FELIZ NATAL, por Cassionei Niches Petry

Eu nasci e cresci numa cidade de colonização alemã no interior do Rio Grande do Sul, Brasil. No imaginário da minha infância, alguns vizinhos alemães mais velhos, que conversavam entre eles na sua língua original, poderiam ter sido nazistas. Muitos, ou todos, na verdade, eram descendentes de europeus e nunca tiveram contato com o partido. No entanto, nós, as crianças, gostávamos de brincar com essa hipótese. Dizíamos, por exemplo, que o Seu Bona, havia lutado na 2ª Guerra. Ele vivia numa propriedade grande, onde éramos proibidos de entrar. Os que se aventuravam em pular a cerca, mesmo que apenas para usar um atalho para chegar mais rápido ao colégio, acabavam eventualmente tendo que fugir dos cachorros ou do próprio dono, que gritava, empunhando uma espingarda, e com seu sotaque alemão:

─ Saiam de minha “proprietate”, seus “curi” de “merta”!

A lenda sobre o Seu Bona tinha um acréscimo interessante. Diziam que ele dormia num caixão, em cuja tampa estava estampada a suástica nazista. Queríamos comprovar essas lendas, mas todas as tentativas esbarravam nos cachorros e no próprio dono e sua arma. Eu, porém, sabia com toda a certeza que era tudo invenção. Eu mesmo, único leitor da turma, inventava essas histórias.

Era véspera de Natal quando o José, o aventureiro, sempre cheio de apetrechos para acampar no mato, disse que seria naquela noite que desvendaríamos o mistério. O velho Bona, que vivia sozinho, por certo estaria dormindo, quem sabe se lembrando das festas da sua infância, e nossos pais estariam distraídos com a ceia e a chegada do Papai Noel. Perto da adolescência, já não ganhávamos mais presentes.

Planejamos tudo meticulosamente. O José planejou, quero dizer. Iríamos na beira do arroio que cortava a propriedade do velho. Se tivéssemos que fugir dos cães, era mais fácil ir por ali, pois eles talvez não atravessariam o córrego. Era o que esperávamos.

No caminho, ainda na rua, cruzamos por um dos tantos Papais Noéis que eram requisitados para distribuir os presentes, agora sabíamos, comprados pelos nossos pais. Segurando um saco ainda sem os presentes, porém, cheio de balas, e sua imprescindível varinha que servia para lanhar as pernas das crianças que não se comportaram durante o ano, ele nos desejou um Feliz Natal com um sotaque alemão. O André, o mais mal-educado da turma, gritou:

─ Vai tomar no cu!

E saímos correndo, enquanto o Papai Noel tentou nos perseguir empunhando a varinha:

─ Vocês me “pacam”, seus “curi” de “merta”!

Acho que somente eu desconfiei daquele sotaque alemão, mas fiquei quieto.

Ao nos aproximarmos da propriedade do velho, seguindo a rota planejada pelo José, fiquei pensando que não o encontraríamos lá. Que aquele velho que imaginávamos ser tão mau por ter sido um nazista, que nos atiçava seus cachorros, que dava tiros para o alto com sua espingarda, estava agora fazendo crianças sorrirem, estava distribuindo balas, estava desejando um “Feliz Natal, ho, ho, ho”.

Nisso percebemos um barulho no mato e depois ouvimos os cachorros latindo.

Fugimos.

Depois disso, desistimos de desvendar o mistério. Eu, com remorso, não alimentei mais a imaginação dos amigos sobre possíveis vizinhos nazistas. O Seu Bona morreu algum tempo depois e sua propriedade virou um loteamento onde várias novas casas foram construídas.

E o Natal já não é mais o mesmo.

Cassionei Niches Petry é Mestre em Letras e professor de Língua Espanhola e Literatura no Ensino Médio. Nasceu e mora em Santa Cruz do Sul – RS. Além de escrever crônicas e críticas literárias para jornais e sites diversos, é autor dos livros de contos “Arranhões e outras feridas” (2012) e“Cacos e outros pedaços” (2017) e dos romances “Os óculos de Paula” (2014) e “Relatos póstumos de um suicida” (2020). Mantém o blog “Uma biblioteca na cabeça (cassionei.blogspot.com).

FICÇÃO

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

%d blogueiros gostam disto: