O FILHO PRÓDIGO, por José Eduardo Degrazia
Desde capa, a impactante pintura do uruguaio Juan Manuel Blanes,
“A paraguaia”, anuncia que o mais recente livro de José Eduardo Degrazia,
“Tia Gorda e Tia Magrinha na Guerra do Paraguai e outros contos de guerra, sonho, amores”
irá tomar do leitor e fazer viagens (ou incursões) em temas que estão na história
e memória dos leitores gaúchos. A Guerra do Paraguai, a Revolução Federalista de 1893
e tantos outros momentos menos precisos no tempo e no espaço
que, sem dúvida, repetem o impacto da pintura escolhida para a capa do livro.
Lançamento de 2022 da editora Bestiário.
A mãe apontou para o caixão sobre a mesa, os círios ardendo, não havia necessidade de palavras. As lágrimas desciam pelo rosto enrugado e as contrações dos músculos faziam sentir a emoção, presa na garganta, como um soluço formidável que durante quarenta anos mantivera trancado no peito.
Passou a olhar a sala às escuras, no tremeluzir das velas. Lembrou uma cena do passado. Era domingo e todos estavam reunidos em volta da mesa do almoço. O pai, grosso bigode sombreando os lábios, ébrio das garrafas de vinho que tomara, gritou que a comida não estava do seu agrado. Incontinente, virou o prato sobre a mesa e se levantou para ir beber no bar da esquina onde, mais tarde, a mãe o iria buscar trôpego, a língua enrolando.
Nada havia mudado na casa apesar dos longos anos de ausência. A cozinha, com suas grandes panelas, o tacho de cobre em que sua mãe fazia doce de goiaba, horas e horas mexendo com uma colher de pau.
Entrou no quarto que era seu e do irmão mais velho. Só ali estava mudado. Desde que os dois partiram, o pai o transformara em depósito. Ali estavam as mesas que as mãos grossas do pai cortaram da madeira crua e aplainaram com vigor e ternura, mesas que com o tempo foram ficando escuras e manchadas por todas as resinas que a vida derramara nelas; as cadeiras, os artefatos que criara, só com a madeira os seus momentos de entrega, as suas fraquezas de ternura. Para ele era como se os dois filhos não existissem mais.
A vida sempre fora difícil naquela casa. Os quatro morando sob o mesmo teto, mas paredes os separando. A mãe, daquele jeito de aceitar as coisas do mundo como eram, calada. O pai, orgulhoso, a cara vermelha de vinho, a emoção que tentava não demonstrar em momento algum, e que no fim o levaria para o túmulo o coração arrebentando. O irmão mais velho, rebelde, não aceitando viver naquelas condições, sem presente nem futuro, uma vida voltada para dentro, desaparecendo numa segunda-feira, sem levar nada, sumindo sem deixar sinal ou traço, como se nunca tivesse vivido ali. Onde andaria, perdido no mundo? Algum dia saberia da morte do pai? Teria remorsos por ter abandonado a casa paterna?
O irmão contrariara os desejos do velho que o queria marceneiro igual a ele, o pai, e ao avô, continuando a saga familiar, não um vagabundo, um andarilho sem ter onde deitar a cabeça no fim do dia. O rancor corroendo o coração do velho, dia a dia, não aguentava olhar para ele, nos almoços engolindo, seco, a dolorosa comida. O pai nunca perdoara o filho mais velho, sua partida para a cidade grande. Longe, tão longe, meu deus, como se estivesse morto.
O pai não se movera, aparentando indiferença, mas por dentro sofrendo, vencido, quando chegou a vez de também ir embora, o irmão mais novo, só a mãe acenava enquanto lentas lágrimas escorriam pelo rosto curtido de rugas profundas.
* * *
Depois de tanto tempo estava novamente naquela casa, sentindo os cheiros conhecidos, olhando o pai deitado no caixão de madeira escura, vestindo roupa que nunca usara em vida, a gravata apertando o pescoço, e não conseguia chorar. Recebia os pêsames como se não fosse com ele. Os amigos, que não o viam há muito, ficavam olhando as roupas, o seu relógio. Sentia-se um estranho, não pertencia mais àquela casa, àquela gente.
Tomavam cachaça e conversavam em volta do caixão. A mãe parecia ter recuperado a forma antiga. Fazia bolinhos na cozinha, servia café. Há pouco ela lhe dissera não pretender mudar-se para a cidade. Sempre vivera ali e ali queria morrer acompanhando o marido. Se quisesse, mandasse algum dinheiro. Gastara muito na compra do caixão, no aluguel do túmulo. O falecido nada deixara. Ela saberia continuar vivendo, como sempre fizera. Era dessas naturezas fortes que, com o tempo, vão adquirindo a tonalidade da terra, acabam por se confundir com as coisas que as rodeiam, móveis, plantas, utensílios. Não a levariam para um apartamento num décimo andar.
Passaram a noite acordados, o cansaço parecia estar com eles, no olhar machucado da mãe, no semblante taciturno – agora se dera conta que era semelhante ao pai, só faltando o bigode para ser igual, lhe dissera um amigo. O sol havia nascido, a mãe abrira as janelas espantando as últimas trevas dos cantos onde se encontravam, afastando o cheiro enjoativo das flores e das velas. Amigos foram providenciar no transporte para o cemitério. Colocou algum dinheiro na mão do primeiro que se ofereceu e se deixou ficar na sala, junto do caixão. Os sentimentos, desencontrados, o assolavam, deixando-o exausto. Não queria entregar-se ao que compreendia próximo: a dor que pouco a pouco ia entrando no peito. Ele, que até então ficara de fora, assistindo tudo de longe, parecia fraquejar.
O transporte da funerária chegou levantando uma poeira avermelhada que se depositou sobre os móveis e sobre o terno preto do pai. Os homens vieram fechar o caixão. Ele foi o último a aproximar-se para ver o rosto do morto. Não pôde conter-se, beijou a cara fria do pai, sentindo a barba que azulava o queixo poderoso. Quando o caixão seguiu para o cemitério teve a certeza de que não voltaria para a capital. Ficaria para sempre naquela cidade de onde nunca deveria ter saído.
No quarto cheio de ferramentas viu que sua vida era ali, ao lado da mãe e perto do pai. A mão acariciou a madeira da mesa, tocou de leve as ferramentas gastas pelo trabalho, como tantas vezes o vira fazer, e, só então, chorou.
José Eduardo Degrazia nasceu em Porto Alegre em 1951. Publicou dezenas de artigos e crônicas em jornais e revistas do Brasil e do exterior. Tem publicados os livros de poemas, Lavra permanente, Cidade submersa, A porta do sol, Piano arcano, e A urna Guarani; seus livros de contos são: O atleta recordista, A orelha do bugre, A terra sem males, Os leões selvagens de Tanganica e e Deus não protege os certinhos. Traduziu livros de Pablo Neruda, poetas latino-americanos e italianos.
