POR QUE OS HOMENS NÃO AMAM O PRESENTE?, por Gabriel Gonzaga

“Como eu vim parar aqui de novo?”, respirei fundo, olhei para o canto superior do consultório, “eu lutei pra não estar aqui”. O sol a pino bateu no meu rosto, pedi para que a psicóloga fechasse as cortinas. Não chorei, contive as lágrimas. Não havia motivo para chorar. Lembrei que a última vez que estive ali sentei numa poltrona velha, com algumas avarias de gatos nas beiradas. Agora estava confortável em um sofá de couro. Ela me contou que finalmente seus rendimentos permitiram investir no consultório. Me senti tentado a perguntar o que restou dos antigos móveis. “Os pacientes”, ela respondeu. Continuamos a sessão.

“Vou te dar uma tarefa pra próxima semana. Quero que você pense sobre o valor de uma vida ordinária”. Não entendi muito bem o que ela disse, relutei em aceitar a ideia de uma “vida ordinária”. Mas seus exemplos foram muito bons: um diretor de cinema sem destaques, troféus ou menções honrosas em qualquer festival; um escritor sem prêmios e sem best-sellers; um pesquisador experiente que não é referência em seu campo. Esse último caso é ainda mais grave com os teóricos. Eles dependem tanto da fama quanto os escritores de literatura. Talvez por isso sejam, em maioria, homens.

“Eu vejo que isso ocorre muito com homens, essa vontade de associar seu valor a algo grande, muito além deles”, ela comentou como quem evitava dizer que falava especificamente sobre mim. Sabia que eu fugiria a qualquer sinal de que aquilo era de fato uma consulta, eu era o paciente e não estávamos em uma conversa entre amigos. “Estou tentando evitar me pensar como um problema”, eu disse. Mas onde está o problema?

Comecei a terapia em meio a um surto ansioso. Havia acumulado tantas tarefas do trabalho que cheguei a me perguntar se de fato era uma carreira para mim. Temia tanto uma crise de identidade quanto o desemprego. Depois que as coisas se acalmaram, não consegui me desvencilhar dela. Toda semana falávamos sobre relacionamentos, trabalhos e traumas familiares. Rodopiávamos nos mesmos tópicos. Pensava que nossa dinâmica era boa, muito segura, mas quanto mais repetíamos esses diálogos, mais enjoado me sentia. Parecia que estava correndo do mesmo problema por dias seguidos até que, nas sextas, o reencontrava no consultório. 

Ordinário: que é comum; normal. Que está em conformidade com o habitual. Que não possui nem demonstra brilho, proeminência ou destaque; medíocre. (Recortei os termos de um dicionário).

Me despedi com pressa da psicóloga, tinha uma conversa marcada logo após. A sessão poderia me ajudar com o que seria revelado naquela tarde. Ela me aguardava na esquina do consultório, próximo a uma lanchonete. Sabendo disso, evitei o elevador e desci os nove andares refletindo sobre exemplos de vida ordinária. A vida dela, talvez. Realmente não a via assim. Sempre senti atração por trabalhadoras do intelecto: professoras, escritoras, artistas, pesquisadoras, enfim. Gosto da ideia de fazer parte de um breve momento da vida dessas pessoas e, depois, vê-las partir. Um dia poderíamos dizer que vivemos parte da juventude um do outro, mesmo sem estarmos juntos. “Éramos mesmo muito jovens”, diremos sorridentes. Com certeza, é esse seu caso. Fico abismado com seu jeito de encarar as coisas, algo autêntico. Às vezes inesperado, embora sem a seriedade devida. “Seu problema é não se levar a sério”, disse a ela. Ela não consegue. Eu vejo seu futuro, ela não.

“Desculpa a demora, desci pelas escadas, não quis arriscar compartilhar o elevador, não acho que estamos seguros com a pandemia”. Ela pareceu contente, embora surpresa com minha preocupação exagerada. Meu rosto suava muito. Estava sempre suado, principalmente entre os braços, a testa, a parte de trás dos joelhos. É realmente terrível. Tentei de inúmeras formas parar o suor. Ela não se importava. A conheci suado. Estávamos no carnaval, ela de fantasia e eu apenas de shorts e regata. Ela com glitter pelos cabelos e eu com dois brincos enormes. Ela me disse que não nos lembraríamos daquele dia, respondi que seria impossível esquecer. E com o tanto que falei, me meti nessa situação.

“Como foi a sessão?”, ela perguntou, tentando começar nosso assunto por outros meios. “Muito boa, tenho uma espécie de tarefa de casa”. Contei sobre os exemplos da psicóloga e o que tinha meditado até então. “Quando penso em pessoas ordinárias, penso nos meus amigos, pai e mãe, meus irmãos, pessoas que conheci em certos períodos da vida”. “E o que você pensa sobre elas?”. “O melhor, quando penso em inspirações pra mim, penso nelas”. Ela me encarava curiosa, talvez decifrando o que levou a psicóloga a abordar esse assunto.

“O que mais admiro nessas pessoas é a paixão. Penso muito em paixão como um impulso. A paixão tem vários objetos, mas recebe o mesmo nome”. Ela não gostava quando me demorava nesse falatório pseudo-filosófico. Me agradava o fato de sermos tão diferentes, admirava-a por se empenhar em algo sobre o que eu não sabia de nada: as artes. “Você se inscreveu na seleção daquela escola?”. “Aquela em Salvador? Queria poder conversar contigo antes”. “O prazo não tá se esgotando?”. “Sim, mas estive pensando em como ficaremos, eu e você”. “Ficaremos bem”. “Nosso relacionamento…”. “Ah, não sei, mas acho que a sua prioridade deveria ser sua carreira, você é muito talentosa”. “Só você acha isso”. “Não é verdade”. “Ainda assim, são dois anos de curso, você já não me responde bem quando estamos separados, como manteremos isso à distância?”. “Não sabia que a conversa era pra voltar a me cobrar”. “Não estou acusando, você já admitiu que tem dificuldade com isso”. “Isso o quê?”. “Atenção”. “Atenção com o quê?”. “Agora, com nossa conversa, com essa decisão que preciso tomar”.

Notei que a avenida ao nosso lado havia sido ampliada – mais uma via no sentido inverso. Um canteiro florido no centro separava as faixas. Agora tínhamos o dobro do barulho. Era mais difícil de escutá-la. Nossos primeiros encontros aconteceram naquela rua. Já me consultava com a psicóloga e ela morava duas quadras para dentro do bairro, cinco minutos de caminhada de onde estávamos. Quase sempre nos víamos para tomar um café ou uma cerveja, a depender do horário. Por vezes pensei que nos tornaríamos amigos, que não funcionaríamos sendo um casal. Confessei isso e ela considerou algo carinhoso. Disse que preferia assim, que amava o jeito que eu tratava meus amigos. Apesar disso, namoramos. Não por vontade, mas por impulso. 

Paixão: sentimento intenso que possui a capacidade de alterar o comportamento, o pensamento, etc.; amor, ódio ou desejo demonstrado de maneira extrema; atração intensa ou movimento violento, impetuoso, do ser para o que ele deseja (do mesmo dicionário). 

Precisei declinar dos seus convites para tomarmos um café. Apesar de apreciar sua companhia e o dia ensolarado, seria o mesmo que admitir minha mentira anterior sobre as escadas e a pandemia. Não lembro quando começamos, mas estávamos andando. Cruzamos uma livraria que eu apostava que não sobreviveria à crise econômica. Pensei em introduzir esse assunto, quem sabe quebrar o silêncio e o estranhamento. Depois de poucos minutos calados, comecei a me perguntar quem era ela. Se eu não falasse nada, ou se conseguisse reduzir o volume dos motores e buzinas, ficaria absorto nessa questão. Buscando um ponto para me concentrar novamente, lembrei de algo que ela havia me contado por mensagens.

“Você falou que viu um filme ontem?”. “Sim, um filme japonês, muito bom. É sobre um escritor que não consegue engrenar outro romance após ganhar um prêmio com seu livro de estreia. Aí essa melancolia acaba afetando seu relacionamento com a ex-esposa e o filho”. “E por que você disse que se lembrou de mim?”. “Eu disse?”. “Sim”. “Ah, sim, tem um momento que a mãe do escritor diz que os homens não conseguem amar o presente. Estão sempre perseguindo algo além ou se lamentando pelo que perderam”. “E você acha que eu não amo o presente?”. “Não sei, apenas tive uma impressão de assistir você nas falas do filme. É sempre sobre seu futuro ou seu passado. Você vive falando da sua infância, por exemplo. E fala também sobre o que que gostaria de fazer com seus projetos…”. Queria calá-la, mas sabia que seria impossível. Ou ouviria a reclamação até o fim, ou se tornaria uma briga. Admito toda minha excentricidade, embora me defenda dizendo que também sei admirar a qualidade de outras pessoas. Apenas gostaria que ela se visse como a vejo. Mas ela acredita que eu esteja a afastando. 

“E olha que engraçado, eu nunca me vejo nesse passado, e nem nesse futuro. Como é fácil pra você imaginar um lugar sem mim no tempo, não é?”. “Mas você não estava na minha infância”. “E nem você na minha, mas nem me lembro mais como é não ter você na minha vida”. Seus olhos estavam encharcados. Detive meus pensamentos de pena sobre isso. Sabia que ela não estava triste, estava irritada. Ela jamais havia entrado em uma discussão sem que seus olhos a traíssem. Paramos de caminhar. Havíamos passado a livraria, os cafés e estávamos diante de uma desconhecida loja de móveis planejados. Nenhum de nós sabíamos dizer quando esse lugar foi inaugurado e quem ele atendia. Eu não me imaginava investindo dinheiro nesse tipo de coisa e não conseguia lembrar quem naquele bairro poderia arcar com isso.

Ela esperava uma resposta. Precisei controlar minha raiva. Sentia novamente essa pressão sobre dizer o que ela deveria fazer porque meu futuro seria o dela. Meu passado, pelo visto, também. “Você não pode se prender a mim, você é melhor do que eu”. “Não é sobre isso, só quero que possamos decidir juntos. Você também vai ter que abrir mão de muita coisa”. “Mesmo que eu precise, não posso pedir pra você decidir as coisas por minha causa”. “Não pode? Não pode ou não quer?”. Se não fosse essa pergunta, teria seguido caminhando e não teria visto o sinal abrir. Quase fui atropelado em meio a minha surpresa. 

Gostaria ou não que ela ficasse? “Um dia nada disso fará sentido, você sabe. Você será uma ótima artista, eu serei um professor com mais tarefas pra corrigir do que tempo. Já disse que quero dar aula na escola?”. Seu sopro gelado bateu nos meus braços, um ar forte e esbaforido. Estávamos parados diante de uma ladeira – uma ladeira numa cidade quase sempre plana. Não havíamos acordado para onde estávamos indo, queríamos apenas conversar. Recusei seus convites anteriores e agora precisava encarar a altitude. “Você sempre fala sobre isso, mas eu nunca disse que queria ser artista. Eu não sei o que eu quero, mas quero estar contigo”. “Você pensa pouco sobre si mesma, você não se leva a sério”. “Não, é você quem não me leva a sério. Eu te amo, eu só sei isso. Eu só tenho certeza sobre isso”. 

Responder parecia tão difícil quanto caminhar. “Eu te amo também”. “Me ama mesmo? E me amará exatamente quando? Quando puder viajar pra Bahia? Quando as passagens baixarem? Nesse ou no próximo governo?”. “Você não precisa se irritar, estou aqui pra conversar”. “Eu estou cansada”. “Vamos sentar então”. “Não, não da caminhada, estou cansada de conversar, das várias vezes que conversamos”. Eu sempre me julguei muito bom nas conversas, mas parecia que era bom mesmo nos rodopios. No jogo com as palavras, como quem se diverte preenchendo espaços em branco aleatoriamente com um vasto vocabulário. No fim, estávamos no mesmo lugar. Não caminhávamos mais porque não conversávamos mais. Ela balançava a cabeça de um lado para o outro, encarava as árvores, os carros, alguns passantes dispostos a subir a inclinação da rua. De vez em quando, parava seus olhos nos meus aguardando que dissesse algo. O que eu responderia, se é verdade que a amo? Que a amei por todo esse tempo, se a amei tanto que amaria vê-la nas galerias, vê-la mostrar seu trabalho para o mundo.

“Eu já me inscrevi na seleção”, ela disse, antes que eu pudesse completar meu raciocínio. Me deixou com a boca entreaberta, como quando queremos falar algo e desistimos na metade do caminho. “Eu só achei que você merecia a chance de me pedir que ficasse”.

Amor: sentimento de afeto que faz com que uma pessoa queira estar com outra, protegendo, cuidando e conservando sua companhia; sentimento de adoração em relação a algo específico (real ou abstrato); esse ideal de adoração (dessa vez o dicionário não me ajudou. Amor é essencialmente um problema filosófico).

Talvez o valor de uma vida ordinária esteja nesse jogo. Poder me apaixonar pelo presente sabendo que eu nunca poderei controlá-lo, embora apenas nele possa agir. E amar o futuro e o passado, coisas que me dizem quem sou e onde estou. O presente é menor para os homens como é a paixão. E talvez seja uma questão masculina decidir se apaixonar pelo que se faz agora. Pelo ato em si, não pela sua projeção. Caminhamos um pouco mais antes de chegarmos ao fim da nossa conversa. 

Gabriel Gonzaga é professor, mestre e doutorando em História.

FICÇÃO

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