ISSO VEM DE LONGE, IRÁ LONGE, por Nelson Rego
Publicado originalmente no livro
“Fake Fiction: contos sobre um Brasil onde tudo pode ser verdade”,
coletânea organizada por Júlia Dantas e Rodrigo Rosp,
publicado pela Não Editora, em 2020.
Se descobrir que guardo minhas anotações com zelo semelhante ao pudor de adolescentes que escrevem diários secretos, dirá que sou gay. Para ela, andar de bicicleta, estudar nas tardes de domingo porque faço mestrado de antropologia, tomar chá de hortelã, ouvir velhos Chico, Caetano e Gil é comportamento gay. Guardar anotações sobre o cotidiano de vidas anônimas na grande cidade será a prova definitiva para que minha tia grude de vez na vida do sobrinho o rótulo de veado, viado, como ela diz, com jeito de falar que imita o tom de voz do novo presidente do país em seus discursos de improviso. Improvisados, não. Espontâneos, autênticos, ela afirma e aplaude.
Deve considerar atitude gay as horas que passo encerrado no quarto que ela me cede em seu apartamento. Por mudanças sutis nas posições dos objetos, deduzo que investiga o quarto quando estou na universidade. O notebook, eu o deixo sobre a cômoda e os dois centímetros mais próximo ou distante da pilha dos livros contam-me que ele é o objeto mais visado nas patrulhas sigilosas da tia. Irrito-me. Divirto-me, tento enxergar a cena, tangenciar sua frustração por não adivinhar a senha que dá acesso aos indecorosos textos que, presume, escrevo nas horas de meu refúgio no quarto.
O senso comum diz que gays vacilam demasiado quando necessitam tomar decisões importantes. Então devo ser mesmo gay. Vacilei na chegada em São Paulo. Em vez de ir morar na república dos estudantes e dos cheiros ruins e das baratas, vim morar no quarto exclusivo para mim nesta casa mais limpa e mais suja.
Com o corte definitivo da bolsa de estudos que cheguei a pensar que ganharia, está mais difícil abandonar o quarto emprestado para o sobrinho suspeito. O presidente ídolo extinguiu milhares de bolsas que sustentariam por um ano pesquisadores inúteis como eu, minha tia falou “tá certo” e me olhou enquanto enfiava na boca o naco de carne sangrenta. Patetice minha ter levado a tia na feira ecológica, agora ela não para de falar que agricultura orgânica é coisa de veado e mais se ufana do Brasil moderno e da carne de boi inchado de hormônios para crescer rápido e do agronegócio plantado com mais de quinhentos venenos que ela põe na mesa. Pago mensalidade por quartinho emprestado e comida que não como. Tentei cozinhar, mas me foi proibido. Na frente do fogão só tem lugar para um e a mulher da casa não sou eu. Lavo pratos. Faço faxina não apenas no quarto. Tentei conversar sobre a cozinha, mas discutir relação entre duas pessoas é mania gay.
Duas pessoas, não. Três, se é marido da tia e dono da casa, meu tio postiço tem o direito de perguntar todo dia quando vou levar minha namorada para apresentar a eles. Desisti de explicar que Elisa é minha amiga. Homem não é amigo de mulher. Se for só amigo, é gay.
Três pessoas, não. Quatro e cinco, meu primo caçula tem sempre nova piada de gaúcho para contar e o gaúcho da piada sempre é puto. E para o primo mais velho, sou alguém sem nome, ele me chama de tchê e não entende por que não tomo chimarrão se gaúcho gosta de chupar ferro quente. Você estuda o que, tchê? Antropologia? Tchê, isso serve para quê? Lá no sul não tem essa porra, não? Você é o que, professor? Tchê, explica.
Eu não brigo com eles. Eles mantêm as agressões dentro de um limite. Temos um bom relacionamento feito de silêncios, piadas, comentários sobre gays. Eles falam, eu escuto.
Quatro e cinco pessoas, não. Tem aqueles amigos do tio postiço para as rodadas de cerveja e conversa entre homens sobre a mulher do outro, ali no bar do meio da quadra. Se eu não participar ao menos de vez em quando, viro mais bicha do que já sou. Se for homem casado quem não vai, vira corno.
E tem a vizinha. E tem a outra vizinha. E o parente que vem visitar a família de vez em quando. E os neopentecostais que passam de porta em porta no domingo, distribuindo folhetos que convidam para o culto onde distribuem folhetos que convocam para o dízimo. O dízimo é para a construção de mais um templo e imprimir mais folhetos. Uma grande família, devemos ser. Eu não brigo com eles, eles não brigam comigo.
E tem o outro gaúcho do condomínio, o vizinho do apartamento térreo com pátio, que é respeitado e admirado porque faz churrasco malpassado pingando sangue nas noites de sábado e reúne todos para falar mal dos paraíbas na frente dos paraíbas e repetir que comeu a mulher do petista do segundo andar. Comparam-me em valor ao outro gaúcho: perco feio, perguntam se também sou macho. Tudo é riso nas noites de sábado.
Exilar-me onde? Não quero caminhar de noite sem rumo e ser assaltado pela terceira vez. Permanecer lendo no quarto: veado. Ir de novo visitar Elisa? E o dinheiro para tantas vezes de metrô? Ficar sem fim empoleirado em algum banquinho de lanchonete, mão no queixo, cotovelo espetado no balcão, olhando a tevê ligada no canal das lutas e tomar a cerveja tão devagar que ela fica morna, demorar nessa única cerveja para justificar a ocupação do banquinho que não pode ficar sem render consumo para o dono do estabelecimento, dá tédio. Ir lavar pratos na Europa? Esse tempo ficou no passado, agora eles não deixam exilados sem renda entrar.
Minha tia imita o novo presidente do nosso Brasil ou é o contrário? É tanto bolsonaro por todo lado que penso: esperto, soube imitar a todos esses tão bem que foi eleito e está a ensaiar-se rei no palácio em Brasília. Parecem-me paradoxais os quase orgasmos que minha tia tem quando assiste, no jornal televisivo da noite, rompantes e promessas do ídolo que me soam ameaçadoras para pessoas como nós. Ou não somos pobres, tia? Até parece que somos brancos. Minha tia se acha branca. Esse tom que levo na pele, que está em minha mãe e nela, irmã de minha mãe, é o quê? Minha tia diz que somos brancos. Está bem, tia, brancos, só se for de leite que recebeu vários pingos de café. Ela não para de lembrar e acha muita graça daquela vez que o ídolo, antes de virar presidente, discursando de improviso contra a promiscuidade, declarou que jamais permitiria que filho seu casasse com negra. Não lembro qual dos filhos do presidente tem dedicado seu tempo a vasculhar na internet títulos de dissertações e teses para identificar e denunciar pesquisas de conteúdo gay, se o filho que se elegeu senador nesta recente eleição que fez do pai presidente ou se o que se elegeu deputado federal no mesmo último e bizarro pleito, confundo um com outro. Pensei que houvesse questões mais urgentes a necessitarem do tempo e da atenção de nossos parlamentares. Minha tia é fã desse filho presidencial que se dedica a prospectar estudos gays e que, junto com seu irmão, desde criança esteve a salvo de se casar com uma negra. E mais fã ela é do grande pai que cuida de sua dinastia e agora é pai do novo reino e de todos nós. Parecem-me paradoxais os quase orgasmos de minha tia, não os compreendo. Ou compreendo?
Suponho que meu tio postiço imagina-se industrial e financista com escritório no vigésimo andar de vidraças amplas e cor fumê, na Paulista, e não o comerciário de empregos intermitentes que subloca o quarto vago no apartamento alugado onde mora sob o teto manchado de mofo por causa dos vazamentos nos banheiros dos vizinhos acima, o quarto deixado para trás pelo filho mais velho e operário que foi morar próximo da fábrica em Santo André, o filho para quem sou o primo tchê sem nome. Meu tio sabe tudo sobre potência de motores e luxos de carrões que jamais terá. Talvez eu o entenda. Por outros meios, ele tenta parecer-se com o gaúcho do segundo andar, que necessita apresentar-se garanhão aos olhos dos vizinhos nas noites de sábado. Ai de mim se eu lhes disser que existe um elo homoerótico no desejo de sentir-se admirado e invejado por outros machos.
O que eu tenho para lhes oferecer à admiração? Nada. Peito de halterofilista, voz forte de narrador de futebol, fala mansa de libidinoso bem-sucedido, cornos que colei nas testas de maridos ausentes, veneno de cascavel? Nada. Talvez o veneno. Mas macho que é macho destila o veneno no centro das conversas de churrasco e boteco. Eu fico pelos cantos, calado. Destilar veneno pelos cantos é o lugar das mulheres. Dizer peçonha escrevendo no quarto é bicha.
O que tenho para ser invejado é o mestrado na USP, invejado e desprezado. Antropologia? O que é isso? Serve para quê? Vai fazer o que depois? Dar aula? Mas já não é o que você faz, tchê? Ensina o que, na aula? Quanto você ganha? Isso é menos do que ganha o vagabundo que vende crack, cara.
Intelectuais são desprezíveis. Aspirante a intelectual, pior. Sem renda, sem macheza, sem utilidade, posso conversar sobre o que quando encontro mãe e pai de Elisa nas vezes em que atravesso metade de São Paulo para perguntar-me o que lá fui fazer no momento em que chego à frente da portaria do prédio que não é de luxo e mesmo assim é muito mais do que o apartamentinho que um dia talvez eu consiga comprar no pardieiro de alguma esquina ocupada por estudantes de ciências humanas e professores escolares de dinheiro curto como eu e baixo escalão de funcionários públicos e boêmios sem moeda para a segunda cerveja e que fizeram de um pedaço da cidade um pedaço pobre e autoproclamado inteligente em oposição à geografia urbana também pobre e mais comum de famílias de escassa inteligência e fartura de preconceitos exatamente iguais às famílias do condomínio de onde fujo e pego o metrô para atravessar meia cidade para vir ao prédio de Elisa estancar diante da portaria quase chique e torcer para que pai e mãe hoje não perguntem de novo o que faço e farei na vida?
Serei despedido da escola? Que bobagem querer-me professor de história que se leva a sério e deseja construir cidadania em sala de aula com alunos que, em troca, filmam o professor e o denunciam. Doutrinador marxista, eu? Mas, senhores diretores da escola e senhores pais de adolescentes próximos da formatura no ensino médio e que se recusam a ler e escrever, eu não afirmei, não acusei capitalista nem critiquei prefeito ou governador de São Paulo, eu apenas levei fotos antigas da grande cidade e pedi que os alunos fotografassem o hoje de ontem caminhando por essas mesmas ruas de seu dia a dia. Respeitei a falta de vontade de seus filhos para ler e escrever e pedi que formassem as linhas de tempo ligando as fotos antigas que encontrei na internet com as fotos de agora tiradas por eles com os celulares que tanto amam, caminhando nas ruas, observando as ruas. A doutrinação marxista está em conhecer por meio das linhas de tempo alterações no ambiente urbano e perguntar – perguntar, eu nada afirmei – quais mudanças foram benéficas e quais foram prejudiciais, segundo seus juízos adolescentes? Não se pode mais perguntar, observar, comparar, incentivar debate? E nem sou ligado em Marx, gosto é de Deleuze, os senhores compreendem o que estou dizendo? Sei que pessoas inteligentes não precisam de um ridículo ponto de exclamação colado ao texto para lhes dizer que ali há espanto, mas não consigo evitar:
!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!
O que está acontecendo?! Não, não lhes estou acusando de falta de inteligência, por favor, não estou! Eu só peço que expliquem a este professorzinho inútil quando e como doutrinei?! E não me despeçam, por favor! Eu faço das tripas coração (como diziam as pessoas antigamente) (gostar de história, de antropologia contemporânea, dá nisso, escrever frases com tempos entre parênteses) (inútil) (gay) para vir do condomínio para esta escola de seus filhos, ir daqui para a USP, voltar da universidade para o condomínio, atravessar meia cidade e ir visitar Elisa e fazer-me perguntas diante da portaria do prédio. O ídolo dos senhores cortou a bolsa que cheguei a pensar que ganharia quando vim para cá e preciso do pouco que me pagam para doutrinar seus filhos, preciso desse salariozinho do contrato de poucas horas semanais para continuar meu mestrado, pesquisar e tornar-me sensível à compreensão de inutilidades. Prometo que farei jejum, pouparei metrô, conseguirei juntar o suficiente para comprar um par de sapatos que se equipare ao nível dos tênis de seus filhos. Elisa me ajudará. Acho que vários de seus filhos não gostam de mim porque não me pareço com eles. Outros gostam, conversam comigo no final da aula, perguntam, respondo-lhes com outras perguntas, não doutrino.
Há jovem que me olha com admiração nos momentos especiais em que outro mundo luziu em aula no horizonte cego de todos os dias. Existe a alegria um tanto mal-educada das três estudantes que estão sempre juntas cochichando de tudo e me chamam de muso café com leite, magrinho, de óculos, que tocou pandeiro na festa da escola, é do sul, terra de brasileiros que se fantasiam europeus, e, talvez para contrariar sua metade de pouca melanina, quer aprender a dança de capoeira dos outros ancestrais. Elas não gostam de ler, mas, admito, brilha em sua irreverência uma inteligência de tipo novo, instantânea, hiperativa, refratária a se fixar por mais de quatro minutos no mesmo tópico.
Não sei de onde brota essa nova inteligência de leitura escassa e não sei se vem para esmagar de vez aspirantes à intelectualidade ou se para nos reciclar e dar alento. Não sei de onde vem, mas quero saber, por isso estudo e construo-me o professor chamado de muso por adolescentes brancas.
Se me despedirem porque vários na escola não gostam de mim e não gostam de mim porque invento inutilidades como pensar com a ajuda de imagens, direi o que para pai e mãe de Elisa quando perguntarem o que faço e farei na vida?
Por que não volto para o lugar de onde vim? Mas de onde vim? Lá também é Brasil. A irmã da tia, que me pariu, quer, pelo meu bem, que eu desista e aceite. Aceitar o quê? Isso ela não sabe explicar de outro jeito que não seja vago: a vida como ela é. Mas, mãe, a vida que desejo é a vida que tenta compreender a vida. Mas, filho, compreender o que se em tuas anotações secretas no notebook protegido com a senha aparecem esses !?!?!? de quem está desorientado e escreve perguntas para quem jamais as lerá? É melhor escutar meu coração de mãe que pressente acontecimentos ruins e aceitar o teu destino pobre, evitar a tragédia.
Por que não fiquei onde até ontem existi se lá também fui selecionado por uma universidade para mestrado? Por que escolher o centro do país? Por que esse sonho insano de escolher o que parece melhor, maior, ascendente? E que diferença faz lá ou aqui, se perguntar, observar, comparar, conhecer, aqui e lá, é inútil?
Agora estou assim nesses dias, com a vida por um fio, esperando o veredito do diretor da escola, sentado de noite no sofá vendo tevê junto com o primo caçula e a tia. O primo conta a piada do gaúcho que não geme quando dá o cu para o paulista de pau grande porque macho não geme. Sentado na poltrona, o tio postiço coça a barriga enfiando os dedos por entre a camisa entreaberta num movimento frenético de quem sofre de urticária. Ele controla com o canto do olho para ver se estou espiando sua barriga peluda de macho dominante sentado na poltrona reservada para ele. Estamos assistindo mais um filme de zumbis devoradores de cérebros. Não entendo do que tio, tia e primo tanto acham graça quando o sangue alaga a tela, as mesmas gargalhadas de quando o lutador explode um murro na cara do adversário e leva outro de volta. Eu também dou as minhas risadas para não parecer boiola.
Amanhã será noite de sexta. O que um homem faz na noite de sexta? Talvez durante o dia o diretor declare o resultado do julgamento que está a processar dentro de sua cabeça. Se eu for anistiado, à noite poderei voltar a me perguntar o que farei na vida. Aceitarei o convite de Elisa para divertir-me com ela e seus amigos no shopping do Ibirapuera.
Pronto, a noite de sexta aconteceu, é noite de sábado. Ontem fui ao Ibirapuera e a anistia do dia tornou-me enfim ousado. Carinhoso, passei os dedos por breve instante nos cabelos de Elisa. Na despedida, seu beijinho em minha face durou mais do que uma fração de segundo e seu corpo esteve mais próximo do meu. E quando a turma de amigos não estiver em torno?
Sábado, eu sem dinheiro algum para ir ao encontro de Elisa, o cartão de crédito no vermelho. O shopping do Ibirapuera ficou com todo o quase nada que eu tinha. Não senti coragem de pedir emprestado para a tia, nem de contar pelo celular para Elisa que sou mais ralado do que ela pensa. Inventei crise de cálculo renal no tio postiço, internação hospitalar, assim justifiquei para Elisa o motivo de eu não ir. Desse jeito prossegue mal o arroubo iniciado ontem. Acuso-me duas vezes de frouxidão, não ter coragem para pedir emprestado para a tia, não ter a firmeza para dizer a verdade na conversa pelo celular. A falta de dinheiro infantiliza-me. Maldito mundo tão desigual, obriga-me à coragem.
É início da noite de sábado, a terrível noite de sábado. O gaúcho do térreo já está assando o churrasco. Uma parte da carne será assada por pouquíssimo tempo, ele segredou para todo o condomínio: o petista corno do segundo andar confirmou presença, o gaúcho flertará com a mulher do corno na frente do corno e servirá, crua, ao corno, carne sangrenta de boi chifrudo. Descarto caminhar sem rumo pelas ruas, não quero ser assaltado pela terceira vez. Permanecer no quarto, ainda mais gay numa noite em que, no pátio, todos vibrarão com a carnificina. Um ato de coragem se faz necessário, irei me empoleirar no banquinho à beira do balcão, assistirei combates até que o indignado dono da lanchonete me exija um mínimo consumo. Ele terá sua razão, reconheço. Serei o criminoso. Mas é o jeito de sobreviver a esta noite de sábado.
Nada disso pode ser real. O homem com a cara do Bolsonaro estampada na camiseta falou várias vezes cagão olhando para mim. Ele repete a palavra na conversa ou monólogo que mantém com o outro, calado, sentado à sua esquerda. O cagão não é dirigido ao outro, nem a mim, capto trechos do monólogo que o outro escuta em atitude de aprendiz e entendo que o cagão é um terceiro ausente. Mas que o homem com a estampa do Bolsonaro na camiseta olha para mim, toda vez que diz cagão, sim, ele me encara. Acho que não gostou dos meus óculos. Veado de merda. Agora foi por trás, da mesinha encostada na parede, que veio a lisonja. Espicho o ouvido e espio com o canto do olho. Não, não foi para mim. Um grupo numeroso de homens raivosos circunda a coitada da mesinha, pequena demais para tantas garrafas. A escuta me diz que são nordestinos e alternam piadas sobre paulistas e comentários ressentidos contra algum patrão explorador comum a todos eles. O paulista das piadas é sempre neurótico, brocha e corno. Negro de merda. Essa veio do lado de lá. Tenho certeza de que não é comigo. O lugar está cheio de negros e nem sou negro, conforme o parecer de minha tia. Negro, filho da puta. Alguém no outro lado da lanchonete está mesmo irado com minha raça. O curioso é que, na mesa ali adiante, nenhum dos negros machões, que trocam em volume alto informações sigilosas sobre as infidelidades das mulheres de homens ausentes, parece se ofender com as exclamações desse alguém sentado próximo a eles, na mesa seguinte. O balcão da lanchonete tem formato de U, estou empoleirado no banquinho junto a um dos braços do U, o espaço apertado das mesas fica em volta da letra. O dono e o auxiliar transitam no espaço interno desse U, atendendo os clientes em torno do vazio. O dono já me olhou feio porque ainda não pedi nem refrigerante. À minha frente, no braço do lado de lá, está o homem com a cara do Bolsonaro paranoico estampada no peito. Acabou o meu tempo, aí vem o dono perguntar pela segunda e última vez o que vou beber. Salvo, bem neste instante o gladiador na tevê instalada na parede derruba o oponente, atira-se em cima e lhe desfere com velocidade de metralhadora as pancadas na cabeça. Talvez essa seja uma daquelas noites monumentais em que o espetáculo coroa-se com o traumatismo craniano do perdedor. Explodem os gritos de nordestinos, negros, brancos, paulistas, mestres e aprendizes do perfil macho, brasileiros, explodem na lanchonete e o dono não deixará de participar da celebração, ele também desfere no ar socos no inimigo imaginário e gargalha. Quer saber? Nada disso é real. Não importam os minutos adicionais com que o final inclemente da luta brinda-me para permanecer. É melhor na rua, caminharei devagar até o condomínio, demorarei nas calçadas ainda com tranquilizadora quantidade de transeuntes, risco de assalto no limite do pouco provável. O gaúcho do térreo já terá feito o petista do segundo andar sangrar igual ao boi. Em declínio, a vibração ruidosa dos condôminos, quando eu chegar.
Nada disso pode ser real. Agora o texto fugiu do notebook protegido pela senha e está sendo digitado direto dentro de minha cabeça? Estou a narrar-me para mim mesmo em tempo real? Rapaz, é assim a solidão?
Quer saber? Nenhum desses todos que me afligem pode ser real. Eles sobrevivem com trabalhos intermitentes, precisarão de décadas de contribuição para a previdência social em busca da aposentadoria, a aposentadoria jamais virá porque a soma dos trabalhos com os intervalos sem trabalho não lhes permitirá completar o necessário somatório das décadas de contribuição. A partir dos quarenta anos, a intermitência dos trabalhos se acentuará. A partir dos cinquenta, ou antes, nenhum empregador irá lhes querer mais. Antes dos sessenta serão indigentes. Não se enxergam escravos porque cada um deles não é propriedade de um dono em particular. Dizer-lhes que são massa disponível não para alguém em particular, mas, sim, para a classe dos donos de todas as coisas e que, sendo donos de todas as coisas, viram também donos das pessoas – isso lhes será abstrato demais. Concreta é a compensação que se pode ter aqui e agora: sentir-se acima e tirano de alguém próximo que pode ser empurrado para baixo. Esse é o gozo possível.
Chega de ter medo. Sim, eu ainda terei medo, mas tentarei ter mais medo do medo do que ter medo de fantasmas. Pela manhã, mudarei para a república dos cheiros ruins e das baratas e dos estudantes que parecem apostar que a mera migração para o polo inverso dos clichês e ideais moralistas da família pequeno-burguesa os tornará rebeldes mais plenos. Terei voz e voto, poderei participar de mudanças para o melhor da casa. Acredito que lá ninguém me chamará de veado. É provável que descubram e digam-me que sou um cagão. Aprenderei a superar meus medos, tentarei.
Desculpe-me, mãe, pela manhã partirei da casa da tia. Sei que será um desgosto, por que trocar a casa da família pelo convívio com estranhos inclinados à baderna? O que se passa comigo? Estarei querendo esconder da família uma inclinação minha para a vida censurável? Desculpe-me, mãe, basta. Preciso tornar-me eu mesmo, antes que acredite sem volta ser o frouxo que a família e os vizinhos e conhecidos da família levam-me a crer que sou. Preciso amar-me para não necessitar empurrar outros para baixo.
Elisa saberá que, nesta cidade enigma onde enfim, pela manhã, eu me lançarei ao risco de tornar-me eu mesmo, estou ainda mais pobre do que até agora ela pensou. Então é que saberei de verdade se. Não, na verdade não sei o que saberei. Duas, três, quatro alternativas surgem repentinas na tela do notebook dentro de minha cabeça, elas não se excluem umas às outras, misturam-se, combinam-se de um jeito intricado. Chegando ao quarto, trancarei a porta, passarei a narrativa da noite para o notebook de metal. Guardarei o exame das alternativas surgidas no minuto que passou para amanhã, quando estiver já instalado na república. Ousarei querer saber.
De verdade. Então saberei nas próximas semanas se Elisa é mais do que fantasia que criei enquanto a tornei, para mim, inacessível, separados pelo muro da não apresentação de mim mesmo. Lanço-me aos riscos. Enfim. Essa celebração, sim, vale a vida. Aquela dos homens, não.
Pela manhã, o mundo recomeçará para mim. Tentarei. Estou um pouco louco nesta noite onde tantos dias culminam. Tomara que pela manhã esse ímpeto continue pulsando. Procurarei os estranhos parecidos comigo. Se algum dia eu tiver família, será nesse outro mundo e será diferente da família que conheço.
Deixo um mundo para trás e, agora, em tudo o que detesto se insinua o inverso, as perdas que terei. Eu os amo enquanto os rejeito? Acho que sim. Sim, tenho certeza de que sim. Alguns, amo mais. Outros, menos. Outros, com certeza não amo. Porém, amo. Esse amor só poderá escapar de não se degenerar em doença se não me prender. Preciso lançar-me adiante, buscar a verdade, o estranho.
Preciso tornar-me eu mesmo, amar-me para poder amar e não necessitar fascinar-me por um fascista que encena a força que ele não tem e que os ralados da vida admiram – esse simulacro de força que o fascista encena e que evoca a outra e melhor força que o medo faz apagar-se em mim.
Nelson Rego escreveu “A Natureza Intensa”, livro de quatro contos interligados, finalista do Prêmio Livro do Ano da Associação Gaúcha de Escritores, em 2016; “Noite-Égua”, novela; “Daimon Junto à Porta”, vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura para o melhor livro de contos, em 2011; e “Tão Grande Quase Nada”, livro de biografias ficcionais. Autor de nanocontos, aforismos e outros textos sintéticos, publicados em coluna semanal no Jornal Sul21, de 2014 a 2016. Cursou Filosofia e Geografia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é mestre em Sociologia e doutor em Educação. É professor na UFRGS e autor e organizador da coleção de livros “Geração de Ambiências”, publicada pela Editora da Universidade. Os livros da coleção reúnem apresentações e análises de práticas que unem a Geografia à criação de pedagogias ao mesmo tempo críticas e prazerosas em educação formal e não formal. É também autor e organizador de livros acadêmicos publicados pelas editoras Grupo A/Selo Penso, Edelbra, e por meio de convênio entre a UFRGS e a Universidade do Minho, Portugal.
