LARA DE LEMOS: O TENSO REMEMORAR DA DITADURA MILITAR NO BRASIL, por Katia da Costa Bezerra

O ensaio apresentado a seguir foi publicado em 2004,
seis antes da morte da poeta Lara de Lemos,
na revista Graphos – Revista da Pós-Graduação em
Letras da Universidade Federal da Paraíba.

A predominância de uma política de esquecimento tem marcado o fim de regimes autoritários como o que se instalou no Brasil entre 1964 e 1985. Na realidade, o que se observa com o fim da ditadura militar é a presença de uma amnésia social, ou seja, uma espécie de pacto de censura que procura monopolizar os discursos na esfera pública, dificultando o afloramento de outras falas que poderiam concorrer para uma reflexão mais profunda sobre o período da ditadura militar no Brasil. Uma dinâmica que ganha novos contornos quando se tem em mente que o processo de elaboração da memória se constitui a partir de uma luta que se trava entre diversos segmentos pelo direito de determinar o que deve ser lembrado daquilo que deve ser esquecido e a forma como essas leituras devem ser configuradas.

A dinâmica acima descrita pode ser melhor compreendida quando se tem em mente a relação de poder presente no processo de produção da memória e, por conseguinte, no próprio processo de elaboração da história. Nesse caso, é importante ressaltar que a luta pelo direito de determinar o que deve ser lembrado daquilo que deve ser esquecido e a forma como essas leituras devem ser configuradas têm permeado as mais diversas áreas de atuação na sociedade brasileira. No que concerne ao período da ditadura militar no Brasil, portanto, observa-se que, embora seja um passado recente, sua memória ainda não foi suficientemente elaborada pela sociedade, apesar das profundas marcas que deixou e da circulação de muitos relatos de militantes que estiveram direta ou indiretamente envolvidos no confronto com o regime militar. Testemunhos que procuram dar visibilidade a versões que são elaboradas a partir de perspectivas que ampliam e resgatam um repertório até então desconhecido (DASSIN, 1992).

Dentre estas vozes, depara-se com a publicação de Itinerário do medo, de Lara de Lemos, em 1997. Jornalista e poeta, presa durante a ditadura militar, Lara de Lemos usa a poesia, por um lado, como um espaço de reconstrução e reflexão sobre o passado, desnudando através de seus versos os momentos de dor, insegurança, medo, revolta e esperança vivenciados durante o regime militar. Por outro lado, seus poemas se esforçam por construir uma genealogia que interligue sua vivência pessoal a uma esfera mais universal. Assim sendo, o intuito do presente ensaio é verificar a forma como seus versos tentam recuperar e dar um sentido a vivências ainda não totalmente reconhecidas pela sociedade.

Em primeiro lugar, note-se que o Brasil que seus versos retratam era um país marcado pela presença de um governo autoritário que mantinha seu controle sobre a sociedade através do medo e da censura aos meios de comunicação. De fato, a censura surgiu como um instrumento de proteção e divulgação dos paradigmas privilegiados pelo governo autoritário e que legitimavam sua permanência no poder. Dentre estes, pode-se citar, o apreço à família, percebida como a célula básica da sociedade, e os valores católicos, que inseriam o Brasil numa comunidade moderna e cristã (VIEIRA, 2000, p.200; SOARES, 1989, p.29-31).

No que diz respeito à luta armada, dados do próprio governo militar informam que a maioria dos militantes envolvidos nos movimentos de esquerda eram jovens estudantes oriundos da classe média, sendo que muitos deles eram mulheres (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, p.85-86).2 No caso, segundo relatos dos próprios militantes, o desejo de transformar a realidade brasileira, terminando com as diferenças sociais, foi o que os motivou a entrar na luta. No princípio, a ação da esquerda ficou mais restrita às manifestações públicas e ao setor da cultura, todavia, a partir de 1968, e mormente com a implementação do AI-5, muitos desses jovens decidiram ingressar na guerrilha, desobedecendo a Lei de Segurança Nacional. A resposta imediata do governo veio na forma de prisões, torturas, seqüestros, exílios e desaparecimentos (PAULO NETTO, 2000, p.227-231; VIEIRA, 2000, p.197-199). Noutras palavras. Os jovens envolvidos nos movimentos de resistência começaram a vivenciar uma prática repressiva que teve como constantes a experiência da tortura, do isolamento e da falta de perspectiva, num mundo em que preponderava o absurdo e a falta de leis e de ética (Baffa, 1978). Cumpre ressaltar ainda que essa prática repressiva funcionou como uma peça chave para o regime militar, uma vez que lhe permitiu impor a submissão, a fuga, a segregação ou a eliminação de qualquer elemento que tentasse resistir ao seu discurso totalizador.

Segundo os relatos recolhidos pela Arquidiocese de São Paulo, as torturas eram conduzidas mediante agressão física e pressão psicológica. Não havia distinção entre os torturados, sendo aplicada indiferentemente a pessoas de qualquer idade ou sexo. Segundo Hélio Pelegrino, “a tortura racha o ser humano ao meio. Ela divide a unidade indissolúvel de corpo e mente. Porque, na tortura, o corpo maltratado se insurge contra a decisão do torturado de calar, e se alia aos torturadores, para que o torturado fale. […] Como salienta Marilena Chauí, a tortura introduz um elemento cruel que é a experiência de uma situação-limite que culmina num processo de desumanização do torturado quando este, em função da dor e da degradação, estabelece uma relação com o torturador, que o faz trair sua ideologia, suas crenças, seus companheiros. Uma prática que, como os relatos comprovam, provocou seqüelas de ordem física, psicológica e moral (ELOYSA, 1987, p.33).

No caso da poesia de Lara de Lemos, o que se verifica é que seus versos procuram retratar as várias etapas de um processo que se inicia com o susto da prisão e que culmina com a liberdade. O livro é dividido em quatro partes: “Invasão de Domicílio”, “Tempo de Inquisição”, “Celas” e “Reminiscências”.

A primeira parte do livro, constituída de três poemas, remete para o momento da invasão e detenção e para a sensação de impotência. Aqui, a arbitrariedade e ilegalidade do ato e a percepção da impossibilidade de diálogo podem ser medidas não só pelo acúmulo de perguntas retóricas, mas também pela ironia presente na escolha do próprio título dessa seção, que é um termo usado na esfera jurídica. O primeiro poema, “De súbito é o susto” (9), já remete para muitas das estratégicas presentes ao longo de todo o livro:

De súbito é o susto estampado no rosto refletido no espelho parado na garganta.

Invasores transitam pelo quarto
desrespeitam o sono em furor incontido.
Colocam algemas em pulsos inocentes.
Contra palavras – há muros contra lamentos, murros.
Levam jovens na mira de fuzis reluzentes.

Vários elementos chamam a atenção nesse poema. Na primeira estrofe, por exemplo, depara-se com a predominância de vogais fechadas, o que contribui para a instauração de um clima de opressão e escuridão que vai remeter para a sensação de medo e de dor tão presentes ao longo do livro. Da mesma forma, a aliteração (“súbito” e “susto”) no primeiro verso e a ausência de vírgulas ajudam a demarcar a perplexidade e simultaneidade das sensações resultantes da invasão. Na terceira estrofe, a presença do travessão – estratégia que obriga seu leitor a um maior espaçamento no ato da leitura – assinala a surdez que vai marcar a relação preso x torturador, imagem recorrente em vários poemas. Já o uso da vírgula e a elipse do verbo no verso seguinte apontam para o imediatismo da violência presente nessa relação. Por último, pode-se notar um tom de ironia pela forma como a voz poética descreve os fuzis.

A segunda parte do livro, “Tempo de inquisição”, contém seis poemas que, como o próprio título já denuncia, retomam mais especificamente o momento do interrogatório, que resulta na condenação do prisioneiro. E interessante observar a presença sistemática de um vocabulário que faz uma clara alusão ao tempo da Inquisição, apontando para a proximidade entre esses dois momentos históricos no que se refere aos métodos empregados durante o interrogatório e na forma como era conduzido o sistema processual. Um exemplo seria forma como alguns poemas delimitam a forma de comportamento esperado dos atores sociais envolvidos nesse jogo. Nesse sentido, pode-se verificar como a linguagem muitas vezes ressoa como a de um manual de instruções como no poema abaixo:

Da investigação
Às perguntas repetidas, hipóteses formuladas, o acusado deve sempre responder com clareza.
Ao inquisidor cabe agir com firmeza.
Pode inclinar-se à paciência desde que o investigado
saiba que está à mercêde traçados, peias, celas,
onde aguardará sentença.
Caso insista o acusado em negar crimes funestos
é praxe instigar-lhe o medo.

Neste poema prepondera o uso de uma linguagem marcada pela presença de termos legais e de vocábulos como “inquisidor” que surgem em tensão com uma prática que foge aos preceitos da lei remete para a relação que se estabelece entre o modo de atuar do Santo Ofício e o da ditadura no Brasil.

Todavia, o último poema dessa seção introduz um elemento novo: uma postura de resistência, que se fará presente na forma como contará sobre sua experiência de presa política num futuro:

Da resistência

Cantarei versos de pedras.
Não quero palavras débeis para falar do combate.
Só peço palavras duras, uma linguagem que queime.
Pretendo a verdade pura: a faca que dilacere,
o tiro que nos perfure, o raio que nos arrase.
Prefiro o punhal ou foice às palavras arredias.
Não darei a outra face.

Num poema marcado pela predominância de verbos e substantivos que remetem para o campo semântico de cortar e ferir (não é por acaso que a voz poética informa sua rejeição por palavras arredias), a voz poética afirma sua percepção da poesia como uma arma para contar sua verdade. Ou seja. A poesia se transmuda no campo de batalha a partir do qual ela enfrenta seus torturadores, sem piedade.

A terceira e maior parte do livro, “Celas”, contém 24 poemas que vão tratar da experiência do encarceramento. A ênfase agora é no torturado e em como este é afetado pela tortura, pelo medo, pela fome, pelo isolamento. Aqui, os poemas são numerados numa seqüência que pode se reportar ao seu tempo de prisão. Nesse cenário, a memória ocupa um lugar central. Primeiro, pelo movimento de volta no tempo numa busca desesperada por elementos que lhe permitam sobreviver até a libertação. A viagem de regresso, como não poderia deixar de ser, aparece logo nos dois primeiros poemas da série que informam:

[…]

Viajo consultando arquivos e a memória ilumina rostos redivivos. (“Cela 1”)

Se a tortura tinha como objetivo desintegrar a identidade do indivíduo, através de um processo de desumanização que resulta na perda de valores e convicções, a memória aparece como um elemento de resistência que lhe permite manter a lucidez, resistindo às manipulações físicas e psicológicas que tentam destruir a relação do indivíduo consigo mesmo. Isto implica dizer que a rememoração de pessoas e de experiências passadas funciona como uma ponte que impede que haja a ruptura do torturado com vínculos afetivos e um mundo pessoal que constituem seu núcleo identitário, impedindo o seu aniquilamento (VIÑAR; VIÑAR, 1993, p.40).

Nos poemas que iniciam a terceira secção do livro, pode-se perceber a forma como a voz poética reconhece em sua vivência anterior o suporte que lhe possibilita lutar pela posse do seu eu. Não é por acaso que na “Celas-18”, a voz poética afirma:

Entre o passado e o presente
entre o que não fui e não sou
– prossigo: tento construir a ponte
onde encontrar-se comigo.

No poema, além da percepção do imperativo de manter seu vínculo com experiências que a definem enquanto sujeito, a voz poética reinforça sua determinação de não se deixar abater como se pode observar pelo uso de travessão antes do verbo prosseguir. Além do mais, ao marcar como ponto de contato entre o passado e o presente a negação – “o que não fui e não sou”, a voz poética aponta para a falsidade e o absurdo das acusações que a condenaram a um mundo inóspito em que prepondera “este descaso de pedra / este silêncio de muro / esta tristeza de grades (“Celas-4”). Ou seja. Seus versos procuram associar a natureza dura e sólida do mineral e o silêncio do muro à insensibilidade dos inquisidores. As grades, por sua vez, espaço limítrofe entre as celas e o mundo

exterior, são percebidas como uma armação que, ao mesmo tempo em que impede a saída, permite um pequeno contato com essa realidade exterior, fazendo com que os prisioneiros não percam sua relação com esse mundo. Dessa forma, as grades tornam-se um elemento mediador entre esses dois mundos, convertendo-se no símbolo da dor de indivíduos que anseiam pela liberdade como se pode ver nas “Celas-9”:

Ainda se sobressalta o coração de pássaro
quando ao acaso retorna da inércia […]
e recebe a réstia
de sol, num abraço.

Neste caso, coisas insignificantes como o fato de poder vislumbrar o azul do céu ou sentir uma réstia de sol que passa pelas grades também funcionam como estratégias de resistência que lhe permitem sobreviver e manter sua condição de ser humano.

Todavia, num jogo que se estabelece entre o presente e o passado, a memória também surge como o elemento que lhe possibilita revisitar as celas, agora de um ponto mais longínquo, não só para exorcizar o horror vivenciado, mas também para dar um sentido a esse período de sua vida como em “Celas-21”:

Eram corpos de trevas e lonjuras cobertos de brasas e feridas.
Pelas noites sombrias eles choravam, pela manhã cinzenta adormeciam.
Eram corpos doridos que sofriam, sem repouso, sem calma, sem estima.
|Descalços, nus, pele encardida,
olhos que olhavam sem retina.
Lamentos de homens soterrados em negros cativeiros,
sem o pão e o lume necessários.
Comparsas no medo, desolados pressentiam,
em pátios silenciosos, os próximos passos imprecisos.

“Celas-21” foge ao padrão dos poemas que constituem essa parte do livro. Primeiro por ser o poema mais longo (14 versos) em que predominam versos de 10 sílabas, com uma variação de versos de 8 e 9 sílabas, ao contrário dos outros 23 poemas que são mais curtos e em que preponderam versos de 4 a 7 sílabas na sua maioria – um tamanho que parece remeter para a pequena dimensão das celas. Além disso, os adjetivos vêm reforçar o clima de insegurança, escuridão e dor que marca o dia-a-dia dos prisioneiros. Não é por acaso que os corpos são “de trevas” e de “lonjuras” – adjetivos que reforçam o grande distanciamento, o isolamento e a escuridão que envolve esses indivíduos. Da mesma forma, o adjetivo “soterrado” traz uma dupla leitura, pois, se por um lado, remete para a idéia de algo metido debaixo da terra, ou seja, algo que devia ser mantido escondido nos porões da ditadura, por outro lado, soterrar também pode significar “causar grande terror, assustar, aterrorizar”. Logo, o adjetivo apresenta significados que se comple­mentam na descrição do cotidiano vivido nas celas.

Note-se também que o uso da anáfora serve para enfatizar o processo de fragmentação desses indivíduos, ou seja, sua lenta redução à categoria de coisa. Nesse sentido, é importante observar que na primeira e segunda estrofes a voz poética se refere a esses indivíduos como corpos, só aparecendo a palavra “homens” na terceira estrofe. Da mesma forma, o uso da terceira pessoa do plural nos verbos marca o distanciamento necessário para denunciar a situação desses homens. Já a constante repetição do advérbio “sem”, que aparece cinco vezes no poema, serve para enfatizar o estado de privação e carência vivenciado pelos prisioneiros.

A escolha da expressão “negros cativeiros” para se referir às celas traz conotações interessantes, pois remete o leitor para o tempo da escravidão no Brasil – período marcado por uma prática tirânica e arbitrária em que prevaleciam os interesses de uma elite em muito semelhante à vivenciada pelos prisioneiros da ditadura. Note-se que, nesse caso, a presença de palavras como “lume” – um termo mais antigo – e “brasas” – maneira de punir/marcar os escravos –, ou mesmo na forma como a voz poética vai descrevendo esses corpos desde o primeiro verso do soneto num jogo que permite criar um vínculo com esse tempo. Além disso, cumpre observar o tom irônico que assume o adjetivo “negros”, uma vez que na história recente do Brasil, os cativos são presos por suas crenças, ideologias e não mais por sua raça; todavia, o processo de marginalização/exclusão social é análogo, ou seja, ambos são submetidos a um processo de coisificação que lhes nega o direito à cidadania.

Finalmente, o poema continuamente se refere à dor, ao pranto, aos lamentos e à desilusão vivenciados por esses corpos/homens. Noutras palavras, a voz poética se esforça por lançar luz sobre aspectos normalmente silenciados, trazendo uma faceta mais humana para esses indivíduos e, ao mesmo tempo, rompendo com um paradigma masculino que se estrutura a partir da circulação e legitimação de uma essência masculina em que são privilegiadas qualidades como coragem, racio­nalidade e força. Afinal de contas, como diz o ditado popular, “homem que é homem não chora”.

Da mesma forma, a possibilidade do eu-poético se identificar como uma voz feminina também permite a contestação de matrizes normativas que procuram delimitar um conjunto de valores e de hábitos tidos como socialmente desejáveis. Note-se que o regime militar tentava justificar sua atuação e sua permanência no poder através de discursos que apregoavam, entre outras coisas, a urgência em se reaver valores como família, o papel tradicional da mulher, etc. Desta forma, o resgate da história de mulheres que se rebelaram contra o governo militar e vivenciaram a experiência da tortura ajuda a mostrar não só a faceta violenta e autoritária desse regime, mas também a forma corajosa e incisiva como algumas mulheres tentaram se posicionar perante um governo de exceção, rompendo com paradigmas essencializadores. Não obstante, em alguns momentos, a voz poética vai reforçar, de uma certa maneira, o papel tradicional delimitado à mulher como se pode perceber no poema dedicado ao filho:

[…]

No instante iníquo
não consegui rastear
a fuga. Sabia-te indefeso à mira, ao tiro.
Em cega fúria de fera empunho meu escudo de veneno e ódios.
Retomo-te em meus dentes e prossigo.

A última parte do livro, composta de nove poemas, procura construir uma genealogia. Aqui os poemas aludem a indivíduos que, embora pertencentes a espaços geográficos e tempos diversos, foram vítimas de perfídias, perseguições políticas, injustiças. Esta é uma sistemática que, na realidade, já podia ser detectada pelas epígrafes escolhidas para introduzir cada parte do livro, uma vez que se originam de autores que foram vítimas de algum tipo de violência por seus posicio­namentos políticos, ou por não encontrar um espaço em uma sociedade marcada por preconceitos. Assim, por exemplo, na parte 1, encontramos “Voici les temps des assassins”, de Arthur Rimbaud, que anuncia o início de um tempo de violência e de falta de ética ou leis. A parte 2 começa com um trecho de Graciliano Ramos – “Essas coisas verdadeiras podem não ser verossímeis” – que nos alerta para a questão do estatuto da verdade. Já a terceira parte é introduzida por um trecho de Jorge de Lima que afirma “Que legendas que signos e epitáfios existem na clausura dessas rochas”, numa clara alusão ao sofrimento, ao processo de degradação e ao isolamento a que os prisioneiros estavam sujeitos no cárcere. Finalmente, na última secção, depara-se com um trecho de Nicolás Guillén que diz “La sangue es un mar inmenso que baila todas las playas…” numa primeira tentativa de interligar esse momento de exceção a outros momentos e espaços geográficos.

Nesse sentido, pode-se afirmar que o poema que abre essa parte reforça o propósito de sua poesia como o próprio título do poema já adverte “Para que no haya olvido”:

Tiempo sumidero.
El poema chispea breve relámpago en las tinieblas.
Árduo intento
de retener por milénios el pájaro en su último vuelo.

Nesse poema persiste a referência a um tempo de escuridão. Tempo esse, no entanto, que agora vai se expandir para outros contextos históricos, num movimento em que a voz poética procura falar de seus sentimentos através da construção de vínculos com uma infinidade de sujeitos, que também vivenciaram um processo de segregação e exclusão social. Na realidade, a voz poética procura conectar sua experiência pessoal a outras pertencentes a uma esfera universal, na tentativa de recuperar e dar sentido a uma dor e uma revolta que precisam ser verbalizadas para serem reconhecidas socialmente como parte da história (VIDAL, 2000, p.15-17).

Posto isto, pode-se compreender melhor a recorrência ao espanhol em alguns poemas, que surge como uma estratégia para apontar a estreita interligação entre sociedades que vivenciaram governos de exceção em diferentes momentos de sua história. Por esse motivo, depara-se com poemas dedicados a Anne Frank, ou a diferentes pessoas que, ao longo da história, foram mortas de maneira cruel por governos autoritários como Lorca (assassinado em 1936 por seu posicionamento antifascista), Che Guevara (guerrilheiro fuzilado em 1967), Felipe dos Santos (chefe da Revolta de Vila Rica, enforcado em 1720) e José Joaquim da Silva Xavier (membro da Inconfidência Mineira, enforcado em 1792).

Os últimos poemas dessa seção, no entanto, se voltam mais especificamente para a ditadura militar brasileira, evocando ora os nomes de mártires como Carlos Lamarca e Stuart Angel3, ora os de seus próprios filhos, Adail Ivan de Lemos e Paulo Cesar de Lemos; criando uma clara interligação entre o governo de exceção no Brasil e os muitos outros vivenciados em outros lugares e em outros momentos históricos.4 Na realidade, o que prepondera aqui é o desejo de conectar sua experiência pessoal a de um grupo, criando um senso de pertencimento a uma comunidade. Comunidade essa que se constitui através da construção de laços que se estruturam a partir da vivência de uma situação extrema de dor e injustiça compartilhada por esses diversos indivíduos.

Já o último poema da seção é construído como um trocadilho, no entanto, ao contrário do que se poderia pensar num primeiro momento, o tom de brincadeira dá lugar a um tom de voz grave que adverte sobre um “Tempo malsinado”: “dá-se o grito / sufocado / Dá-se o medo desmedido / dá-se o corpo / dizimado”. Nesses versos, a voz poética reafirma a função da poesia como um espaço de denúncia através do qual ela emite seu grito de revolta e dor. Mais do que isso. Seus poemas se tornam um símbolo da dor de um corpo exterminado em parte.

Finalmente, à discussão até aqui desenvolvida, é possível acrescentar mais alguns detalhes relevantes. Por exemplo, no posfácio do livro, Astrid Cabral alerta o leitor para a forma como os poemas alternam perspectivas, num jogo em que o “eu” e o “nós” se contrapõem a uma voz impessoal, que traz o distanciamento necessário à reflexão. Uma oscilação que, segundo Cabral, contribui para a instauração de um senso de coletividade. Assim acontece, no entanto, também é importante frisar que a predominância de uma voz que persiste em falar a partir do ponto de vista do prisioneiro rompe com a falsa noção de passividade normalmente atribuída ao torturado, desmis­tificando a relação de poder entre torturado e torturador. De mais a mais, seus versos não se circunscrevem a falar de seus medos, mas também reflexionam sobre suas estratégias de sobre­vivência, num jogo que envolve a constante troca de perspectivas como a assinalar a multiplicidade dos indivíduos que compõem esse universo.

O título do livro, por sua vez, é extremamente expressivo, uma vez que inventário pode significar “relação de bens deixados por alguém que morre; o documento em que se acham relacionados tais bens; descrição ou enumeração minuciosa”. No caso do livro, o que se observa é a metódica e minuciosa elaboração de um inventário que vai incluir os danos físicos e psíquicos, os momentos de dor e de resistência, a falta de esperança e a luta, num rememorar que tenta construir novos pactos de leitura que permitam inscrever a experiência desses indivíduos na história e cultura brasileira. No caso, é interessante observar também que se trata de um inventário do medo, numa clara alusão a atmosfera de medo que predominava nesse período principalmente entre os militantes e seus familiares – medo que era usado pelo regime como uma forma de controle e manutenção do poder (GARRETÓN, 1992; SALIMOVICH, LIRA, WEINSTEIN, 1992).

Concluindo, em função do exposto, pode-se afirmar que seu livro, ao lançar luz sobre trajetórias de vida usualmente mantidas nos interstícios da história, surge como um veículo de intervenção que obriga o leitor a repensar o passado. Na realidade, repito, trata-se de um movimento de resgate de uma memória que oscila entre as esferas individual e coletiva num jogo que permite traçar uma visão mais complexa desse período da história do Brasil, uma vez que traz como agentes indivíduos e perspectivas usualmente ausentes dos registros históricos. Um fato que ganha maiores proporções se levarmos em conta que a fala parte de uma mulher, que, através de sua escrita, inter­fere com o imaginário nacional, deslocando-o, num movimento que desnuda o caráter autoritário e hegemônico sobre o qual se estrutura a sociedade brasileira.

Ademais, rememorar em seus poemas tem igualmente um poder curativo pois, ao mesmo tempo em que procura dar significado a experiências até agora silenciadas, entrelaçando-as a outros momentos e espaços, seus versos se esforçam por criar laços de solidariedade com o leitor – laços esses tão necessários ao processo de cura e que são atados a partir de uma viagem que obriga o leitor a vivenciar momentos de dor, revolta, ódio, medo e isolamento (BAL, CREWE, SPITZER, 1999). Trata-se, portanto, de um tipo de escrita que pressupõe a criação de elos de cumplicidade entre poeta e leitor que passam a participar juntos de um remapear que tem como princípio básico a problematização de perspectivas que tentam fixar e restringir as possibilidades de leitura, nego­ciando novos pactos que permitam a inscrição de outras memórias na história e na cultura brasileira.

REFERÊNCIAS

ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1985.

BAFFA, Ayrton. Nos porões do SNI: o retrato do monstro de cabeça oca. Rio de Janeiro: Objetiva, 1989.

BAL, Mieke, CREWE, Jonathan e SPITZER, Leo. Acts of memory: cultural recall in the present. Hanover: University Press of New England, 1999.

CABRAL, Astrid. Pósfacio. Inventário do medo. Lara de Lemos. São Paulo: Massao Ohno Editor, 1997. DASSIN, Joan. Testimonial literature and the armed struggle in Brazil. In: CORRADI, Juan E., FAGEN, Patricia Weiss e GARRETÓN, Manuel Antonio (ed.). Fear at the edge: State terror and resistance in Latin América. Berkeley: University of California Press, 1992. p.161-183.

ELOYSA, Branca. I Seminário do grupo ´Tortura Nunca Mais´: depoimentos e debates. Petrópolis: Editora Vozes, 1987.

GARRETÓN, Manuel Antonio. Fear in military regimes: an overview. In: CORRADI, Juan E., FAGEN, Patricia Weiss e GARRETÓN, Manuel Antonio (ed.). Fear at the edge: State terror and resistance in Latin América. Berkeley: University of California Press, 1992. p.13-25.

LEMOS, Lara de. Inventário do medo. São Paulo: Massao Ohno Editor, 1997.

PAULO NETTO, José. Em busca da contemporaneidade perdida: a esquerda brasileira pós-64. In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Viagem incompleta: a experiência brasileira. São Paulo: SENAC, 2000. p. 219-245. SALIMOVICH, Sofia, LIRA, Elizabeth, e WEINSTEIN, Eugenia. Victims of fear: the social psychology of repression. In: CORRADI, Juan E., FAGEN, Patricia Weiss e GARRETÓN, Manuel Antonio (ed.). Fear at the edge: State terror and resistance in Latin América. Berkeley: University of California Press, 1992. p.72-89. SOARES, Glaucio Ary Dillon. A censura durante o regime autoritário. Revista Brasileira de Ciências Sociais v.10, n.4. p.21-43, 1989.

VIDAL, Hernan. Chile, poética de la tortura política. Santiago: Biblioteca Setenta&3: Mosquito Comunicaciones, 2000.

VIEIRA, Evaldo. Brasil: do golpe de 1964 à redemocratização. In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Viagem incompleta: a experiência brasileira. São Paulo: SENAC, 2000. p.187-217.

VIÑAR, Maren e VIÑAR Marcelo. Fracturas de memória: crónicas para una memoria por venir. Montevideo: Ediciones Trilce, 1993.

RESUMO: Esse ensaio explora como a poesia de Lara de Lemos reflete e (re)constrói a experiência da ditadura militar no Brasil. Em Itinerário do Medo, Lemos vai além de um simples relembrar em seus poemas com o intuito de construir um senso de comunidade através da associação a outros tempos e geografias. Além disso, seus poemas tentam negociar uma perspectiva que interfere numa política de silêncio que permeia a sociedade brasileira, obrigando a circulação de novas narrativas da nação.

PALAVRAS-CHAVE: Poesia. Medo. Tortura. Memória. Resistência. Nação.

Publicado originalmente no vol. 6, n. 2/1 (2004), da revista Graphos – Revista da Pós-Graduação em Letras – UFPB João Pessoa [online].

Licenciado pela Creative Commons, tipo CC-BY.

Reprodução autorizada pela autora.

Dr. Katia da Costa Bezerra has published essays on Contemporary Portuguese, Brazilian and Lusophone African literature. She is also concerned with the rescue of a literary production published by mineiras born in the XIX century.Her theoretical approaches include questions on gender, sexuality, nationhood, memory and race. University of Minnesota Hispanic and Luso-Brazilian Literature and Linguistics. Awards: Distinguished Teaching Award, College of Humanities, University of Arizona, April 2004.

ENSAIO NÃO-FICÇÃO

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