MAMÃE TRABALHAVA À NOITE, de Emir Rossoni

O conto intitula o livro “Mamãe trabalhava à noite”,
em etapa de financiamento coletivo pelo catarse até 16 de outubro de 2022.
https://www.catarse.me/mamae_trabalhava_a_noite_f00b?ref=project_link
Lançamento previsto para novembro de 2022.

Mamãe trabalhava à noite. “Cuide da maninha até eu voltar.” Sempre que faço sombras de lua, lembro-me dela. Ela só voltava na madrugada. Maninha chorava, maninha brincava. Mas eu nunca dormia.

Nossa vida era pacata e quase normal. Só agora sei que mamãe dormia nas manhãs, depois que eu saía para o colégio. “Pegou a merenda?” Eu não gostava muito dos sanduíches. Porém, ela sempre preparava as fatias de pão com recheio antes de me acordar. Sinto o sabor até hoje, sabor de estômago cheio, temperado com saliva. Ela tinha, às vezes, marcas pelo corpo. Eram marcas de feijão para o almoço, de repolho com vinagre. Quando ela se distraía eu podia ver outras marcas; de remédios pra gripe, de tênis novo. Algumas custavam a sair. Outras sumiam no mesmo instante que eu as via. Pareciam as mais doídas.

Não lembro de ela ter amigas. As visitas que recebia nalgumas tardes eram da tia, que gritava. “Quer matar a mãe do coração?”. A mãe que a tia falava era a vovó, que só foi lá em casa uma vez. Complicado identificar o rosto dela, mas posso perceber que ela usava roupas de avó, largas, balançando.

Difícil explicar porque essa rua lembra mamãe. Nunca caminhei por aqui com ela. Mas a calçada tem seu cheiro. Aparência de garoa, eis o que mamãe tinha. Garoa que chora, chora, chora. Mas nada molha. Talvez por isso sua maquilagem estivesse sempre impecável. E seus olhos tristes irradiavam brilho.

“Já pra dentro.” Dizia quando os meninos me chamavam de nomes estranhos. Eram nomes que usavam botas de cano alto. Casacos compridos de cores vistosas. Mamãe me abraçava. Maninha me olhava, a chupar o dedão, pois sempre deixava cair a chupeta e não sabia pedir que a apanhássemos.

Mamãe era alta. Naquele tempo todos eram altos. Tinha o cabelo negro liso. Escorrido em direção ao queixo. E só usava brincos à noite; os colocava pouco antes de sair. Basta levantar os olhos e vejo seus brincos. Eles brilhavam aos raios da luz que vem dos poucos postes. Não é raro eu passar aqui. Mas sinto esses mistérios a cada piscar. Os carros que passam levam mamãe; e trazem de volta.

“Vamos, menino, come logo que tenho de sair.” Porém, nem sempre eu tinha vontade de jantar. Vez em quando, respirava fundo e saía. Me deixava lá. Então eu jantava uma sopa de ausência.

Primeira noite de mamãe em casa foi no meu aniversário. Meu primeiro aniversário foi aos sete anos. Mas não foram os colegas de classe. Nem a tia que eu não gostava. Nem a vó que eu não conhecia. Mas foi diferente ver a mãe em casa a noite inteira. Maninha encheu o nariz de merengue. Eu apaguei uma vela e ganhei um presente. Só depois fui ver que meu presente era uma marca inchada na coxa de mamãe.

“Agora vamos dormir.” E foi a única vez que maninha deixou o berço e eu deixei o sofá-cama para dormirmos os três juntos no colchão esticado no chão.

É sem sentido um homem parar em uma rua sozinho. Sentir garoa e olhar brincos e casacos largos. Mas vejo sentido em reparar mamãe e abrir os braços. E, de repente, faz sentido eu ver outra mamãe a acenar. E outra mamãe com sorriso largo. E também faz sentido aparecerem mais três mamães a mandarem-me entrar. E quando eu digo “Sim, mamãe”, faz sentido apenas uma aproximar-se. Andar firme, andar ausente.

Mamãe sempre teve marcas pelo corpo. Eu não gostava delas. Eram marcas de tudo. E um dia havia tantas marcas de tantas coisas que não havia mais pele original de mãe. “O que é isso, mãe?” Ela me olhou demorado, virou o rosto pra maninha, depois voltou-se a mim e sacudiu meu corpo de menino já grande. “É a vida, filho.”

Nunca mais a vi. Em mim, também há uma marca. Que só eu posso ver. Uma marca que também cresce e refugia-se nesta rua. Por isso venho aqui. Para ver seus brincos, suas botas de cano alto, seu casaco de cor vistosa. Mas também vejo o que não quero ver. Marcas; muitas. Então visto-me apressado, para não ouvir as frases que fazem minha marca crescer. “Ande logo, tenho dois filhos para sustentar.”

Emir Rossoni é autor de “Caixa de Guardar Vontades” (vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura e do Prêmio Guarulhos de Literatura de Livro do Ano em 2019), “Domanda Nísio” (vencedor do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura em 2018 e do Prêmio Bunkyo em 2020), e “Erros, Errantes e Afins” (Prêmio CEPE de Literatura 2020). Ministra desde 2016 a oficina literária “As duas histórias do conto” e o curso “Escrevendo sem Inspiração”.

FICÇÃO

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