fora
            A história não propina
            carícias nem açoites de fusta
            A história não domina
            nada que lhe diga respeito
            Dar-se conta não a torna
            mais verdadeira e mais justa

            ii
            A história então não é
            a arrasadora patrola que dizem
            Deixa túneis, criptas, tocas
            e esconderijos. Há quem sobreviva
            A história é também benévola: destrói
            tanto quanto pode: se exagerasse, decerto
            seria melhor, mas a história é escassa
            de notícias, não cumpre todas as suas vinganças
            A história rasa o fundo
            como uma rede de arrastão
            com malhas rasgadas e mais de um peixe escapa
            Às vezes se encontra o ectoplasma
            de um que fugiu e não parece particularmente feliz
            Ignora – ninguém lhe fez saber – estar fora
            Os outros, na rede, acreditam
            ser mais livres do que ele

Sua poesia ao final da vida, escrita em um tempo cinzento, foi por ele definida como um sol que esfria. Em Caderno de Quatro anos (1977) seu estilo deriva ao humor velado e à crônica. O poeta deixaria ainda, para serem lançados anualmente a partir de cinco anos da sua morte, 11 envelopes contendo poemas dedicados à Annalisa Cima. O Diario Postumo (Mondadori, 1996) foi traduzido no Brasil pelo mestre Ivo Barroso com a apresentação do italianista Marco Lucchesi.

Poucos poetas foram tão fieis ao seu tempo quanto Montale. Sua atualidade se antecipa, é quase profética, ao revelar o ar da época em um poema, em uma série de poemas ou em um livro. E o fez desde a sua condição pessoal. Mas não por isto, a julgar por seu epitáfio, se exime.

            Non chieggo si ponga su questa
            mia tomba epitaffio gentile
            a dirvi soltanto mi resta:
            – Fui uomo – fui vile  


            Que não se escreva nesta
            sepultura epitáfio gentil
            A dizer-lhes só me resta
            – Fui homem, fui vil

…………………………………………………………….

Notas

1 Silence   Along the city streets / It is still high tide / Yet the garrulous waves of life / Shrink and divide / With a thousand incidents / Vexed and debated – / This is the hour for which we waited – // This is the ultimate hour / When life is justified. /The seas of experience / That were so broad and deep, /  So immediate and steep, / Are suddenly still. // You may say what you will, / At such peace I am terrified. / There is nothing else beside.

2 Vacillation IV   My fiftieth year had come and gone, / I sat, a solitary man, / In a crowded London shop, / An open book and empty cup / On the marble table-top. // While on the shop and street I gazed / My body of a sudden blazed; / And twenty minutes more or less

It seemed, so great my happiness, / That I was blessed and could bless.

P.S. As traduções incluídas no verbete foram feitas em Los Moros, Uruguai, em 1996, com um dicionário do José Mário Pereira e a ele estão dedicadas.

Thomaz Albornoz Neves é poeta, tradutor e editor na TAN editorial.

ENSAIO POESIA

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