FLAMINIA COLELLA: ALGUNS POEMAS TRADUZIDOS E UMA ENTREVISTA, por Paulo Damin
Traduzi cinco poemas de Flaminia Colella, poeta italiana até este momento inédita no Brasil. Eles fazem parte do mais novo livro dela, que se chama Guerrafesta (ed. Cartacanta). Na sequência, há uma entrevista exclusiva com Flaminia.
Nota-se logo a postura narrativa da poeta. Seus poemas são cenas. Situações cotidianas que, em versos enxutos e sintaxe exigente, nem sempre parecem nítidas. Talvez, como a própria autora dá a entender na entrevista, a forma poética lhe aparece como a anotação de cenas que poderiam caber em narrativas mais longas e articuladas. O caso é que, muitas vezes, essas notas saem em decassílabo e até rima: fica poesia, sem tirar nem por.
Os versos são apenas aparentemente simples; a complexidade está na estrofe. Flaminia Colella se vale da sintaxe, mais do que do léxico e da morfologia. E quase não usa pontuação, nem repetições: exige que o leitor busque por si o verbo de referência, a preposição e a conjunção necessárias. Às vezes, essa chave sintática está lá atrás, no primeiro verso de uma quadra. Por exemplo:
Reparam todos como ela caminha, bela
a floresta que lhe habita os cabelos
a sacola sobre os ombros como bolsa
que o tempo não lhe está favorecendo
Nesse caso, a leitura pede que se tenha sempre em mente, a cada verso, o segmento Reparam todos.
Mas façam suas próprias leituras. A função do tradutor, aqui, é apenas inaugurar um possível diálogo. Inclusive, um diálogo com outras traduções. Apresento aqui uma primeira abordagem, em que busquei favorecer, em português brasileiro, a métrica e as rimas presentes em italiano, bem como as imagens e narrações dos textos-fonte. Aliás, os poemas originais também são aqui publicados, para que eventualmente alguém se aventure a buscar outras soluções.
I.
A guria quer o aplauso
a janta elegante na sala do trono
a justa homenagem às suas graças
Reparam todos como ela caminha, bela
a floresta que lhe habita os cabelos
a sacola sobre os ombros como bolsa
que o tempo não lhe está favorecendo
A guria diz
vou parir o mundo se quiseres
dar a volta nos oceanos e nos planetas
de novo, sem parar
Mas eles não olham
ou não sabem
Diz ela
dá um desafio pra eu chorar
o salto mortal pra eu sair
do cárcere
Vocês não fazem barulho
reclama
em volta há um silêncio bobo
o poço negro
em que me encontro
os carros, semáforos, o metrô
que dispara na jaula
da terra
não os escuto
grita
não te escuto
atiça-me
se deves vir me assassinar
ou me incendiar
encerra-me
em uma noite ainda clara
se devo ajoelhar-me, o farei
com música doce nas orelhas
Seja violento comigo
urla
me usa como se eu fosse um cachorro
um cego que caça ouro
como um lume na cabeça que pende
e nada mais
Ela
vive e morre neste dia
de novo,
vive e morre neste dia
I.
La ragazza vuole l’applauso
la cena elegante nella sala del trono
il giusto omaggio alle sue grazie
Guardano tutti come cammina, bella
la foresta che le abita i capelli
una busta sulle spalle a mo’ di borsa
che il tempo non le viene così bene
La ragazza dice
partorisco il mondo se lo vuoi
faccio il giro dell’oceano e dei pianeti
ancora, senza fermarmi
Ma loro non guardano
o non sanno
Lei dice
dammi una sfida per cui piangere
il salto mortale per uscire
dal carcere
Non fate abbastanza chiasso
si lamenta
intorno c’è silenzio scemo
il pozzo nero
in cui mi trovo
le macchine, i semafori, la metro
che sfreccia nella gabbia
della terra
non vi sento
urla
non ti sento
accendimi
se devi venire per uccidermi
o incendiarmi
finiscimi
in una sera ancora chiara
se devo inginocchiarmi lo farò
con musica dolce nelle orecchie
Usa violenza su di me
urla
fai uso di me come di un cane
un cieco che cerca l’oro
come un lume sulla testa che pende
e nient’altro
Lei
vive e muore in questo giorno
ancora,
vive e muore in questo giorno
II.
Aparece o sol
sobre minha terra, de manhã
os raios pedem licença para os campos
aos cervos que erguem a cabeça em alerta
como hóspedes estranhos
Chega como sangue
do profundo da boca de fogo
e das águas
Nós não habitamos o tempo
tem tudo, morte nascimento ressurreição
em um dia
Nós não falamos a língua dos mortais
não tem ritmo, cadência que alterne
o respiro cortado e quebrado
somos todos filhos, maridos
esposas que pedem pão e salvação
e ainda mãos que buscam
a fruta, lentamente,
e demoram sobre estofos
preciosos para o inverno
O topo, onde voa o falcão
o bicho sagrado que entoa o canto
nos saúda nas pausas do café
e tu nos encaras com olhos
encantados pela cruz
nos condenas ou absolves?
mais uma vez, o vento
é o que mal e mal escapa do teu hálito
A minha mãe não fica mais pensando
meu pai escuta o tique-taque do relógio
tu nos olhas e aprovas
nesta imperfeição?
nos vês ou condenas
a urtiga que habita a garganta?
II.
Appare il sole
sulla mia terra, di mattina
i raggi chiedono il permesso alle radure
ai cervi che alzano la testa in all’erta
come ospiti estranei
Arriva come sangue
dal profondo della bocca di fuoco
e dalle acque
Noi non abitiamo il tempo
c’è tutto, morte nascita e resurrezione
in un giorno
Noi non parliamo la lingua dei mortali
non c’è ritmo, cadenza che alterni
il respiro tagliato e rotto
ci siamo tutti figli, mariti
mogli che chiedono pane e salvezza
e ancora mani che cercano
la frutta, con lentezza,
e si attardano su stoffe
preziose per l’inverno
La cima, dove vola il falco
la bestia sacra che intona il canto
ci saluta nelle pause del caffè
e te, ci guardi con occhi
incantati dalla croce
ci condanni o ci assolvi?
ancora una volta, il vento
è quello che scappa appena dal tuo fiato
Mia madre non ha pensieri ormai
mio padre ascolta il ticchettio dell’orologio
tu ci guardi e ci ridici
in questa imperfezione?
ci vedi o maledici
l’ortica che abita la gola?
III.
“ÁGUA DE DIA”
Não somos escravos de um tempo predefinido.
O pianista o diz em voz alta
seguindo uma absoluta partitura
Diante da barcaça me repete
não ofendas o fogo que devora
Por perto passam pessoas
estamos sentados à mesa há uma hora
Vai para a praia tu sozinha
hoje que o tempo é destilado de ouro.
Olho como olham os loucos aqui na cidade,
narinas abertas sem flores e a mente quieta.
O tempo se destila em temporal.
Não podíamos imaginá-lo antes assim
o gesto de cabeça reclinada
bebendo a chuva que atinge a colina.
Tem água. E sol. Não inimigos.
Tem todo esse dia esplendente
dos amigos. Os portões que se fecham
pra descansar.
Eu e tu cá estamos como vento.
III.
“ACQUA DI GIORNO”
Non siamo schiavi di un tempo predefinito.
Il pianista lo dice ad alta voce
seguendo un’assoluta partitura
Davanti la barcaccia mi ripete
non offendere il fuoco che divora
Accanto ci passano persone
siamo seduti al tavolo da un’ora
Vattene al mare tu da sola
oggi che il tempo è distillato d’oro.
Guardo come guardano i pazzi qui in città,
le narici aperte di fiori e testa sgombra.
Il tempo è distillato di tempesta.
Non potevamo immaginarlo così prima
il gesto di un capo reclinato
a bere pioggia che investe la collina.
C’è acqua. E sole. Non nemici.
C’è tutta la giornata splendente
degli amici. I cancelli che vengono chiusi
a riposare.
Io e te ci siamo come vento.
IV.
Eu sou a vida
se como fome aberta ando na rua
e tudo é correspondência plena com meu peito
Então te falo do ouro difusamente
rio que escorre
acende as malhas do tempo
do céu ele chega no sol das três
da janela que abre sobre o pinheiral
desta grande casa branca
Não achei que ia ser assim
as horas que beijam relógios malucos
o fio que me amarra a ele firme na mão
todos apaixonados os meus futuros filhos
que não sei se vou ter
mas olha daqui agora comigo o mar que embala
os pensamentos de volta no porto
as ondas não sabem acabar
e o sol não se põe
o bem que nos beija, nos abrange
IV.
Io sono la vita
se come fame aperta giro per strada
e tutto è corrispondenza piena col mio cuore
Allora ti parlo dell’oro diffusamente
fiume che cola
accende le maglie del tempo
dal cielo arriva nel sole delle tre
dalla finestra che apre sulla pineta
da questa grande casa bianca
Non credevo sarebbe stato così
le ore che baciano gli orologi impazziti
il filo che mi lega a lui stretto nella mano
tutti innamorati i miei futuri figli
che non so se avrò mai
ma ora da qui guarda con me il mare che culla
i pensieri ritornati al porto
le onde non sanno finire
e non tramonta
il bene che ci bacia, ci incorona
V.
Não quero anos consentidos
uma vida qualquer
ainda que sobre isso escreva um baita poeta
Quero explorar as cidades
sabendo nada de nada de ninguém
um leque de incertas verdades
por iluminar
Na noite os sonhos soterrados
choram com os olhares
que até tu aprendeste a fazer
– fazemos o que podemos fazer
Mas não, façamos a paixão
façamos membros cansados e acesos
de visão. Assim se vive por viver
e ainda mais, se for possível.
Não busquem a morte
só o incrível
V.
Non voglio anni consentiti
una qualsiasi vita
anche se di questo scrive un poeta bravo
Voglio esplorare le città
sapendo nulla di nulla di nessuno
un ventaglio di incerte verità
da illuminare
Nella notte i sogni sotterrati
piangono con gli occhi
che anche tu hai imparato a fare
– facciamo quello che possiamo fare
Invece no, facciamo la passione
facciamo membra stanche e accese
di visione. Si vive per vivere così
e ancora di più, se vi è possibile
Non cercate la morte
solo l’incredibile
Entrevista com Flaminia Colella
Como foi a tua formação literária? Quer dizer, o que tu leste que te marcou mais e por quê?
Comecei muito jovem, de forma completamente autônoma, lia sobretudo romances. Comecei escrevendo contos e tentativas de prosa em forma de romance, nunca publicados antes dos vinte anos. E sempre tive diários. Eles me ajudam a me orientar ao longo do tempo. Escrever me dá uma sensação do tempo que escorre na minha vida, como uma direção ou um relógio. A poesia veio depois, como uma revelação, enquanto eu experimentava, um pouco por brincadeira, um instrumento que, no fim, logo se revelou compatível com as minhas notas e com os elementos que a vida me pedia para investigar.
De fato, como deves ter notado pelo teor dos poemas que enviei, retirados do meu mais recente livro, Guerrafesta, a narratividade é a minha dimensão. Quando fiz catorze anos, conheci uma grande romancista italiana, ou melhor, duas. Margaret Mazzantini e Oriana Fallaci. Isso mudou o rumo da minha vida. As histórias delas marcaram um percurso, me mostraram um possível início. E comecei a acreditar no poder daquela declaração que eu já fazia nos diários quando criança, só para mim mesma, ou seja, que eu queria me tornar escritora. A qualquer custo.
O que é preciso para se tornar poeta?
Uma predisposição inata para a escuta.
Quem escreve tem uma caixa de ressonância escondida em algum canto da alma pela qual tudo lhe chega amplificado, não filtrado, e o atinge com força extraordinária. Isso faz com que tudo seja vivido poderosamente, para o bem e para o mal, e permite que sejamos atingidos por um fluxo ininterrupto de impressões do mundo externo que se sedimentam dentro e depois ficam pressionando para sair. Esse primeiro sentimento da arte, poderíamos dizer, esse sentimento tão intenso, torna-se então o dom mais precioso que um artista tem o dever de honrar e cuidar.
Como se faz para publicar um livro de poesia na Itália? As pessoas em geral têm que pagar as editores para serem publicadas?
Pagar para ser publicado é sempre errado. Infelizmente, a prática existe e faz parte das muitas distorções de um sistema no qual, ao longo dos anos, confluíram interesses econômicos que ultrapassam em muito as questões do valor artístico e da boa saúde da literatura.
Quem são teus leitores? Poderias descrever algum perfil de pessoas que leram e comentaram teus versos?
Eu não saberia traçar um perfil deles. Os leitores que, nos últimos anos, chegaram ao meu trabalho são, sem dúvida, pessoas em busca de algo, que gostam mais do desconforto do que da comodidade. Eu não tenho nenhuma verdade pura para contar. Escrevo sempre sobre coisas bastante desconfortáveis. Na verdade, espero alcançar vidas que mal consigo imaginar como são. A literatura, se é verdadeira, é uma linguagem que consegue tocar até quem é muito diferente de nós. Por enquanto, porém, me interessa escrever obras que possam ter valor e estatura, não há responsabilidade que eu sinta com maior peso a não ser aquela em relação à obra (toda, em prosa e verso) a que tenho me dedicado nesses anos. Tive que fazer escolhas radicais para chegar nisso, para conseguir o tempo que agora eu tenho à disposição para escrever e ler. E reescrever.
Conheces alguma coisa da literatura (ou da cultura em geral) sul-americana? O que tu pensas dela?
Sou apaixonada por dois autores sul-americanos em particular. García Márquez e Isabel Allende. Frequentemente releio alguns de seus romances. Foram capazes de esculpir um imaginário e restituir as notas de um mundo muito distante da cultura de onde eu venho, com visões e histórias que permanecem marcadas a fogo na mente do leitor. Depois Cortázar, com os anos, se juntou a eles.
Quais autores italianos o resto do mundo deveria sem falta conhecer?
Certamente Cesare Pavese, Pier Paolo Pasolini, Mario Luzi, Salvatore Quasimodo, Eugenio Montale, Cristina Campo, Margaret Mazzantini, Oriana Fallaci, Elsa Morante. São muitíssimos nomes.
Fala um pouco sobre o que tu buscas quando escreves: quais são as tuas preocupações, tuas alegrias? O que um poema teu precisa ter (como deve ser) para que tu digas “isso, está pronto!”?
A poesia sempre chega, dificilmente se busca. Pelo menos isso é verdade para mim. Nunca houve um momento em que eu tenha escrito sem sentir o comando de alguma coisa que me guiava de fora, como uma pergunta, um pedido de palavras que quisessem ficar impressas no papel. Com a prosa acontece de forma diferente, é uma atividade de escrita que implica uma disposição física e mental completamente diferente. A poesia é um fulgor. Te chama a fazer versos porque é ela que quer. A vida, para nós poetas, deve trabalhar muito bem para nos permitir escrever. E isso é um milagre. E também um mistério.

Paulo Damin é nascido em Caxias do Sul, RS, em 1986. Escritor, tradutor e professor. Formou-se em Letras pela UFRGS e tem mestrado e doutorado em Estudos da Tradução pela UFSC. Em 2015, publicou o romance Estudo de causo e, em 2021, a novela Adriano Chupim (ambos disponíveis na amazon.com.br). Participou da coletânea de contos da Revista Sepé, em 2022, e escreve crônicas para o portal silvanatoazza.com.br
Flaminia Colella nasceu em Roma, em 1996. É formada em Direito. Publicou os livros de poemas Sul Crinale (“No topo”), em 2018, La voce del fuoco (“A voz do fogo”), em 2020 e, no mesmo ano, com Davide Rondoni, publicou o livro de arte Io non ho mai scritto e nessuno è innamorato (“Eu nunca escrevi e ninguém se apaixonou”), com novas traduções de sessenta sonetos de William Shakespeare. Está para sair também seu primeiro romance, intitulado Figlia dell’oro. Viaggio attraverso le poesie di Emily Dickinson (“Filha do ouro. Viagem através das poesias de Emily Dickinson”). Seu mais recente livro é Guerrafesta (“Guerrafesta”), de 2022.
