PORTO ALEGRE, por Lucio Carvalho
Os poemas a seguir foram publicados em livros individuais
e na antologia “Inventário”, publicação da TAN Editorial, de 2022.
Porto Alegre (2013)
Não te vejo mais e ainda te encontro, Porto Alegre.
Não são teus lugares, talvez só as pedras do calçamento.
Não são as avenidas congestionadas, mas as ruelas do centro.
Não são os carros de cem mil dólares, são as carroças furtivas.
Não são teus parques lotados, mas as árvores tombadas,
os monumentos sem placa, tua forma em “v” desviando a passagem
[do vento.
Não são os dias de chuva em que me flagras na rua,
nem os de calor, nem de frio, nem de sol.
Muito menos é o pôr do sol, que é só um entre tantos, eu sinto dizer.
Só te conhece quem te caminha, Porto Alegre, e quanto menos
reconheces pequena que és, mais te avizinhas
àqueles que já não estão aqui e que, entretanto, nunca te deixarão.
Talvez estejas só de passagem em algum ponto remoto
na Ponte da Azenha, na Praça da Alfândega, no Pronto Socorro.
Num momento não combinado e nos acenamos de longe e prometemos
[falar.
Às vezes, parece que te falta alguma coisa, sei lá, identidade.
Como o desbotado das cidades da fronteira ou os jardins da serra,
mas talvez não precises disso, nem de que ninguém te lembre disso
e nem queiras ser a história “em pessoa” e nem palco dela.
Deixas, pelo contrário, que ela escorra como inundação
acumulada de garoa em garoa, demorando nas várzeas,
e molhe as vidraças de repente, numa mudança brusca do vento
e vire de ponta a cabeça os guarda-chuvas
e amanheça dentro da janela do ônibus que vem da Restinga ou Belém.
Teu aconchego áspero, Porto Alegre, não se mostra na TV nem vai pelo
[rádio,
não se escreve ou guarda em museu. Tu não deixarias
tua melhor imagem ceder à decomposição do tempo.
De madrugada, os mendigos das ruas te assobiam como se fosses
[uma dama,
mas não lhes dás ouvidos. O dia deve começar mais uma vez,
e mais uma vez, e mais uma vez, e assim para sempre. Pavimentada no
saibro e em azulejos remotos, ninguém te governa.
O outono te entrega em mãos para que se consiga viver por aqui,
no inverno, sob as cobertas, e então eu posso pensar em ti.

Porto Alegre, 2 (2015)
Não estou podendo mais falar contigo.
O que há contigo?
O que dizes?
É sobre algo que esteja nas ruas?
Essas tuas palavras, o que elas são?
Farelos nas calçadas mendigas?
Vômitos? Cacos de vidro? Pessoas?
E essa fumaça toda amiúde a mascarar o céu
nessa face tristonha que mal se mostra?
Quando te assumirás novamente?
Em abril?
Até lá, sobrevive, por favor,
para que eu sobreviva em ti.
Às vezes não suporto mais teu sotaque.
Tua sujeira está entrando em mim
e ninguém vem te limpar.
Te acumulas demais,
às vezes até em ti mesma,
para onde ninguém quer olhar.
Nem a chuva tem lavado direito o teu chão.
Não posso falar contigo mais. Não te entendo
ou talvez não queira entender. Não sei. Pouco importa.
Devo estar velho demais para ti.
Acho que não tenho mais nada a te dar.
Teus encantos também estão todos vencidos
como cláusulas de um contrato sem efeito
que rompeste comigo
só por romper.
E eu para ti sou apenas mais um visitante.
Alguém que parece distante demais
e de quem nem queres saber.
Tu queres ser, Porto Alegre,
como uma cidade castelhana,
mas não consegues ser arrogante, coitada de ti.
Ou então alguma coisa ainda mais impossível
para o que és, de verdade.
E vais me iludindo,
prometendo mundos e fundos
e coisas que a bem da verdade não tens
e das quais antes eu não costumava importar-me,
mas hoje me faltam e eu quero. Quero para ti.
Mas, quando penso, eu quase não te suporto mais.
Pelo menos não assim como queres parecer.
Sem mais requintes, nua em pelo,
como uma falsa louca.
E essas pessoas que dizem que te amam
elas nunca estão aqui, nunca estão em lugar nenhum,
dentro de si mesmas, indo-se embora
justamente quando tu ficas. E ficas.
Como alguém a ser encontrado.
Eu só te entendo quando te dispenso, Porto Alegre.
E quando mais me sinto longe
ou sinto vontade em partir,
não sei que feitiço tu tens,
mas mais tenho saudade de ti
e de como eu te conheci
fora de mim e hoje estás aqui dentro,
levando-me contigo.
Não me iludas mais, combinamos?
Nem me peças para que eu te cante.
Tu sabes que eu nunca saberei te cantar.
Por isso vivemos atravessados um no outro
e no tempo e no mesmo espaço
ao qual me convidas e expulsa:
tudo ao mesmo tempo.
Desde a Farrapos até o Lami,
passando pela casa de todo o mundo, te escuto. O que tu queres dizer, Porto Alegre?
Eu tenho tempo para ti
desde que tu tenhas paciência comigo.
Não tentes me convencer que me entendes.
Que dizes?

Porto Alegre, 3 (2016)
Não tenho parte em ti. Vivo tua extradição
há tempo demais e agora finalmente
vou me habituando a não te entender. Tuas mãos
que eu conheci num outono antigo, num cinema
do Bom Fim, desde lá me arrepiam, crispam-se
nas minhas, enrugam-se nelas. Tuas mãos
me envelheceram por fora, mas tu já eras
tão velha quanto agora te pareces, Porto Alegre.
Às vezes sinto que todos te querem muito pouco
e eu mesmo como se quisesse tributar-te
da minha atenção escassa. E porque não és tola
e percebes a expropriação que te fazem,
reages assim, como em sucessivas ações de despejo
e tornados que agora passaste a invocar
sobre nós, de vez em quando.
Quanto a mim, tu podes ficar tranquila
porque eu não te levarei comigo. Nem teu
jeito de falar ou de andar. Nem tuas gírias. Nem tuas
melhores e mais pretensiosas imagens.
Porque me tratas como um estropiado
e és feita de gente de toda a parte, ninguém
te respeita, mas eu te amo ainda assim.
Tu queres saber?
Se eu pudesse, aninhava tuas árvores
derrubadas, juntava-as como raízes inversas
e te replantava às margens dessa água
apodrecida que, pelos valos, vai encontrando
e fazendo o rio, a lagoa, o que seja, à margem
descontrolada que expulsa perfumes ruins,
sujeira, baixa autoestima,
rancores e esperanças menosprezadas;
mas que também te refaria, se tu quisesses.
Se eu pudesse, te caminhava como fizeram
aqueles poetas pouco exigentes
que te aceitaram como tu eras então. Porém eu não
te aceito. Quero que faças mais do que
ir morrendo porque o tempo te vai
sepultando em pé. E eu ontem te vi assim:
portando umas pobres crianças na rua
sem o mínimo gesto maternal que eu,
talvez por insistência, teimei em experimentar em ti.
E eu não posso esquecer-me do que me deste.
Das ruas que morei não há melhores ou piores,
mas fui te trocando todas as vezes
em que me indicaste que ias piorando,
ficando ruim, má e adoecias sem
pedir ajuda e ninguém parecia te escutar.
Agora tuas promessas antigas soam
como maldições. Por que não te recolhes? Aproveita
a chuva. Há uma frente fria por vir
do lado da fronteira e vai te cobrir os pés.
Aceita que te protejam. Não sejas tão
rabugenta e ofensiva, porque então
ninguém te aguenta. Ficas mesmo muito difícil;
nunca ninguém te disse?
Muitas vezes, ainda hoje, tantos anos
depois, tu sabes que ainda perco-me de ti? Tomo a rua
errada porque tua familiaridade é enganosa ou
então sou eu que continuo aquele tolo.
Pareces até igual, mas só pareces. Por dentro,
coisas te aconteceram. Por que não me contas?
Eu sei te ouvir e porque eu também sei ver
é inútil que me ocultes. (Sei que tu guardas
amarguras iguais as que há no interior das casas
e as tristezas que são comuns a todo mundo, mas
podemos fazer algo juntos nem que seja pela
alegria dos nossos filhos. Viste que eu
ainda te considero uma mãe, apesar de tudo?)
Perco-me de ti quando prefiro não ir ao centro.
Quando atravesso as portas dos shoppings
e aquela palidez mortiça toda não me engana
que estejas ali, como se num lugar qualquer.
Quando não vejo mais um cinema sequer
margeando tuas calçadas. Quando passear
por tuas ruas requer uma missão ou como um
senso de fuga. Desde quando isso é jeito
de vivermos em paz?
Perco-me de ti diante da tua pobreza
ostensiva, dos moradores de rua, quando
vou a lugares que não existem mais e
quando preciso que não te maquies
como se em telejornais, porque eu
gosto mesmo é da tua cara lavada,
como quando ficas depois da chuva,
escorrida e alagadiça:
tomada de um frescor sem igual…
Sei que não gostas muito de parecer gaúcha,
mas não incomodo com isso, apesar de que
isso nos confira um exílio, um distanciamento,
uma identidade nua por demais. Ou identidade
nenhuma. Parece que essa é tua forma de ser
democrática: não ter cara de coisa nenhuma
e, ao mesmo tempo, ter todas as caras possíveis.
Das cidades do Brasil inteiro, para mim
tu és a única que prescinde de mapa. E a verdade é
que é um prazer secreto perder-me em ti, ainda hoje.
Ou poder andar em ti sem precisar nem pensar,
como em modo automático. Achas que bebi?
E tu também pareces que não te embebedas nunca,
já reparaste a sisudez com que toleras a morte, mesmo
a de quem sempre te amou? Parece que não eram,
que nunca foram teus (mas ambos sabemos que eram).
Mesmo os teus sambas não parecem milongas
ou uns tangos tristes no mais (sob o bater de sopapos)…?
Eu não sei.
Ainda assim me sinto teu filho, mas, para tanto,
eu que sinto ter te adotado. Pelos nossos filhos
todos, eu queria que tu deixasses
que de vez em quando eu cuidasse de ti.
E que os outros te cuidassem um pouco mais também.
Eu, pelo menos, preciso que tu estejas bem
e me responda com o teu sorriso em meus olhos,
como o de quando nos conhecemos.
Exagerei como sempre, mas agora tudo está dito entre nós.
Até a próxima vez…

Porto Alegre, 4 (2017)
Quem me contou sobre ti foram os pés
congelados de frio de alguém que vi descendo através
do Menino Deus, dia desses, rumo ao Cristal.
Ele não tinha sapatos, mas tinha muletas e um cão alquebrado
que farejava no vento o inverno e se encolhia, tiritando e
latindo entre a buzina dos carros, todo assustado.
Ele não temia a ti e todo valente encarou
os meus olhos como a um parente. Tu não os viste
porque já não olhas direito a mais nada.
Pensas em ti mesma como um museu de museus fechados.
Procuras entre os passantes quem te visite
e depois lhe fecha as portas na cara.
O tempo vem passando por sobre ti e mim
sem indulgência ou rancor. Onde fica a cidade?
Eu me pergunto – e é sempre para lá de uma ponte.
O interior te espreme e oprime como se tua função
fosse exortá-lo ao teu abraço indolente
e lhe dissesses para que da mesma forma te evitasse.
Por aqui, há mortes à toa e a toda hora
como nas piores metrópoles do mundo,
mas tu te candidatas (ensandecida) aos mais belos poentes.
O mais triste em ti sempre pensei que fosse teu nome
tão impeditivo da melancolia
tão necessária à autocrítica…
Ai de ti que não podes sequer lacrimejar
senão te vão juntar as lágrimas
poetas ruins que nem te amam.
Eu, que sempre vivi num bairro apenas,
te vivo como aldeia
e isso me reforça o teu assombro.
E, cada vez que desço ao térreo para te receber,
tu não te entregas.
Tomas do troco e desapareces a seguir.
Tu nunca madrugas, amanheces.
Tu não descansas, adormeces.
Tu não sorris sempre, sempre perfeita.
Eu bem sei que te ampararia,
mas não tenho com o que
e devo poupar-te desse embaraço.
Às vezes olho para baixo de algum prédio alto
e então entendo onde escondes tua beleza:
nas coisas que não te fizemos.
Mas foste roubada e rapinada
como a uma vizinha velha
que os ladrões não perdoam.
E foste mal vestida por gosto, parece,
a uma festa
em teu próprio louvor.
Por isso pareces cada vez mais a este velho e seu cão
e enxotá-los é exigência de uma vaidade inútil
que te compara a lugares que não te merecem
(mas eu não te comparo a ninguém).
Meu ônibus já vem chegando
e vou para ainda mais dentro de ti.
É onde teu verdadeiro coração
mantém por vingança
me recusar por inteiro (mas eu te amo ainda assim).

Porto Alegre, 5 (2018)
Faltei ao nosso encontro. Tenho faltado…
Não sei onde ando com a cabeça.
Desculpa por isso? De outro modo,
foi sem querer que te vi (e não notaste);
no comércio miúdo do centro, numa
conversa solidária de pobrezas
e recebendo a benção inútil de um pastor.
Estavas tão silenciosa quanto me pareceste
cansada, exausta, das mentiras intermináveis
que forjamos em teu nome.
Num daqueles cafés acanhados,
negaste passagem a um mendigo
reavivando em mim a memória da tua crueldade.
Mas queres me dizer de imagens
tão perfeitas que impossíveis.
Tua coqueteria indiferente
é o que te faz tão arrogante, não vês?
Há dias uma senhora muito velha
contava-me de lugares que não existem mais.
Ela misturava os tempos
e, por uma magia toda própria das palavras,
embarquei no seu delírio. Estive com ela
num cinema que hoje é estacionamento.
Ajudei-a com documentos improváveis
como quando foi a data certa
em que perdeste o bom senso.
Num museu enganoso,
cópias de bronze furtado
tratam entre si do teu futuro,
não sabes? O livro de Drummond
na Praça da Alfândega
no qual te espiava a poesia, também.
Aos olhos dos outros, vales tão pouco
que te deixariam sem luz por uma
semana, assim como te retiraram os bondes,
como te prometeram coisas que, na verdade,
nunca acharam que tu merecesses –
os teus governantes.
De mim, o que queres, eu não tenho.
Sou egresso das tuas ruas, que é onde
vivem os únicos que te amam
(e violentam). Retirado às janelas,
acostumado a corroborar tuas esperanças,
mas sem esperança, adivinho o desenlace
de tua vingança: permanecer…
Mas ontem precisei de algo que não encontro
em lugar nenhum a não ser em ti. E precisar
de ti me fez uma saudade, porque te vi
como estavas na realidade, e eu te negava.
Tão cansada, Porto Alegre…
Sei que te fraudo como um camelô
que troca por moedas furtadas
o que tu nem tens para dar.
Sei que te exijo do que não posso cooperar
contigo. E que isso te miserabiliza mais
que tudo, numa violência incomparável.
Eu te reclamo tanto… Desculpa por isso também.
Se eu te deixasse quieta, todavia,
seria o meu próprio fim, pois no meu mal querer
adquiriste de mim, sem notar,
quase tudo no que me tornei.
Talvez seja essa a natureza da dor.
Perdoa, somente se puderes,
por esse meu (nosso) tamanho egoísmo.
Lucio Carvalho é editor da Sepé.

Que poemas originais! Quanta sensibilidade nos versos! Parabéns.
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Obrigado, Lúcia!
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Poemas que vão pairando sobre a cidade como o voo de um bando de pássaros.
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Obrigado, caro Dilan, pela gentileza!
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